Conheça Penga, pássaro maneta que bate ponto em uma multinacional

Desde que se acidentou, lavadeira vai a prédio na Paralela todo santo dia

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  • Alexandre Lyrio

Publicado em 4 de agosto de 2019 às 06:00

- Atualizado há um ano

. Crédito: Marina Silva/CORREIO

Desde o início da crise econômica, centenas de milhares de pessoas já voaram dos seus cargos em empresas brasileiras. Muitos deles, certamente, funcionários exemplares. No caso da Odebrecht, entre todos os quase 48 mil colaboradores que continuam na empresa (já foram mais de 180 mil), nenhum é “indemitível”. Exceto um, que tinha tudo para, com suas próprias asas, alçar voos mais altos. O ‘funcionário padrão’ dos quadros da Odebrecht, aquele que nenhum diretor teria coragem de colocar para fora, sequer tem nome. Só apelido: Penga.

Penga é um pássaro. Uma ‘lavadeira’, que, três vezes ao dia (de manhã, no horário do almoço e no final da tarde), bate ponto próximo à recepção do belo prédio da Avenida Paralela, que acaba de ser posto à venda. Não chega a entrar, não atravessa a porta de vidro fumê com sensor. Fica do lado de fora, cumprindo sua obrigação: Penga é gestor de alegria e entregador de leveza. “Todo mundo para e observa. Todo dia ele me dá bom dia. É uma graça”, diz Duclisse Caldas, que trabalha no financeiro.

Penga vai à firma todos os dias, de domingo a domingo. Chega por volta das 8h15. Canta um punhado de “bom dias” e vai embora. Faz o mesmo outras duas vezes. Segundo funcionários admitidos antes dele, faz isso desde 2001, logo depois que o prédio foi inaugurado. Mas pássaros lavadeiras são idênticos entre eles. Como saber que Penga não mandou o primo para trabalhar em seu lugar? 

Simples. Penga é maneta. Perdeu parte de uma das patas ao lançar-se na fachada do prédio da empreiteira, na Paralela, que espelha uma mata atlântica de 36 mil metros quadrados. Penga frequenta jardins da empresa e leva alegria a quem trabalha no local (Foto: Marina Silva/CORREIO) Os funcionários não sabem ao certo se ele perdeu a pata por conta do acidente. Alguns contam que a gata Ninha, xodó de Dr Norberto Odebrecht, aproveitou-se da queda para avançar no passarinho e lhe abocanhar um teco da pata. Ninha morreu anos atrás. “Eu não acredito muito nessa versão. Eu via era Ninha, quando viva, correndo ‘picula’ com Penga”, conta o supervisor de segurança Silvio César, 45 anos, 24 deles na Odebrecht.

Ele diz ainda que muitos pássaros acidentam-se como Penga. Se chocam no espelho ao confundi-lo com a mata. “Já vi até coruja e gavião se bater aí”. Penga foi o único que demonstrou comportamento pitoresco. Passou a labutar na empresa. “Dizem que ele está perto de pedir a aposentadoria”, brincou Fátima Berbert, da assessoria de comunicação.

Penga é abreviação de capenga. Se fosse para ser politicamente correto, Penga seria um pássaro com deficiência. Mas, como o céu é o limite da nossa imaginação... “Alguns chamam ele de Silvano Sales”, entrega Silvio. Quem trabalha na Odebrecht não vê explicação para um funcionário ser tão exemplar. Penga não recebe salário. “Ninguém dá comida. Acho que gosta da gente mesmo. Eu converso sempre com ele”, revelou Denise Plácido, há 11 anos na Fundação Odebrecht. Penga bate cartão porque gosta.

A ficha do bicho:Lavadeira Mascarada

*Nome científico: Fluvicola Nengeta*Ordem: Passeriforme (Passarinhos)*Origem:  Beira das cacimbas e açudes do Nordeste*Área de distribuição atual:  Nordeste, Sudeste com expansão para o Sul*Habitat:  Beira d´água e  vegetação flutuante Funcionários desconfiam que pássaro perdeu a patinha ao se bater em vidraça (Foto: Marina Silva/CORREIO) Bióloga explica hábitos da ‘lavadeira’

Há algumas pistas para explicar o comportamento de Penga. A bióloga Gabrielle Winandy, que também estuda as aves e o comportamento animal, explica que os pássaros podem se estabelecer em um mesmo território ao longo de toda a vida. “Muitas espécies de pássaros formam territórios em determinados locais e vivem ali. Podem, inclusive, não ter uma área de vida muito extensa”. Ela diz que o tamanho do território de um animal, muitas vezes, tem relação com o seu próprio tamanho. Então, é provável que Penga tenha escolhido a frente da Odebrecht para viver e se defender de outros pássaros e possíveis predadores."A  maioria das espécies de passarinhos não tem um território extenso. Claro, há exceções, como uma espécie de bem-te-vi que chega a migrar de um país para o outro”, diz Gabrielle, que é mestre em diversidade animal pela Ufba e, atualmente, faz doutorado na Universidade de São Paulo (USP) em psicologia experimental. “A lavadeira está tão acostumada com a gente que nem se afasta das pessoas, dos carros e dos prédios”, observa.Gabrielle diz que a lavadeira não gosta de locais fechados. Por isso, em vez de procurar comida na mata, busca insetos em áreas abertas e onde se formam poças d’água, como na área externa da Odebrecht. “Pode ser que ela veja o reflexo no espelho e ache que ela é outro indivíduo. Então, precisa ficar ali para defender o território.”

Longevidade do animal surpreende

Há algo tão surpreendente quanto o comportamento de Penga: o longo tempo que ele bate ponto no local. Presidente da Sociedade Ornitológica de Salvador (SOS), clube que cria canários belga, o ornitólogo amador Paulo Plessim de Almeida se surpreende com a longevidade do pássaro.

“Ele solto, dificilmente, vive tanto tempo. Ainda mais na cidade. Conheço casos em cativeiro, com água limpa e ração, que vivem até 18 anos. Mas, na natureza, é muito difícil”, afirma Paulo, que é médico.

“São muitos predadores. Micos, macacos e aves maiores como gaviões e corujas, além da água poluída”, enumera.

A bióloga Gabrielle Winandy diz que alguns passeriformes têm uma longevidade conhecida de 8, 10, 12 anos.