Conheça a turma de crianças em Salvador que aprendeu a não sentir mais medo

Projeto em escola discute medo, coragem e grandes dramas da vida para crianças de até 12 anos

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  • Fernanda Santana

Publicado em 17 de novembro de 2019 às 06:30

- Atualizado há um ano

. Crédito: Marina Silva/CORREIO

As crianças estão sentadas em fileiras, numa sala no último dos três andares de uma escola, para discutir sobre medo, coragem, força da mente e outros dilemas da vida. Ninguém tem mais de 12 anos. Uma menina pede licença e explica uma de suas aflições. “O pobre tem sempre que andar na mesma linha. A gente precisa andar em outras linhas”, diz Marina Luiza, 10. No bairro de Capelinha de São Caetano, um dos mais pobres de Salvador, elas aprendem a ouvir e palestrar, entre família e amigos, como podem, todos, ser líderes dentro e fora da periferia.

As reuniões começaram no dia 5 de março, onde antes funcionava um depósito da escola da escola Centro Educacional Aprender e Criar. Os alunos e alunas, divididos em turmas às terças e quartas, começam a chegar pouco antes das 14h – os encontros duram até as 16h30. Todos fazem parte de famílias que ganham, em média, R$ 459,69, menos da metade do valor de um salário mínimo (R$ 998), segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). Turma que integra uma das turmas do projeto Criança Preparada (Foto: Marina Silva/CORREIO) O projeto, chamado Criança Preparada, surgiu depois que Franklyn André, dono da escola e palestrante, começou a acumular exemplos de crianças que abandonaram a sala de aula, perdidas pela falta de orientação. Hoje, são 22 participantes. “Não é obrigatório, eu digo que aqui não é escola, é algo para fortalecer o potencial. Eles estão a fim de aprender”, afirma.Os alunos receberam a reportagem numa quarta-feira. Ao avistarem a chegada da visita, levantam e repetem: “Sou íntegro, perfeito, forte, poderoso, amoroso, harmonioso e feliz”. A proposta do mantra é reforçar para as crianças a ideia de que todas elas são fortes, donas de escolhas. É a frase oficial de boas-vindas entre elas. 

Ao longo das aulas, as crianças conversam sobre como podem controlar a mente e, assim, também os medos e aflições. Na sala, confrontam umas às outras e são chamadas, individualmente, a falar sobre o que sentem e como superam seus medos. Também são ensinadas a planejar palestras que possam motivar o outro, seja ele quem for. 

À primeira vista, as crianças assustam pela profundidade dos debates, em contraste com a idade. “A diferença entre um adulto e a criança é só a altura e as regras. A primeira vez que vim aqui na frente e falei, vi que o medo não existe. Quando você começa a fazer, você tem que continuar. É só ir e fazer”, fala Victor Emanuel, 10. Antes, o menino, quase vizinho da escola, dizia ser quieto, vergonhoso de tudo.

As mães e os pais começaram a estranhar o novo comportamento dos filhos, que passaram a não aceitar nada como natural ou obrigatório. “As palavras e as coisas não significam nada, apenas as que eu quero que signifiquem”, define Mariana Farias, 9. Durante a visita, as crianças organizam duas fileiras, uma de frente para a outra, e simulam uma das tarefas ensinadas em sala.

O exercício é colocar uma criança para atravessar o espaço que divide as filas, enquanto as outras fingem brigar com elas. Todas riem juntas, sem o mínimo sinal de constrangimento, embora o nome da tarefa seja "corredor das ofensas". “Palavras são só palavras. Às vezes, o medo só nos faz ter mais medos, medos que não deveríamos ter", lembra, Walace Balduíno, 10. Turma simula corredor das ofensas (Foto: Marina Silva/CORREIO) Depois de deixar a filha para um dos encontros, numa terça-feira, uma mãe relatou que já não sabia mais como responder a menina, tão à frente da sua idade. “O que aconteceu é que está havendo um confrontamento”, explicou Franklyn. As crianças estão sempre prontas para confrontar.

'O medo é um estado da mente' As reuniões não seguem nenhum planejamento específico. Os temas variam conforme as demandas dos próprios alunos, mas surgem principalmente das leituras de Franklyn. De uma bolsa de couro, o mentor retira um exemplar de 1998 do livro Pense e Enriqueça, de Napoleon Hill. O clássico de autoajuda atribui à força individual todas as formas de sucesso e é uma espécie de 'Bíblia' que rege os encontros.“Consegui entender que existe um programa que comanda nossa mente e se não conhecermos nosso próprio programa, não conseguiremos fazer nada”, acredita Franklyn.  Os conceitos mais utilizados e explicados pelas crianças são o medo, a coragem e a modelagem. O medo é definido apenas como um estado da mente; a coragem como a ação que deve agir sobre o medo; e a modelagem a observação das qualidades do outro como inspiração para novos hábitos.

De frente para os colegas, João Victor Santos e Santos, 8, conta sua história. As crianças falam como se tivessem vivido muito mais do que conhecem, fora dos seus limites. “Era quieto, um menino muito abusado. Falavam que eu era gorducho, dentuço. Tenho coragem para fazer o que eu quiser com meu medo. O medo é um estado da mente”, assegura.Na vizinhança, as crianças começam a participar de palestras motivacionais. No último Dia das Mães, na igreja frequentada pela família, Ariele Silva, 8, chamou uma mãe e sua filha para fazerem perguntas. No mês passado, Kauana Santos palestrou para estudantes de um colégio público na Avenida Suburbana. Franklin André, o idealizador do projeto (Foto: Marina Silva/CORREIO) O público assistia espantado, sem acreditar na eloquência da menina. “Foi uma surpresa até para mim, ela falando daquele jeito”, lembra a mãe, Liliana Santos, 35. A garçonete criou os filhos sozinha, entre as tarefas de casa e o trabalho no bairro da Pituba. 

Depois dos encontros do projeto, geralmente às 17h, Mariana reúne à sua frente a família e repassa tudo que aprendeu. Dentro de casa, passou a incentivar a mãe, Jaqueline, 35, a substituir a insatisfação pela mudança. Sempre que reclamava, Mariana retrucava: “O que você vai fazer para conseguir, mamãe?".

Hoje ajudante na escola, Jaqueline tinha o sono de abrir uma empresa de festas. No dia 2 de julho, no aniversário da irmã de uma colega, trabalhou, pela primeira vez, em uma festa com suas máquinas de algodão doce, crepe e cascata de doces. "Mariana tem uma proposta, me fez ver que nós todos temos uma", diz Jaqueline. 

Mini-palestrantes  A primeira tentativa de promover reuniões para debater grandes dilemas entre crianças surgiu em 2010. O filho de Franklyn, Denis Bergkamp, tinha apenas 11 anos quando disse ao pai que podia, ele próprio, dar palestras motivacionais. Desde então, o garoto, hoje estudante de Engenharia, promove palestras. À época, 45 minutos de discurso do menino para vendedores, por exemplo, chegava a custar R$ 1,5 mil. O garoto respondeu que, envolvido em novos projetos, preferia não dar entrevista.“Imagine um João Gilberto. Ele tem umas teorias esclarecedoras sobre o mundo que assustam até a mim”, diz o pai.A escola foi criada em 1998, numa localidade conhecida no bairro como Barriquinha. Começou a funcionar numa casa com menos de 10 m², apenas com duas cadeiras doadas pelo cunhado de Franklyn. O único dinheiro no bolso para seguir o projeto era R$ 150 – hoje, algo próximo dos R$ 25. A atual sede tem 12 anos, cinco turmas, e cada aluno paga uma mensalidade de R$ 30. Mariana palestra para crianças da turma (Foto: Marina Silva/CORREIO) No mês passado, Franklyn foi à sede da Secretaria de Educação do Estado para estudar como pode aplicar o projeto em outras escolas da Bahia. A reportagem entrou em contato com a pasta, que não respondeu até o fechamento. O projeto foi explicado pela reportagem à psicóloga infanto-juvenil Rafaela Machado. O ato de discutir sobre as próprias emoções e ensinar, aos outros, como lidar com os sentimentos, pode tornar ainda melhor o efeito de assimilação. "A criança aprende muito observando. Ela internaliza e ensina ao outro. Quando você ouve alguém da sua idade, é bem melhor. Sendo alguém da mesma idade, é alguém como você. Algumas têm personalidade mais forte, mas as crianças entendem melhor o lado do outro", aponta.O cuidado deve ser sempre manter um ambiente em que a criança se sinta acolhida, à vontade para mostrar suas opiniões. O processo, explica a psicóloga, tem que ser " cuidadoso", para que as crianças discutam entre si sem opressões de professores ou pais. 

Oficina das emoções Numa sala, 10 crianças discutem emoções do dia a dia. A partir de recursos como filmes, elas são incentivadas, por psicólogas, a entender como lidar com as próprias emoções. Os encontros são chamados Oficina das Emoções e ocorrem numa sala na Avenida Anitta Garibaldi.“Construímos formas de que as crianças aprendam como lidar com emoções como raiva. O que eu sinto quando estou com raiva? Quais são os sinais que o corpo dá? É um processo de identificar essas emoções e mostrar o que se pode fazer com elas”, explica a psicoterapeuta Ângelis Dantas Limas. As crianças, geralmente, têm entre 5 e 11 anos. Inicialmente, são agrupadas num círculo. As crianças observam a apresentação de situações emocionais e descrevem, elas próprias, contextos em que viveram algo parecido. O medo é um tema recorrente nas oficinas que duram, em média, duas horas e meia.

“Trabalhamos não só com as habilidades emocionais, mas com o compartilhamento, eles se ajudam, fazem amizade", explica Ângelis. A partir do contato, que não é tratado como terapia, é possível perceber possíveis problemas emocionais, mas também incentivar as crianças a sempre falaram a respeito.   

Os encontros servem de facilitadores de expressão das emoções para crianças que, no contexto familiar, podem não ser incentivados a conversar sobre o que sentem.

O caso da oficina e do projeto na Capelinha de São Caetano, na avaliação da psicóloga clínica infanto-juvenil, atuam em momentos da vida em que há flexibilidade maior. Até os 7 anos, o cérebro tem uma neuroplasticidade maior e os rótulos sociais, sejam quais forem, ainda não foram fixados.“Desde criança, se ensinarmos a saúde mental, é melhor. A criança também passa por frustrações na infância, usam o erro para aprender. Muita gente acha que o erro é algo errado. Para a criança, o errar é bom”, explica.No processo, diz a psicóloga, é importante entender quem são as referências e os principais anseios das crianças. Os responsáveis pelas crianças também precisam ser inseridos no aprendizado, já que a mudança em uma criança pode significar uma possibilidade de transformação no entorno. Como tem ocorrido na Capelinha.