'Alemão revolucionou a música', diz fundador do Neojiba sobre Beethoven

Série de concertos marca 250 anos do compositor alemão

Publicado em 1 de março de 2020 às 08:00

- Atualizado há um ano

. Crédito: Foto: Karol Azevedo/Neojiba

O maestro baiano Ricardo Castro, fundador e diretor geral do Neojiba, tem uma relação especial com o compositor alemão Beethoven, a quem o grupo irá homenagear na temporada 2020, com apresentações em Salvador até dezembro.

Na hora de concorrer em concursos, a música escolhida é sempre dele, incluindo o Concerto Nº 5 para piano e orquestra (Imperador), que tocará novamente na abertura da série, no dia 12 de março, no Teatro Castro Alves.

Nesta entrevista, Ricardo Castro fala também sobre a importância do alemão para a música, sobre a gestão do Neojiba, que conta com quatro grupos orquestrais principais, e a sede no Parque do Queimado, na Liberdade, inaugurada em julho do ano passado. Confira:

Por que ouvir Beethoven? Beethoven conseguiu sintetizar o drama da existência humana como ninguém antes dele e como poucos depois dele. E somente através de notas musicais. Ele utiliza elementos hoje em dia considerados muitos simples musicalmente, mas cada obra dele pode ser considerada uma obra-prima. Isso tudo feito dentro de um contexto revolucionário. Ele foi contra as regras. Antes de Beethoven, o músico era sempre um empregado da corte. Mas ele conseguiu a alforria como artista e deu exemplo de que era possível o artista ter a sua integridade preservada, ser independente. Ele lutou por isso e transformou a história da música para nós que vivemos dela e com ela.

E qual é o seu diálogo com esse compositor? Beethoven é fundamental para a formação de qualquer músico e, obviamente, como estudante, eu sempre tive contato com esse compositor. Mas não somente isso. Ele tem um significado especial para mim, porque eu, nos concursos internacionais que me apresentei, sempre escolhi Beethoven como obra principal para concorrer e foram concursos que eu venci. O Imperador, concerto que eu vou tocar na abertura da série [Beethoven 250], foi o concerto com o qual ganhei o Leeds [International Piano Competition, um dos mais importantes do mundo, em 1993]. Então, eu tenho uma relação muito forte, acredito muito no que ele quer transmitir através da sua música. Fui atrás, justamente na Europa, daquilo que inspirou Beethoven para entender como o artista pode chegar onde ele chegou.

Como o Neojiba são vários núcleos, como é gerir tudo isso? Hoje, tem sido uma coisa muito mais prazerosa pelo fato de termos uma equipe excepcional, desde quem limpa o parque, passando pela comunicação e pelo acompanhamento psicopedagógico e social. A gente construiu, nesses 12 anos, uma equipe que é apaixonada pelo programa, que entende os fundamentos e o que a gente está fazendo aqui. O impacto que a gente causa na comunidade é muito relevante. Você saber que está transformando para algo melhor. Essa gestão, que pode parecer complexa, hoje flui com muito mais facilidade justamente porque a gente tem ferramentas de gestão bastante desenvolvidas. É isso que nos permite hoje rodar um grande montante e ao mesmo tempo ter o impacto em tantas cidades, uma gestão descentralizada [a cargo do Instituto de Desenvolvimento Social pela Música IDSM]. A gente sabe que o DNA está presente em todos esses núcleos [um total de 14, sendo o Núcleo Central Neojiba (NCN), em Salvador; 10 Núcleos de Prática Musical (NPM), sediados em diferentes bairros da capital e em outros dois municípios do estado, Simões Filho e Jequié; e mais três Núcleos Territoriais em Feira de Santana, Vitória da Conquista e Teixeira de Freitas].

O que a criança precisa ter para estar aqui? Para entrar, só precisa ter vaga, que é a nossa luta: abrir mais vagas. A gente não tem nenhum outro pré-requisito. Eu acho que as crianças querem entrar e precisam de mais vagas, não somente aqui como em escolas de qualidade, em ambientes de formação que sejam acolhedores, competentes e bem estruturados. Precisamos oferecer mais vagas com esse patamar de qualidade. O Neojiba fez a opção de não abrir mais vagas a não ser que a qualidade seja garantida. Mas tem funcionado. Obviamente é um processo mais longo, para que mais crianças possam entrar, mas a gente acredita que é o certo. Precisamos dar o exemplo de que, fazendo bem feito, o resultado acontece.

Numa sala como essa, a gente se sente muito bem. Tem consciência dessa sensação sobre a qual as pessoas comentam? Tenho consciência de que a música é fundamental para o ser humano e que os espaços de usufruto são determinantes para o impacto que ela pode causar. Por isso, nós criamos uma sala onde a gente pode ouvir o silêncio também, porque a música é feita de sons e de silêncios. Entrando aqui na sede do Neojiba foi onde muitos na Bahia ouviram o silêncio pela primeira vez. O espaço permite que a música aconteça. É a sensação rara de que as pessoas estão em contato com o que há de melhor. Não é questão de primeiro, segundo ou terceiro mundo. É o que o ser humano pode fazer de melhor. Eu luto muito por isso, independentemente de onde ele esteja, na África, na Índia, na Bahia. Não é questão de tocar tambor, berimbau ou violino, é o que o ser humano pode fazer de melhor, de mais elaborado, até onde ele pode ir nos seus limites e não ficar no que é mais fácil. Quando a gente ultrapassa esse limite é que a transformação acontece. E ela é para sempre. Quando você abre os seus olhos para algo, eles não se fecham nunca mais. Uma vez, um grande artista me mostrou que nas árvores tinha um monte de prata, de cinza, eu só via verde, mas nunca mais deixei de ver isso. Mas alguém precisou me mostrar. O ser humano tem capacidades extraordinárias, e a gente acredita que é com a criança que esse desenvolvimento deve ocorrer primeiro. Músicos do Neojiba se apresentam durante turnê internacional (Foto: Karol Azevedo/ Divulgação) Filmes para conhecer Beethoven*:

O Segredo de Beethoven, 2005 – Agnieszka Holland O filme se estrutura a partir da improvável relação entre um Beethoven já surdo e irascível e a figura fictícia da copista Anna Holtz, uma jovem compositora de 23 anos que se oferece para transcrever a partitura da Nona Sinfonia, às vésperas de sua estreia. Ed Harris personifica o músico revolucionário

Minha Amada Imortal, 1994 – Bernard Rose Biografia romanceada a partir de uma carta efetivamente encontrada no espólio do compositor, em que ele se refere a uma misteriosa “amada imortal”. Através de um suposto melhor amigo, o filme vai entrelaçando a busca pelo grande amor de Beethoven com passagens da sua biografia. Gary Oldman faz um Ludwig mais contido e entre seus possíveis amores, reluz a personagem de Isabela Rosselini

Laranja Mecânica, 1971 – Stanley Kubrick  A música de Ludwig van Beethoven é a única paixão na vida de Alex, personagem ultraviolento do clássico Laranja Mecânica. E através dela, ele será exemplarmente punido e condicionado a conter seus instintos e sofrer a violência intrínseca de uma sociedade hipócrita

*Seleção dos filmes feita pela editora de Fotografia do CORREIO, Sora Maia