Cafetina e proprietária de um tradicional brega, D. Cabeluda é um mulherão

Por Flávia Azevedo

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Publicado em 17 de agosto de 2018 às 05:00

- Atualizado há um ano

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Prostituição, empoderamento e solidariedade O sol já quase  se punha, dourando o Rio Paraguaçu, quando me despedi de D. Cabeluda. Tinha sido uma conversa longa e cheia de gargalhadas. A última foi ali, na saída, porque eu não conseguia escutar o que ela tentava me dizer. Era o som de um culto ao lado que estava alto demais e enquanto ela reclamava “tem dias que a gente não consegue dormir, minha filha” eu brinquei: “Antigamente era o brega que tirava a paz na igreja, hoje é a igreja que tira a paz do brega”. Ela riu alto e disse: “É isso mesmo, pode escrever isso aí”. Naquele encontro, humor e leveza deram o tom. D. Cabeluda é Renildes Alcântara dos Santos e tem 73 anos. Cafetina e proprietária de um tradicional brega em Cachoeira, no Recôncavo baiano. Volta e meia, alguma “otoridade” tenta fechar. Nunca conseguiram. E basta dar uma volta na cidade para entender o porquê. Em décadas de atuação, estabeleceu forte relação com a comunidade. É chamada de “tia” por uns, abordada com afeto por muitas pessoas. Sim, é uma puta que conseguiu respeito numa sociedade que costuma excluir mulheres dessa profissão. Entre outras muitas coisas, é um exemplo contundente desse tal “empoderamento feminino”, algo que vive na prática desde quando ainda não era teoria nem estava nas conversas de mesas de bar. Nascida em Itabuna, saiu de casa aos 12 anos porque era espancada pela “família tradicional”. A “fuga” incluiu o casamento com um homem de 30 anos, que assumiu o papel de agressor. Teve uma filha, cansou das surras. Separou, entregou a filha à família e ganhou o mundo. Primeiro, vendendo bebidas na praia. Um dia, uma amiga a levou a um lugar e disse: “Aqui é um brega”.  “Fiquei cabreira, mas me acostumei”, diz D. Cabeluda, que reclama apenas do fato de ter sido obrigada a beber, por donos e donas de bordéis, no início da sua vida profissional. Aracaju, Feira de Santana e Candeias estiveram na rota até que, em Cachoeira, encontrou seu lugar. As surras na infância e o sofrimento por ser obrigada a ingerir álcool, sem gostar, são as únicas queixas, durante toda a nossa conversa. Todo o resto parece leve nas palavras da senhora que cuida do estabelecimento com mãos de ferro, não gosta de bagunça nem som alto, não permite drogas nem menores de idade e não cobra percentual das moças que trabalham no bordel. O dinheiro vem da venda de bebidas e do aluguel dos quartos. O respeito, de décadas de uma história que mistura o exercício da profissão “maldita” à caridade e acolhimento de todos os que batem na porta da casa. D. Cabeluda é mãe, avó e bisavó. Além de três filhas biológicas, adotou outras oito crianças. Hoje é a matriarca de uma grande família. É ela quem faz a comida preferida da bisneta que sempre chora querendo um pouco mais do dengo da bisa. Dela, vieram os conselhos para que o filho “assanhado” voltasse para a esposa. É nas mãos dela que chega a solicitação de material escolar de uma outra criança e muitos pedidos de pessoas que sabem o que ela diz e vive: “Se eu tiver, eu divido, não deixo de ajudar”. Quase 60 anos “na vida” forjaram uma mulher que olha de cima, a quem poucas coisas podem assustar. “Sei labutar com juiz, com ladrão, com polícia, com puta, com mulher casada... sei labutar com todo mundo”. E sabe mesmo, percebe-se no clima absolutamente respeitoso e tranquilo da casa. Ao lembrar de outros tempos, diz: “Antes que era um inferno”, se referindo ao preconceito sofrido que ainda atingiu filhos e netos. Mas ela sabe que conquistou seu espaço. “Se você for na rua comigo, você diz ‘que porra é essa, Cabeluda?’ É bolo de gente em cima de mim. Antes, quando as mulheres me viam, ficavam cabreiras. Essas mesmas, hoje em dia me abraçam”. O riso fica maroto,  quando falamos de amor. “A senhora já se apaixonou?”, pergunto. “Sim, mas não deu certo e foi cada qual pro seu lado”. Para, em seguida, dividir a lição que aprendeu bem cedo.  Um dia, ao ver uma amiga ser expulsa de casa, pelo marido, sob os gritos de “vagabunda”, decidiu que jamais moraria na casa de homem nenhum. “Se quiser morar comigo, venha, mas eu não vou porque aí quem bota pra fora sou eu e não ele”. Mas, mesmo com essa “regra”, nunca mais quis casar “só namorar e cair fora”. E completa: “Eu já nasci retada”. Há quatro anos,  esse mulherão “deu defeito” e foi parar numa UTI. O episódio resultou em um encontro com a família de origem e o pedido para que voltasse ao Sul da Bahia onde há bens que são seus, por direito. Não quis. Não quer nada de lá. Na mesma época, também reencontrou a primeira filha, aquela que pariu quando ainda era criança e deixou com os pais, fugindo de ser agredida. “Foi bonito?”, perguntei. Ela disse que sim, que foi emocionante, que a filha chorou muito, “mas eu não, porque não sou de chorar”.