As cegonhas do bico de sapato estão no meio de nós

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  • D
  • Da Redação

Publicado em 24 de junho de 2018 às 05:00

- Atualizado há um ano

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C.B.S. – abandonada pelo marido, que a usou para fins de procriação e depois pegou a estrada para nunca mais voltar – mora na esquina da rua da amargura com o beco da fome, sem número. Sobrevive de sobras, quando encontra sobras. Bebe água quando acha água de chuva empoçada n’algum buraco. [Pena. Há mais buracos do que chuva nos lugares por onde  mama C.B.S. circula].

 Passa frios glaciais e calores tórridos com a mesma quantidade de vincos e rugas no rosto magro, hirsuto e totêmico. Está se lixando para mudanças climáticas sejam de grandes, de médias ou de pequenas magnitudes. Mama C.B.S, é, em si mesma, mudança ambiental ambulante. [Vai onde a vida lhe pode ser menos impossível, e nesses lugares sempre inóspitos vive durante meses, ou dias, e segue a saga que lhe cabe neste imenso latifúndio].

O marido que a abandonou sem culpas – é da natureza dele, do macho – deixou legado: C.B.S. 1, de treze meses, e C.B.S. 2, de quatro. Inoperantes, dependem da força de mama C.B.S, para sobreviverem, ou não.

Ainda inaptos para conseguirem água e comida, ficam em ‘casa’ à espera de que a mãe lhe traga suprimentos. A mãe – é da natureza dela, e, além do mais, não está fácil encontrar água e comida nesses dias inóspitos – deixa os filhos sozinhos, à própria sorte, e parte.

Enquanto a mãe busca água e comida e fica fora o tempo suficiente para a ‘devoragem’ se processar, C.B.S. 1, mais velho e mais forte, faz da vida de C.B.S. 2 batalha inglória. Fura-lhe os olhos, e, cheio de fome, lhe devora 1 braço e 1 perna. A partir de então o caçula do clã fenece lentamente.

Quando mama C.B.S. volta para casa, carregando nas costas as provisões minguadas que conseguiu catar, não encontra mais dois filhos. Encontra apenas um filho e meio. [C.B.S. 1 ainda demonstra algum vigor. C.B.S. 2 não demonstra vigor algum e rasteja pelo chão enlameado mais morto do que vivo].

Semimorto e carente, C.B.S. 2 se arrasta em busca do aconchego de mama C.B.S., que, pragmática, o ignora e o rejeita. Abandona-o à míngua – em questão de horas, o filhote derrotado morrerá – e segue, decidida, ao encontro de C.B.S. 1.

Mama C.B.S. aposta no filho que poderá sobreviver:  dá-lhe água para beber, comida para comer, e algum carinho torto que o estimule a continuar vivo.

Tem de ser econômica nesses carinhos – mama C.B.S. sabe disso. Se exagerar na dose, pode estragar o filho e torná-lo inapto a enfrentar mundo sem carinho algum, onde a lei da selva impera.

Esse ritual de iniciação dura o tempo necessário para que se C.B.S. 1 se torne capaz de se virar sozinho. Quando isso acontecer, mama C.B.S. perceberá e o enxotará de ‘casa’ sem pejo algum.

[O narrador poderia estar querendo fazer alguma ilação sobre nós, seres ditos humanos, e está de fato fazendo alguma ilação sobre nós, seres ditos humanos. Ao relatar com certa frieza e crueza o modo de vida das cegonhas do bico de sapato que habitam a África Oriental, traça simulacro da nossa condição humana neste 2018 D.C.] [Somos cegonhas do bico de sapato em processo].