Alabê, intelectual e militante: relembre a trajetória de Jaime Sodré

Intelectual baiano morreu nesta quinta-feira (06), em Salvador

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  • Gil Santos

Publicado em 7 de agosto de 2020 às 05:01

- Atualizado há um ano

. Crédito: José Santos Melo/Arquivo CORREIO

Na tradição africana, o griô é o guardião das histórias, a biblioteca viva que preserva a memória dos antigos. Doutor em História da Cultura Negra e referência na área dos estudos africanos na Bahia, o professor Jaime Sodré era considerado um griô justamente por preservar as tradições africanas com seus estudos acadêmicos. Ele morreu nesta quinta-feira, (06), aos 73 anos, em Salvador. Para gente como a diretora baiana Fabíola Aquino, que produziu o documentário "Àkàrà no fogo da intolerância”, lançado em junho passado e que teve a participação do intelectual baiano, Sodré era um dos mais importantes griôs da Bahia.

A causa da morte do pensador, que também pesquisava as religiões de matriz africana, ainda não foi determinada, mas a suspeita é que ele tenha morrido de infarto. Sodré era professor da Universidade do Estado da Bahia (Uneb) e do Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia da Bahia (Ifba).

A morte dele, que era viúvo e deixou dois filhos, aconteceu  três dias após a perda de outra referência para a educação na Bahia, o professor Jorge Portugal, ex-secretário de Cultura do Estado, na segunda (03), por conta de um problema cardíaco.

Jaime Santana Sodré Pereira nasceu em 19 de fevereiro de 1947, em Salvador. Ele se formou em Desenho pela Escola de Belas Artes da Universidade Federal da Bahia (Ufba) em 1975. Fez ainda mestrado em Teoria e História da Arte, apresentando trabalho sobre a influência da religião afro-brasileira nas esculturas de Mestre Didi. Um dos seus livros trata desse tema.

Entre 1995 e 2011, Sodré publicou diversos artigos sobre a Cultura Negra, como a antologia ‘Literatura e Afrodescendência no Brasil’, e o livro ‘Da Diabolização à Divinização: A Criação do Senso Comum’, publicado pela editora da Ufba ( Edufba). Professor participou do documentário 'Akará no fogo da intolerância' (Foto: Reprodução) Durante toda a trajetória acadêmica, ganhou diversos prêmios, como o troféu Caboclo da Associação Cultural de Preservação do Patrimônio Bantu (2005), e o 2º lugar no Prêmio Funarte (2003), além de homenagens, como a medalha Zumbi dos Palmares, da Câmara Municipal de Salvador. Sodré também fez parte do Conselho do Olodum, entre o final da década de 1990 e o ano 2000. E era uma das fontes assíduas entrevistadas para o caderno CORREIO Repórter, publicado pelo jornal CORREIO entre 200o e 2006 e que resgatava em grandes reportagens, os   personagens e temas da história baiana. Gerações dejornalistas do CORREIO e de outros veículos baianos aprenderam sobre a cultura africana e baiana com Sodré. 

 Alabê e militante 

Sivanilton da Encarnação da Mata tinha 24 anos quando, em 1988, uma disputa entre o terreiro Ilê Axé Oxumarê e a administração municipal daquela época, quando o prefeito era o radialista Fernando José, agitou Salvador. Ele lembra que um comitê foi formado para defender o terreiro e se recorda da atuação de um homem em especial que, com voz firme e simplicidade, conseguiu resolver a contenda. Esse homem era o professor Jaime Sodré.

Três anos depois dos acontecimentos de 1988, Sivanilton assumiu o comando do Ilê Axê Oxumaré como Babá Pece e a amizade entre ele e o professor aumentou a cada ano.  Jaime Sodré também  acabou se tornando Ogã do famoso Terreiro de Bogum, no Engenho Velho da Federação, e era um frequentador assíduo de outras casas de Candomblé na cidade. Por isso, muitos pais e mães de santo lamentaram a morte do professor.“Ele era bastante atuante, não apenas na defesa como também na presença, e não era só de um terreiro, ele era defensor da religião em vários terreiros da Bahia. Cumpria as funções como Ogã e estava sempre bem-humorado. Ele participou da mesa em comemoração aos meus 50 anos e eu brincava que ele andava tanto aqui no terreiro que ele já era Ogã daqui. Estamos todos muito tristes com essa perda”, contou Babá Pece ao CORREIO. Com a influencer e jornalista Tia Má (Mayra Azevedo) em vídeo sobre história africana (Foto: Reprodução) Voz do povo de santo

Jaime Sodré era figura constante nas mesas que debatiam assuntos relacionados ao candomblé, e as palestras dele eram disputadas. Mãe Jaciara Ribeiro, ialorixá do terreiro Ilê Axé Abassá de Ogum, em Itapuã, contou que ele foi a voz do povo de santo em muitos momentos.

“Ele era um historiador, um escritor, mas sempre simples na forma como nos acolhia e as lutas dele sempre foram muito ligadas a fortalecer todo o povo de religião de matriz africana. Era figura presente e constante, ajudando como era possível. Ele contribuiu para o fortalecimento e o resgate da nossa cultura, isso foi muito importante. O legado que ele deixa é de um exemplo de professor e também de religioso. Estou muito triste e sentindo como se tivessem tirado um pedaço de mim”, afirmou Jaciara.

Foi no campo das religiões que o nome do professor entrou para a história. Sodré se dedicou a pesquisar a herança rítmica, religiosa e cultural de matriz africana na sociedade brasileira, e escreveu cinco livros sobre o tema. O resultado foram sete premiações ao longo da carreira. Com Juca Ferreira, Capinan e Clarindo Silva no Muncab (Foto: Marina Silva/Arquivo CORREIO) Acadêmico

A UNEB e o Ifba lamentaram a perda. Em nota, a Uneb destacou que Jaime Sodré era docente da unidade há 34 anos, e que possuía o título de doutorado pelo Programa de Pós-Graduação em Educação e Contemporaneidade (PPGEduC) da UNEB.“O docente foi também destacado ativista no combate ao racismo e à intolerância religiosa, tendo recebido prêmios e homenagens como o Troféu Caboclo, da Associação Cultural de Preservação do Patrimônio Bantu, e a medalha Zumbi dos Palmares, da Câmara Municipal de Salvador. Seu profissionalismo, inteligência e simpatia sempre foram destaque em sua atuação, assim como o cuidado com colegas e estudantes. A comunidade acadêmica desta instituição, consternada, deseja conforto aos familiares neste momento de dor”, diz a nota.Já o Ifba afirmou que a morte de Sodré é uma página triste na história da Bahia. “Enlutada, a comunidade do Instituto manifesta sua solidariedade a familiares e amigos do professor Jaime, que será sempre lembrado com a mesma deferência e admiração que inspirou ao longo de sua vida e trajetória como educador e pesquisador”. 

A Secretaria de Cultura do Estado da Bahia (Secult), disse em nota  que Sodré “destacou-se como grande estudioso da cultura negra e porta voz do movimento pela igualdade racial e contra a intolerância religiosa, tendo sido Xicarangoma do terreiro Tanuri Junssara e Oloiyê (conselheiro) do Bogum.

A família de Jaime Sodré não deu detalhes sobre a morte do professor. O enterro dele será no Campo Santo, na manhã desta sexta-feira (07), em cerimônia restrita aos familiares. Com Mãe Stella de Oxóssi, na edição de 2014 da Festa Internacional Literária de Cachoeira - Flica (Foto: Egi Santana/Divulgação) Repercussão nas redes sociais

A morte de Jaime Sodré movimentou as redes sociais nesta quinta-feira (06), com homenagens e lembranças de autoridades, amigos e jornalistas que conviveram ou entrevistaram o professor baiano. O governador Rui Costa e o prefeito de Salvador, ACM Neto,  lamentaram a perda do intelectual   nos seus perfis oficiais  no Twitter. 

Rui Costa escreveu:  “Nossos sentimentos aos familiares, amigos e alunos pela grande perda”. Já o prefeito ACM Neto, além de lamentar a perda do professor que contribuiu para "a compreensão de nossa identidade", desejou "que Deus dê muita força a seus familiares e amigos". 

O presidente da Fundação Gregório de Matos (FGM), Fernando Guerreiro, disse que o professor Jaime ‘sempre deu aulas de vida’. "Com um conhecimento ancestral, levava tudo com leveza e generosidade que encantava".

Ex-repórter do CORREIO, a diretora e roteirista Julia Ferreira também escreveu uma homenagem ao professor nas redes sociais: "Jaime tinha um lado místico muito forte, era leitor de almas".

Leia alguns depoimentos:"Uma das principais referências no Brasil em História da Cultura Negra, o professor e historiador Jaime Sodré deixa obra muito importante para a compreensão de nossa identidade" ACM Neto, prefeito de Salvador"É com profundo pesar que recebo a notícia do falecimento do historiador, escritor e professor Jaime Sodré. Doutor e grande referência em História da Cultura Negra"Rui Costa, governador da Bahia"Lamento a perda desse ícone cultural nacional, um verdadeiro acervo intelectual para nós"Fábio Nogueira, doutor em Sociologia e professor da Uneb"São dias tristes por sucessivas e dolorosas perdas de nossos  griôs, intelectuais e pensadores negros que nos deram lastro para melhor compreender o mundo repleto de contradições"Fabíola Aquino, diretora e produtora"Foi um dos grandes intelectuais que conheci. A nossa relação de fonte e repórter virou grande amizade, passei a considerá-lo um padrinho "Cleidiana Ramos, Jornalista e doutora em Antropologia

Prêmios e títulos:

2003 - 2o. lugar no Prêmio Funarte região nordeste, Ministério da Cultura / Funarte

2004 - Medalha 2 de Julho, Prefeitura de Salvador

2005 - Prêmio Caboclo: os e- ducadores de nosso povo, Associação Cultural de Preservação do Patrimônio Bantu - ACBANTU

2005 - Prêmio Ládurú Òré do NAFRO-PM, Núcleo de religiões de matriz africana - NAFRO da Polícia Militar

2008 - Prêmio Negros e Negras Exemplares, Faculdade de Tecnologia e Ciências - FTC

2009 - Professor Homenageado nos 100 Anos da Educação Profissional e Tecnológica da Bahia, Instituto Federal de Educação Tecnológica da Bahia (IFBA).

2009 - Medalha Zumbi dos Palmares, Câmara Municipal de Salvador

Livros publicados:

1 - 'As histórias de Lokoirokotempo: o candomblé’.  Salvador: editoria do autor, 1995. v. 01. 22p.

2 - ‘Manuel Querino: Herói da raça e classe’.  edição do autor, 2001. 179p .

3 - ‘A influência da religião afro-brasileira na obra escultórica do Mestre Didi’. EDUFBA, 2006. v. 01. 372p.

4 - ‘Uma historinha africana - Doúm, Alabá e o Senhor Elegbara em: A verdade tem dois lados’ , 2009. v. 01. 22p 

5 - ‘Da diabolização à divinização: a criação do senso comum. 01. ed. Salvador’: Editora da Universidade Federal da Bahia - EDUFBA, 2010. v. 01. 109p.