As redes que balançam as eleições: internet revoluciona cenário da disputa no país

Para especialistas, esta foi a eleição das redes sociais

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  • Thais Borges

Publicado em 28 de outubro de 2018 às 03:00

- Atualizado há um ano

. Crédito: O forte papel das redes sociais marcou as campanhas de Jair Bolsonaro (PSL) e Fernando Haddad (PT)

Cadê o santinho? É, aquele de papel mesmo. Alguém até distribuiu aqui ou ali, mas a verdade é que eles sumiram. No lugar dos mini-panfletos, e dos longos minutos de campanha na televisão, entraram cards digitais, publicações nos ‘stories’ de Instagram e Facebook, além dos vídeos, fotos e links compartilhados no WhatsApp.

Depois de 52 dias oficiais de campanha no primeiro turno e outros 20 no segundo, a conclusão de especialistas é a mesma: essa foi a eleição das redes sociais. Pelo visto, foi como se a transição de um meio para o outro – iniciada globalmente lá em 2008, com a eleição de Barack Obama, nos Estados Unidos – finalmente tivesse se completado. E veio a cristalizar logo aqui, logo agora, na corrida presidencial que levou ao embate entre Jair Bolsonaro (PSL) e Fernando Haddad (PT). 

De fato, em tão pouco tempo, o mundo mudou. Em fevereiro deste ano, o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) divulgou que, em 2016, o Brasil já tinha 116 milhões de pessoas conectadas à internet – isso equivale a 64,7% da população com idade acima de 10 anos. 

Os dados são da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua (Pnad), que ainda revelou que 77,1% dos brasileiros têm algum celular. Entre os internautas, o celular é justamente o mais usado para acessar a internet – 94,6%. Fica à frente de computadores (63,7%), tablets (16,4%) e televisões (11,3%).

A campanha foi outra; o resultado, possivelmente, terá alguma influência do desempenho em redes sociais. No meio do caminho, reforçaram-se discussões sobre notícias falsas, a importância da checagem de fontes e de um jornalismo de credibilidade. Só para dar uma ideia, esta semana, uma pesquisa do Instituto Datafolha mostrou que praticamente metade dos eleitores que usam o WhatsApp diz que acredita nas notícias que recebem pelo aplicativo – são 47%, contra 53% que dizem não acreditar. 

Para entender melhor esse contexto, o CORREIO ouviu seis pesquisadores da Ciência Política e da Comunicação Política de diferentes instituições. A pedido da reportagem, eles responderam como eram as campanhas políticas antes do uso das redes sociais, quais são os marcos de mudança e em que as eleições de 2018 diferem das anteriores. 

Tempo de televisão O contexto era outro.“Antes das redes sociais, os candidatos dependiam da mídia tradicional e do horário eleitoral para alcançar seguidores”, diz a doutora em jornalismo e pesquisadora de comunicação política Rachel Mourao, professora da Michigan State University (Estados Unidos).  Rachel Mourao, professora de Jornalismo da Michigan State University, explica que os candidatos dependiam da mídia tradicional (Foto: Acervo pessoal) Cada partido tem direito um tempo de televisão, calculado a partir do número de deputados federais eleitos na eleição anterior. E isso, como a professora Rachel explica, acaba servindo como moeda de troca em negociações de apoio – ou seja, na soma de quantos minutos cada partido acrescenta à coligação. 

Foi assim que no primeiro turno, com uma coligação com nove partidos, Geraldo Alckmin (PSDB) teve direito a 5min32s. Haddad, numa coligação com quatro legendas, 2min23s. No fim, Alckmin ficou em quarto lugar, no primeiro turno, atrás de Ciro Gomes (que tinha 38 segundos). 

Além disso, existia muito ‘corpo a corpo’. “Tinha muita propaganda entregue nas ruas, comícios... Lembro muito da eleição de 1989, o (Leonel) Brizola gostava muito de discursar em público, o Lula já tinha sua capacidade de retórica para muito público, tinha a ver com as Diretas Já, para grandes multidões”, lembra a professora Maria do Socorro Braga, da pós-graduação em Ciência Política da Universidade Federal de São Carlos (UFSCar). 

Se pensarmos em antes de 1989, então, é possível até destacar maior atuação dos próprios partidos, da militância em si. Depois, com o desenvolvimento do marketing político nas campanhas, as lideranças partidárias dão espaço aos experts da propaganda nas estratégias de campanha.  

Só que, aos poucos, algumas possibilidades vão acabando. A legislação eleitoral foi se transformando e proibindo alguns itens que eram comuns – foi o caso dos showmícios, em 2006. Ao mesmo tempo, a propaganda na televisão se fortalece.“Chamamos de democracia de público, porque as pessoas ficavam assistindo, em casa, as manifestações de seus candidatos, ao invés de assistir nas ruas”, cita a professora Maria do Socorro.  A professora Maria do Socorro explica que, durante o domínio da televisão, as pessoas começaram a ficar em casa (Foto: Acervo pessoal) Com as manifestações de junho de 2013, porém, novos públicos começam a ir às ruas – e isso tem a ver, inclusive, com as redes sociais. “São novas formas de ir às ruas, inclusive com grupos acionados pró ou contra. Tivemos certas campanhas de Bolsonaro em um dia, de Haddad no outro dia. Haddad foi às ruas, Bolsonaro foi às ruas, depois teve o acidente e ele não foi mais”, exemplifica. 

É possível citar dois marcos globais que indicam a mudança na forma de fazer campanha. Um deles é justamente a primeira vitória do estadunidense Barack Obama, em 2008. O segundo é a eleição de Donald Trump, em 2016, quando o mundo começa a se preocupar com o impacto das fake news – notícias falsas, em bom português – difundidas através das redes sociais. 

Militância virtual Tudo isso converge para o cenário do Brasil em 2018, em que a própria militância deixa de ser só de rua e passa a ser uma militância virtual, como reforça o professor Maurício Ferreira da Silva, cientista político da Universidade Federal do Recôncavo da Bahia (UFRB). 

Para ele, isso não quer dizer que o contato presencial perca validade, mas que existe uma outra maneira de interagir com o eleitor, que não é apenas presencial. “Um candidato que não vai à fábrica, que não entra num bairro popular, que não passa pela rua... Essa pessoa não consegue interagir com o dia a dia da população, que não é só informacional. É um dia a dia prático”, reflete. 

Assim como nos EUA em 2016, o Brasil não ficou livre de fake news nas eleições de 2018. Esta semana, a chefe da missão da Organização dos Estados Americanos (OEA), que acompanha as eleições no Brasil, Laura Chinchilla, declarou que o uso do Whatsapp para disseminar notícias falsas no país é um “fenômeno sem precedentes”. 

Após o primeiro turno, uma reportagem da Folha de S. Paulo revelou a atuação de empresários na compra de pacotes de mensagens com o objetivo de divulgar mensagens contrárias a Fernando Haddad – os pacotes incluíam cotas de até R$ 12 milhões. Em seguida, a pedido da procuradora-geral da República, Raquel Dodge, a Polícia Federal (PF) instaurou um inquérito para apurar fake news relacionadas aos dois candidatos à Presidência. Já nesta semana, a Polícia Federal solicitou, ao Whatsapp, a lista dos números que fizeram disparos em massa. “A Justiça Eleitoral reconhece a existência das redes sociais, mas ela não tem mecanismos de controle e cerceamento”, critica o professor Maurício.Ele explica que, se algum candidato divulgar alguma mentira sobre outro na televisão, o adversário ganha direito de resposta. Nas redes sociais, não dá para fazer isso. Um dos lados vai ficar prejudicado. 

Mas esse problema não é só na política. Qualquer um está vulnerável a isso – e pode nem ficar sabendo de que está sendo alvo de ofensas no Whatsapp. A professora Rachel Mourao, da Michigan State University, diz que precisar o impacto do Whatsapp nas eleições é muito mais difícil do que do Facebook ou do Twitter. 

Isso porque o Whatsapp é uma plataforma de pessoa-pessoa ou pessoa-grupo, com mensagens E2EE (End to End Encryption, ou seja, criptografadas de ponta a ponta). “Nos meus estudos no Twitter e Facebook, por exemplo, dá para coletar os dados e medir com alguma precisão quantas pessoas curtiram, retuitaram, etc. No Whatsapp não, então fica difícil saber o impacto das mensagens no contexto da campanha (quantas pessoas viram determinada mensagem)”. 

Sem diálogo Na avaliação do professor Luiz Nova, do curso de Comunicação Social com habilitação em Jornalismo da UFRB, perde-se a oportunidade de diálogo.“É uma intervenção direcionada, não oferecendo opiniões. O que você diz é isso e o resto é um lixo. Nesse sentido, o conservadorismo sai ganhando, porque quem não gosta de debater é quem tem uma predisposição a conservar”, pondera Nova. Ele diz que, justamente pela falta de debates, as redes sociais podem favorecer a construção de ‘ilhas pessoais’. Quando a pessoa forma a opinião, ela acaba sendo estritamente privada e não abre para o debate social. 

Por isso mesmo, o professor da Unifacs Antônio de Freitas Netto, especialista em Comunicação, Marketing e Mídias Digitais, destaca que, nessas eleições, a ‘contra-informação’ acabou tendo tanto ou mais destaque que a informação em si. Como resultado, os candidatos tiveram que usar seus espaços na televisão para fazer uma desconstrução do que era dito nas redes sociais. 

Freitas Netto compara a situação até com o livro A Arte da Guerra, de Sun Tzu. Antônio Freitas Netto afirma que, na TV, os candidatos precisaram usar o tempo para desconstruir o que era dito nas redes sociais (Foto: Acervo pessoal) “É aquele conceito de que você não só defende o seu ponto de vista, como também ataca o seu adversário. O povo brasileiro entra nessa jogada, porque as hashtags partem do povo, não do marqueteiro do PT ou do marqueteiro do Bolsonaro. Essas ferramentas foram usadas de forma maestral. Pena que o conteúdo nem sempre condizia com a realidade”, diz Netto. Forte engajamento Depois de conhecer esse cenário, pode parecer estranho dizer que muita gente considerava Bolsonaro um azarão. Mas, com seus oito segundos de tela, foi isso que aconteceu.

Até mesmo entre os pesquisadores da área, como explica o professor Camilo Aggio, do Departamento de Comunicação da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), a maioria acreditava que as variáveis eleitorais tradicionais – como o tempo de tela e as alianças a partir disso – se manteriam. Até a campanha começar, efetivamente. 

“Eu não faço parte dessa categoria. Faço parte de uma categoria minoritária porque, há dois anos, venho alertando para Bolsonaro como um fenômeno político e eleitoral que já vinha se formando há algum tempo, pelo que ele fazia em redes sociais, não apenas no Whatsapp. Você tem que pensar em Jair Bolsonaro com base no que ele vem fazendo há mais de dois anos no Twitter, no Facebook, no Instagram, assim como aquilo que as pessoas fazem por ele”, diz. 

Ele associa o “fenômeno” à ascensão de outros agentes – gente que não necessariamente é da política, mas que fala de política e que ganhou notoriedade nos últimos tempos. É o caso dos cantores Lobão, Roger (Ultraje) e Tico Santa Cruz, além das ex-jogadoras de vôlei Ana Paula e Ana Moser e do apresentador Danilo Gentili. “Essas celebridades vão ganhar uma nova notoriedade pública a partir do modo como conseguem atingir pessoas em redes sociais. Tem um contexto de natureza estritamente política, mas a gente não pode deixar de observar que o nosso ecossistema mudou a tal ponto que nós temos, inclusive, o resgate de certas celebridades que estavam no ostracismo, pela forma como vêm falando de política em redes sociais”, explica Aggio.O que o candidato produzia nas redes acabava gerando uma imensa quantidade de engajamento – ou seja, compartilhamentos, menções e replicações. Isso, segundo Camilo, era maior do que dos outros candidatos há um ano e meio, quando figuras como Ciro Gomes, Marina Silva (Rede), Guilherme Boulos (Psol) e até Manuela Dávila (PCdoB), que disputa a vice-presidência na chapa de Haddad, estavam presentes.

“Alckmin, Marina e Ciro tinham mais seguidores do que Bolsonaro (na época), mas tinham uma atenção muito menor”, diz. 

Cenário inédito Mesmo com a lembrança de Obama, em 2008, Aggio é mais cauteloso. Naquela época, de fato o democrata tinha se apropriado de plataformas e recursos digitais, mas não vinha de um partido tradicional, com recursos tradicionais. 

“Bolsonaro está numa legenda pequena, que escolheu de última hora e não tem recursos declarados. Não tinha alianças, nem penetração em outras regiões do Brasil. A gente pode até pensar em Bernie (Sanders), nos EUA, ou Howard Dean, em 2004, que foi embrião da campanha de Obama. (Dean) Era um cara que se destacou pelo uso da internet, mas não ganhou nem as primárias”. 

Naquele ano, Dean só teve 5,6% dos votos para ser escolhido como o candidato do Partido Democrata dos EUA, ficando em terceiro lugar. O candidato escolhido, John Kerry, perdeu para o ex-presidente George W. Bush, que era candidato à reeleição. 

O professor Maurício Ferreira é um dos que defende que é preciso existir uma legislação específica para as campanhas em redes sociais. Segundo ele, é possível fazer o rastreamento da origem das mensagens, em caso de fake news. As empresas que fornecem o serviço também devem fiscalizar as regras. 

“As redes têm como criar mecanismos, mesmo que automáticos, para cercear aquilo (a disseminação de notícias falsas). Se você tem uma onda de fake news, a gente pode escolher uma pessoa com base em mentiras e condenar alguém com base em mentiras. Se a gente não combate isso na política, vai para a vida privada e a rede social vai deixar de ser uma coisa benéfica”, pondera. 

Entenda a cronologia1989 - Nas primeiras eleições diretas após a ditadura militar, vencidas por Fernando Collor, a marca eram os discursos para multidões. Leonel Brizola e Lula se destacam nesse quesito.  Anos 1990/Início dos anos 2000 - A propaganda televisiva fica cada vez mais forte e faz com que as pessoas acompanhem as propostas dos candidstos 'de casa'.  2004 - Nos Estados Unidos, Howard Dean, que disputava as primárias do Partido Democrata, usa plataformas digitais na campanha. Não adiantou e ele foi o terceiro colocado na disputa para representar o partido contra George W. Bush.  2006 - Justiça Eleitoral proíbe comícios  2008 - Barack Obama é eleito presidente dos EUA e analistas apontam essa eleição como um marco no uso de ferramentas digitais.  2014 - Nas eleições presidenciais do Brasil, nota-se uma presença maior das redes sociais. Ainda assim, as variáveis eleitorais tradicionais dominam o pleito, vencido por Dilma Rousseff.  2016 - Nos EUA, Donald Trump é eleito presidente em uma eleição que despertou o mundo para a preocupação com as chamadas fake news.