Católico e devoto do Senhor do Bonfim, ACM tinha a religiosidade como marca pessoal

Político, que completaria hoje 92 anos, era amigo de Irmã Dulce e Mãe Menininha

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  • Da Redação

Publicado em 4 de setembro de 2019 às 05:15

- Atualizado há um ano

. Crédito: Claudionor Junior/Arquivo CORREIO

Inteiramente vestido de branco, ele chega por volta das 15h ao topo da Colina Sagrada acompanhado por uma multidão e encharcado de suor, resultado da caminhada de cerca de oito quilômetros, vencidos a pé naquela manhã ensolarada de 14 de janeiro de 1994. Ao alcançar o destino final, vira-se para os repórteres que o aguardavam e declara: “Estive aqui no dia 1º, depois na primeira sexta-feira do ano e hoje volto porque creio, uma crença verdadeira. Sou um devoto do Senhor do Bonfim”. Embora fosse um político já consagrado, no último ano de seu terceiro mandato como governador e cheio de planos para o futuro, quem falava naquele momento era o ACM como homem de fé. 

“Faço questão de todos os anos estar presente, de subir a colina e de participar da lavagem do adro da  igreja”, completou ACM, ao rememorar sua ligação com a festa em devoção ao Bonfim. Católico, amigo de Irmã Dulce e de Mãe Menininha, Antonio Carlos de Peixoto de Magalhães era conhecido pelo respeito que tinha com as mais diversas denominações, independente do templo ou do ritual de devoção de cada uma delas.  Político recebe honraria da Universal, entregue pelo bispo Márcio  Marinho, deputado, em 2002 (Foto: Alberto Coutinho/Arquivo CORREIO) A religiosidade que ACM sempre carregou em compasso simultâneo com o qual transitava na vida pública é uma das marcas frequentemente lembradas por quem conviveu ou acompanhou, mesmo à distância, a trajetória do mais conhecido líder político baiano, que completaria hoje 92 anos de uma vida interrompida em 20 de julho de 2007, quando ainda exercia o mandato de senador reeleito pelo estado.  

“Embora não tenha convivido de perto com ACM, sei que ele era devoto fervoroso do Senhor do Bonfim e um homem muito fiel à fé católica. Vinha sempre rezar aqui e não perdia a oportunidade de participar da festa. Como governante, se dedicou muito a ajudar nossa igreja e não media esforços para atender aos pedidos relativos à sua manutenção e restauração”, afirma padre Edson Menezes, reitor da Basílica Santuário do Senhor Bom Jesus do Bonfim.“Ouço com muita frequência as pessoas (da paróquia) relembrarem dessa relação dele com a religiosidade. É uma convicção impregnada nas mentes e corações de quem conhece sua história”, emenda.Em artigo para o jornal O Estado de S.Paulo, publicado no dia 29 de março de 1999 por ocasião dos 450 anos de Salvador, ACM, então presidente do Senado e do Congresso Nacional, demonstrava o tamanho da presença que a religião tinha em sua vida e na do estado que o catapultou à galeria dos homens notáveis da República: “A catedral da Bahia é a própria Bahia. O sândalo que a incensa vem do povo. Comumente, quando ali chego, recupero forças. É como se ouvisse um dos salmos de Davi e permitisse abrigar-me aos pés do Senhor do Bonfim, em contrita penitência pelos percalços que a vida nos impõe e nós impomos a ela”. Catolicismo: ACM é cumprimentado por religiosa (Foto: Luiz Hermano/Arquivo CORREIO) Orações “Ele era um muito, muito religioso. Apesar de frequentar as missas mais em solenidades, datas especiais ou comemorativas, ACM tinha como hábito rezar todos os dias. E era bastante supersticioso também. Seu pescoço sempre vivia carregado de medalhas de santos”, conta o jornalista Demóstenes Teixeira, ex-diretor de redação do jornal CORREIO. Tal aspecto da vida do político foi bem abordado na série de reportagens especiais publicada em 21 de julho de 2007, um dia após sua morte.

“Ele sempre se comportou como uma pessoa de fé. Era um católico respeitador, nunca faltou nos momentos de festa religiosa, sobretudo no Bonfim. Seu aniversário, no dia 4 de setembro, sempre era celebrado com uma missa de grande participação popular. Antes, no Bonfim, e depois, na Igreja de Nossa Senhora do Rosário dos Pretos, eu celebrava todas elas, com muita alegria e amizade. Era uma festa fraterna”, afirmou, à época, monsenhor Gaspar Sadoc, que morreu aproximadamente nove anos depois de ACM, de quem era amigo pessoal. Com Irmã Dulce na inauguração do Hospital Santo Antonio em 1983 (Foto: Bereta/Arquivo CORREIO) ‘Guerra Santa’ Ao mesmo tempo em que era conhecido pela religiosidade, ACM também ganhou destaque pela preocupação que tinha com o patrimônio material da Igreja Católica. Em 1973, protagonizou um episódio que ficou conhecido nacionalmente como “Guerra Santa” e virou até crônica do escritor Carlos Drummond de Andrade publicada no então todo-poderoso Jornal do Brasil. 

O conflito, na verdade, começou a ser desenhado em 1972, logo após a morte do advogado, poeta e pintor pernambucano Abelardo Rodrigues. Um ano depois, a família decidiu colocar à venda a preciosa coleção de arte sacra de Rodrigues, tida como a mais importante do país. O então governador de Pernambuco, Eraldo Gueiros, não demonstrou interesse em adquirir o acervo, mas ACM decidiu entrar no circuito. Baiana molha a cabeça de ACM no Bonfim em 2002 (Foto: Claudionor Jr/Arquivo CORREIO) No dia 2 de setembro de 1973, quando já estava há dois anos no comando do governo da Bahia pela primeira vez, ACM enviou uma carta à família de Rodrigues manifestando interesse em adquirir as obras de arte sacra. Em apenas 20 dias, foi concretizada a venda da coleção, composta por 48 imagens de Cristo, 53 crucifixos, 123 imagens de Nossa Senhora, quase quatrocentos santos e cem peças diversas dos mais variados materiais. Basicamente, barro, madeira, marfim, pedra sabão, cera de carnaúba e cerâmica.

Informado sobre a conclusão da venda, o governo de Pernambuco baixou o Decreto 2.929, numa tentativa de desapropriar a coleção e impedir a ida do acervo para o estado vizinho. Diante da ofensiva dos pernambucanos, ACM deflagrou uma guerra jurídica para trazer as obras de arte para a Bahia. O conflito, que ganhou destaque em todo o país, foi parar no Supremo Tribunal Federal (STF). Em agosto de 1975, a Corte deu ganho de causa aos baianos. As peças de arte sacra estão, desde então, abrigadas no Museu Abelardo Rodrigues, situado no Solar do Ferrão, Pelourinho. Político recebe visita de Madre Teresa de Calcutá em 1979 (Foto: Arquivo CORREIO) Tolerância e amizade Outro aspecto da religiosidade de ACM sempre relembrado era o respeito com o qual tratava denominações diferentes da sua. Especialmente, as religiões de matriz africana, como o candomblé. Amigo de Mãe Menininha do Gantois e próximo a ialorixás como Mãe Carmen e Mãe Stella de Oxóssi, sempre deu visibilidade e atenção para o culto aos orixás, impedindo durante décadas a multiplicação de atos de intolerância, hoje muito comuns. Na festa pelo centenário de Mãe Menininha (Foto: Luciano da Mata/Agecom) “Como boa parte dos católicos típicos da Bahia, ele era simpático ao candomblé. Mas alguns gestos dele foram além. É o caso da confusão envolvendo as esculturas dos orixás de Tatti Moreno (artista plástico baiano) no Dique do Tororó (em 1998). Ele peitou os neopentecostais, que estavam satanizando as obras e fazendo de tudo para impedir que elas fossem colocadas. Foi uma atitude corajosa”, conta o antropólogo Ordep Serra, professor e pesquisador da Ufba.

Apesar de ter recepcionado na Bahia ícones do catolicismo como o papa João Paulo II, em 1980 e 1991, e Madre Teresa de Calcutá, em 1979, e da amizade com lideranças do candomblé, ACM tinha um xodó religioso: Irmã Dulce. Se vivo fosse, certamente expressaria a mesma devoção que tinha ao Bonfim àquela que está prestes a se tornar a Santa Dulce dos Pobres. ACM conversa com monsenhor Gaspar Sadoc (Foto: Arquivo CORREIO)