Barra 69 vai virar filme; cineasta conta detalhes da concepção e produção

Show de despedida de Caetano e Gil no TCA rumo ao exílio completa 50 anos

Publicado em 21 de julho de 2019 às 06:36

- Atualizado há um ano

. Crédito: Foto: Artur Ikissima/Divulgação

Estava no extinto sebo de discos Berinjela em 2004, quando encontrei o LP Barra 69 e achei curiosa aquela capa vermelha de letras verdes. Não conhecia este disco de Gil e Caetano – não tinha a recordação de tê-lo visto na coleção de meu pai, fã de carteirinha de Gilberto Gil. Fiquei olhando para ele, tentando decifrá-lo, até que meu marido à época veio até mim, entusiasticamente falando que eu tinha às minhas mãos um registro histórico e raro do último show que Gil e Caetano fizeram em Salvador antes do exílio; que o show tinha acontecido no Teatro Castro Alves, no mesmo dia e hora que o Homem tinha pousado na Lua; e de que esta apresentação teria sido um brado de resistência à ditadura vigente na época.

Tudo aquilo, até então, desconhecido para mim, incendiou minha cabeça. E, tomada pelo frisson do Eureka, eu disse minha frase lapidar, que sempre antecede minhas obsessões cinematográficas: “Nossa, isso dá um filme!” E pensei com os meus botões: “Um documentário que reencene este show antológico...” Saí do sebo remoendo aquilo, e assim começou o processo de Um Axexê para a Tropicália, documentário que quer dar conta de como os rastros e vestígios do trabalho dos tropicalistas puderam traçar sua perspectiva artística. Foto: Artur Ikissima/Divulgação O documentarista, assim como todo artista, adere a um olhar, a um modo de ver o mundo; e minha sensibilidade de artista foi emulsionada – tal como os nitratos de prata de uma película de filme –, pelo ideário de Gilberto Gil e Caetano Veloso, num trabalho de memória, não no que ela tem de memorialista ou de arquivo. Fui chamada a pensar em uma memória fabuladora.

Assim, as versões levantadas nos livros (biográficos, autobiográficos e históricos) que contam a história do último show de Gilberto Gil e Caetano Veloso antes de irem para o exílio; bem como os materiais de pesquisa encontrados sobre; ou as entrevistas com pessoas diretamente envolvidas com o show (seja porque o assistiram ou porque fizeram parte de sua realização), servirão como substrato para experimentar uma escrita dramatúrgica e uma posta em cena a partir da reelaboração amorosa deste material/memória.

Com 90 minutos, o documentário, que será gravado no ano que vem, reinventa aquela apresentação antológica e, a partir daí, representa o momento histórico, convidando a audiência não só a se informar sobre o que aconteceu, mas também a vestir a pele de Gil e Caetano e de todos aqueles que foram esfolados de sua liberdade durante os anos de chumbo da história recente deste país.

Neste contexto, ouso usar a metáfora do Axexê que, no Candomblé, é o ritual fúnebre que dessacraliza o corpo sem vida, liberando o orixá protetor que aí reside.  É um evento performativo, uma celebração da vida que continua após a morte; da alma e da ancestralidade que pairam e se encarnam no pensamento. Peço licença para usar o Axexê poeticamente, em uma perspectiva simbólico-metafórica, trabalhando com o conceito de que o conjunto de três shows que recebeu o apelido de Barra 69 celebrou o fim da Tropicália enquanto movimento músico-comportamental, mas determinou o seu legado na música pop no Brasil, reinterpretando a cultura nacional com irreverência e insubordinação. Axexê como esta dicotomia intermediada de morte-vida, que desvirtua deliberadamente o real e transubstancia a memória, tornando-a potente, transformadora.

Sim: foi como se as três últimas apresentações que os cantores e compositores Gilberto Gil e Caetano Veloso encenaram no palco da Sala Principal do Teatro Castro Alves, em Salvador, nos dias 20 e 21 de julho de 1969, despedindo-se do país uma semana antes de partirem para o exílio, tivessem liberado, com som e fúria, o espírito vanguardista, para que ele se infundisse em tudo o que apareceu em seguida: na Marginália e na Contracultura; nos Novos Baianos e nos Mutantes; na pujança de Gal Costa; e em todo o eco libertador que ressoou e ressoa na MPB até hoje.

Assim, para meu engenho documental, a cerimônia do Axexê serve de dispositivo tanto conceitual quanto narrativo. O Axexê enquanto cerimônia, dança ritualística, legado... e enquanto espaço de criação. Esta proposta de apropriação conceitual pode parecer ousada e pouco respeitosa, mas ela está atenta à definição do axexê como um espaço de memória e rememoração dos antepassados. E o documentário estará comprometido com esta remissão ao que aconteceu, enamorada, encantada, emotiva. Em como afetividade e memória impregna a pesquisa, o material de arquivo e as entrevistas sobre este espetáculo, com vistas a transubstanciar essas instâncias em uma reencenação da magia daquelas três apresentações.

E o “carrego” (carrego, no Axexê, são os objetos de estima do morto, que está impregnado de sua vida e que faz os vivos lembrarem dele) do meu axexê documental serão as entrevistas, os objetos da Tropicália, dos artistas, as letras das músicas, o material reunido na pesquisa, as músicas propriamente ditas. Em jogo, a sensação e o sentimento que essas coisas, fragmentadas ou no todo, despertaram em mim, enquanto cineasta, e nos atores, dançarinos e performers que estiverem presentes. Também farão parte dessa reencenação artistas da música contemporânea, não para atualizar o movimento, mas para demonstrar o quanto a Tropicália segue atual.

Dessa forma, a desconstrução do espetáculo original Barra 69, para reconstituí-lo e ressignificá-lo artística e historicamente em forma de documentário, estará amparada em um processo de subjetividades e experiências que gestam conceitos e práticas, apagando as fronteiras entre objeto de estudo e sujeito de análise. Tal como, na minha compreensão simbólica, fizeram Gil e Caetano, ao saírem da prisão, ver que nada mais havia ali, e que a partida para o exílio se fazia inevitável. Ao levarem o corpo insepulto da Tropicália para o Teatro Castro Alves, a dupla de baianos celebrou condignamente a morte do movimento e seu renascimento como legado, com o conjunto de seus elementos característicos, o ‘carrego’ da sua existência aqui na Terra – suas músicas, poéticas, significados, danças, performances –, para uma plateia que precisava ter a dimensão daquela morte e conviver com o luto dela.

Caetano deixa entrever isso no texto-manifesto, que termina sendo reproduzido como depoimento seu em jornais na época: uma colcha de retalho de imagens, referências, trechos de músicas e fragmentos de realidade para o programa do show que ele conjura em uma redação jorrada, impetuosa, dançarina – como se fosse um conjunto de coisas amadas, emocionadas... um carrego, que ele intitula de Barco vazio – mesmo título que ele depois dá à composição Empty boat, que consta do segundo disco que lançou, Caetano Veloso:

“Há muitos e muitos anos que não há nada a dizer. João Gilberto, Roberto Carlos, Jorge Ben. Ninguém é profeta fora de sua terra. Bob Dylan. Ninguém. A doce música brasileira com turbinas a jato-propulsão, nada mais. Não há proposta, nem promessa, nem proveta, nem procela. Ninguém. Janis Joplin. Apenas meu pai, minha mãe e eu e meus irmãos, a quem dedico estes restos de empolgação. O gênio é uma longa besteira: eu quero a geral. Agradecimentos especias a Vivaldo Costa pelas histórias do Cinema Olympia. Há o enigma e a falta de paciência para decifrá-lo, no momento.
Oportunamente apresentaremos para vocês algo mais... mais... mais... mais... mais... sei lá... algo mais divertido - disse o palhaço vaiado. Assim esperamos - disse a platéia, já agora morrendo de rir. O grande sucesso do palhaço. Esta e outras histórias não serão contadas agora porque não há tempo. Viva a rapaziada. Não há tempo para lenga-lengas. Pepeu, pegue sua guitarra e toque! Tristes tropeços, trastes típicos, tristes trópicos, antigos trocadilhos. Viva a música. Viva Alice e a carne de sol com pirão de leite. Viva a sorte e o bom humor. Viva o Esporte Clube Bahia. Mais um: Viva as inúteis conquistas da linguagem. ADEUS”. O long-play Barra 69 só foi lançado em 1972, após os dois retornarem do exílio (Foto: Reprodução) Barra 69, em linhas gerais Sem dinheiro para bancar a viagem e/ou se manter no exílio, surgiu a ideia de um show que, ao mesmo tempo serviria para angariar fundos e para ser uma ato de despedida. E assim foi Barra 69 nos dias 20 e 21 de julho de 1969, realizado em três sessões – uma matinê no dia 20 e mais duas sessões noturnas –, no Teatro Castro Alves. Foi a primeira aparição da dupla tropicalista num palco brasileiro desde as gravações do programa Divino Maravilhoso, em dezembro de 1968. E a última, até a volta do exílio, em 1972. Coincidentemente, a primeira apresentação do show Barra 69 calhou de ser no dia em que o homem pôs os pés na Lua.

Apesar da aura de tristeza e impotência, o show foi uma celebração à liberdade, e à força da arte e da música como um eficaz instrumento de contestação, denúncia e, principalmente, de vanguarda. Deste show, que reuniu uma plateia de duas mil pessoas, incluindo nomes como Jorge Amado e Augusto de Campos, saiu um registro: o disco Barra 69, considerado o testamento da Tropicália. Ainda que gravado precariamente, é um documento fundamental para entender o amálgama política-arte da história recente do país.

Do show, participaram Gilberto Gil (direção Musical); Caetano Veloso (direção geral); Paulo Lima e Roberto Santana (produção); Pepeu Gomes (guitarra); Jorginho Gomes (bateria); Carlinhos Gomes (baixo); Lico (2°guitarra); Conjunto Folclórico da Bahia e Escola de Samba do Garcia (participação especial); Perinho e Djalma (gravação ao vivo no Teatro Castro Alves); e Artur Ikissima (fotos).

Não raro também a crítica se refere ao disco que resultou das apresentações como uma obra menor na discografia dos artistas, sem se referir ao peso que ele teve como divisor de águas nas carreiras de Caetano Veloso e Gilberto Gil. Ele foi o marco da perda da inocência dos dois artistas e da busca por outras sonoridades pós-Tropicália; ele estabeleceu um intercâmbio concreto entre a geração tropicalista e a nova geração musical que surgia deste caldo, e que ficou no Brasil, para fundar, por exemplo, os Novos Baianos - Pepeu Gomes, por exemplo, tocou guitarra em Barra 69, com os irmãos, no grupo Leif's -; e, sobretudo, Barra 69 se inscreve na história da música brasileira como um grito abafado e surdo de liberdade num Brasil que amargava os rigores do obscurantismo de um regime ditatorial.

E foi a sonata do adeus “de uma fase da carreira de Gil e Caetano”, como disse o empresário e produtor carioca tropicalista Guilherme Araújo. Foi o adeus à Tropicália enquanto revolução comportamental de uma época. E, principalmente, da utopia própria dos finais dos anos 60, de querer mudar a árida realidade do país através da arte, da contracultura, da contramão do pensamento “careta”, que não estava “entendendo nada”, como vomitou Caetano na performance de É Proibido Proibir, no III Festival Internacional da Canção, em setembro de 1968.

Por isso, Barra 69 foi para eles, também, um momento catártico de todo absurdo que sofreram. Não obstante haver sido concebido com o pretexto de angariar dinheiro para que Gilberto Gil e Caetano Veloso deixassem o país em regime de exílio, Barra 69 não conseguiu levantar o dinheiro que a dupla tropical precisava, apesar de duas mil pessoas terem estado nos dois dias, nas três sessões. Mas o intuito era muito menos esse e bem mais usar o palco para extravasar a dor de um projeto que foi sufocado, não só de mudança da arte, como de mudança de um país. Como atesta Roberto Santana, em entrevista concedida a mim, e que será parte do documentário Um Axexê para a Tropicália:

“Imagine você, eu tô cantando aqui pra juntar um dinheiro pra ir embora da minha terra, da minha família, era uma barra isso, pra eles, né? (...) Eles foram pegos de surpresa. Quem imaginaria que Gil e Caetano se tornariam o bode expiatório naquele momento político brasileiro? Só porque fizeram a Tropicália? Que até hoje não conseguiram apagar?”

Ao encerrar o breve ciclo de um ano e dois meses da Tropicália (oficialmente, outubro de 1967 a dezembro de 1968, já que muito teóricos colocam como marco do final do movimento a prisão de Gilberto Gil e Caetano Veloso, em 27 de dezembro de 1968), o show Barra 69 corta a árvore tropicalista do terreno cultural do país, para, em seguida, vir a ará-lo com as sementes da contestação, com vistas a “regenerar o tecido cultural brasileiro”, como coloca Frederico Coelho, no livro Eu, brasileiro, confesso minha culpa e meu pecado – cultura marginal no Brasil das décadas de 1960 e 1970 (2010). O próprio Gilberto Gil reconhece, no livro Disposições amoráveis (2015), em entrevista ao estudioso norte-americano Christopher Dunn e à autora Ana de Oliveira, a continuidade inspiradora do Tropicalismo, mesmo após a sua morte, com a saída dos cabeças do movimento para o exílio:

“O Tropicalismo é um movimento cuja maturação e cujo momento de maior riqueza se dão depois do Tropicalismo. O Tropicalismo foi um bebê sufocado. (...) Não acabou, porque teve essa continuidade com os trabalhos que fomos fazendo depois do exílio. Caetano fez Transa, um disco monumental, bem mais inovativo. E os meus trabalhos, a partir do Expresso 2222, vão inspirar um monte de gente aqui no Brasil, proporcionar elementos instigadores e estimuladores para muita coisa, para Ney Matogrosso, os Novos Baianos, Hermeto Pascoal, Egberto Gismonti e tanta gente que vai dizer: “que bom que temos um chão que nos sustenta e podemos fazer as estripulias todas que quisermos, podemos dar nossos pulos aqui nesse salão porque o chão tropicalista deu uma base”. (...) O florescimento mesmo da coisa tropicalista em nós se deu no pós-Tropicalismo. Em mim, em Caetano, em todos nós. O Tropicalismo vive a plenitude em seu momento pós.”

Com o Tropicalismo assassinado em seu auge, urgia fazer daquele show um axexê do movimento e uma espécie de despedida da inocência. Um show que encerraria de vez aquele capítulo da história do Brasil, da relação ditadura X arte e cultura brasileiras. Barra 69 foi um refluxo da euforia tropicalista – a última ousadia.