Conselho aguarda laudo para avaliar suspensão de dentista presa por racismo

Defesa alegou 'incapacidade mental' e ela foi solta; delicatessen homenageou funcionários

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  • Da Redação

Publicado em 9 de janeiro de 2018 às 02:00

- Atualizado há um ano

. Crédito: Foto: Leitor CORREIO

O Conselho Regional de Odontologia da Bahia (CRO-BA) vai aguardar a apresentação de um laudo de incapacidade mental para decidir se pedirá a suspensão do registro profissional da dentista Heloisa Onaga Kawachiya, presa no sábado (6) sob a acusação de racismo contra dois funcionários da delicatessen Bonjour, no bairro da Pituba, em Salvador. Os funcionários negros da empresa - que são maioria - foram homenageados em uma postagem nas redes sociais nesta segunda-feira (veja abaixo).

Apesar de ser natural de São Paulo, o registro profissional de Heloisa foi feito na Bahia em 2014. De acordo com a assessoria do CRO-BA, a dentista realiza os pagamentos das mensalidades e está com o registro profissional ativo. O local de trabalho dela, no entanto, não foi divulgado. 

O advogado de Heloisa, Marcos Rudá, informou ao CORREIO, nesta segunda-feira (8), que não está autorizado pela família da dentista a comentar o caso. 

Segundo o CRO-BA, uma campanha está sendo preparada para os membros do conselho.“Vamos falar sobre os cuidados, sobre a humanização, a importância de não tratar as pessoas de forma diferente, e da igualdade social”, explicou Matheus Dias, vice-presidente do CRO-BA.Ele destaca que existe a possibilidade de abertura de um processo ético, caso a incapacidade mental não seja comprovada. Como o ato ocorreu fora do ambiente de trabalho, a entidade teria que analisar juridicamente o contexto para avaliar uma suspensão da dentista.

Inquérito Antes de ser julgada pela Justiça baiana, o caso será investigado pela 16ª Delegacia (Pituba), que irá concluir o inquérito policial após ouvir todas as partes. Ainda no sábado, a dentista, junto com as duas vítimas do racismo e uma testemunha, também cliente da delicatessen, prestaram depoimento na Central de Flagrantes, no Iguatemi. Ela passou a noite detida no local e liberada no domingo (7) após decisão da juíza Luciana Amorim Hora, que acatou o argumento de que a ré é primária e não apresenta antecedentes criminais.

A magistrada informou na decisão que, segundo os advogados, "a flagranteada padece de transtorno mental de natureza incurável".

A liberdade provisória, porém, ficou vinculada a algumas exigências: Heloisa deverá comparecer perante a autoridade todas as vezes que for intimada para atos do inquérito; ela não poderá mudar de residência sem permissão judicial nem ausentar-se por mais de 30 dias de sua residência sem comunicar a Justiça; a dentista também deverá apresentar em 60 dias um relatório psiquiátrico sobre sua sanidade mental, a qual será considerada pelo CRO-BA.

Ministério Público Após a conclusão do inquérito policial, ele será encaminhado para a promotoria de racismo e intolerância religiosa do Ministério Público da Bahia (MP-BA), sob responsabilidade da promotora Lívia Vaz. “Caso haja materialidade, o Ministério Público pode oferecer denúncia à Justiça. A pena, nesse caso, por crime de racismo, é de 1 a 3 anos de prisão acrescida de multa. Esse crime é inafiançável”, explicou a promotora.Heloisa foi presa no sábado (6), ao se recusar a ser atendida por funcionários negros na Delicatessen Bonjour, na Rua São Paulo, na Pituba. A dentista havia passado a noite sob custódia. 

Humilhação Segundo Daniel Pereira da Silva, 23 anos, que trabalha na delicatessen Bonjour há três anos, o fato se repetiu algumas vezes ao longo dos últimos seis meses, mas, desta vez, após outra cliente se revoltar com a atitude de Heloísa, o gerente da delicatessen, Paulo Sérgio, chamou a polícia. “Nunca tratamos ela de forma diferente. Ela dizia que não queria ser atendida por ‘pretos’, não queria que tocássemos nos talheres dela. Me senti realmente humilhado, pois acho que nenhum ser humano deve ser tratado dessa maneira”, reclamou.

Já Ubiratan Santos Souza, 22, outro funcionário do local, relatou que a cliente só aceitava ser atendida por pessoas de pele clara. “Sempre que nos aproximávamos, ela virava as costas, fazia de conta que não tinha ninguém ali falando com ela. Se um colega de cor mais clara se aproximasse, ela aceitava o atendimento. Dessa vez foi necessário uma outra cliente se revoltar com a atitude dela para que a polícia fosse chamada”, disse ao CORREIO. Acusada de racismo é conduzida por PMs para a Central de Flagrantes (Foto: Leitor CORREIO) Diante da insistência de Heloisa em não ser atendida por negros, Paulo Sérgio decidiu chamar a polícia. “Ela falou para os funcionários que não era para encostar nela. Eu expliquei que ela estava desrespeitando, que tinha passado dos limites, e disse que ia chamar a polícia", comentou, em conversa com a reportagem, logo após o incidente, no sábado.

O chamado policial foi atendido por um grupamento que precisou conter a fuga da agressora, e durante a tentativa de condução à delegacia, um sargento da PM, que preferiu não se identificar, foi ignorado por ser negro. “Todas as vezes que tentava conversar, ela subia o vidro do carro, daí quando um colega de pele clara se aproximava e fazia uma tentativa de diálogo, ela aceitava”, relatou o PM.

Na noite desta segunda-feira, a delicatessen Bonjour publicou uma nova nota de esclarecimento sobre o ocorrido, na qual reforça que a maioria de seu quadro de funcionários é formado por pessoas de pele negra e que repudia qualquer atitude racista ou preconceituosa. O comunicado é acompanhado pela foto de parte do quadro funcional. Leia abaixo a íntegra do texto. Imagem publicada pela delicatessen Bonjour em nota de esclarecimento (Foto: Reprodução/Instagram) "NOTA DE ESCLARECIMENTO

Sobre o incidente ocorrido no sábado, dia 06/01/2018 na loja 01, segue nosso esclarecimento oficial. Uma cliente não quis ser atendida por dois funcionários negros - e deixou isso claro para todos que estavam presentes durante a cena, ocorrida no horário do almoço. 

Outra cliente acabou intervindo, indignada com a atitude racista e extremamente preconceituosa da primeira cliente - e partiu em defesa do grupo de funcionários, alertando o fato ao gerente da loja - que imediatamente chamou a Polícia Militar, flagrando o ato racista junto com dezenas de testemunhas.  Após alguns minutos de resistência, a senhora, alvo da acusação racista, foi encaminhada à delegacia mais próxima para prestar esclarecimentos a respeito de seu ato condenável.

Reforçamos nossa extrema ojeriza a qualquer tipo de atitude preconceituosa. Há mais de 10 anos, desde a sua inauguração, o staff da Bonjour é formado, em sua grande maioria, de trabalhadores negros - dos quais todos nós da empresa temos muito orgulho em tê-los na equipe, convivendo de forma respeitosa e sem nunca ter havido qualquer tipo de distinção entre eles.

Sobre o fato da acusada ter cometido atitudes semelhantes anteriormente. Esclarecemos que assim que a direção tomou conhecimento dos fatos, foi tomada as atitudes cabíveis como a lei prevê.

Neste caso específico, a denúncia foi feita pelo gerente da Bonjour, junto com dezenas de clientes que testemunharam a cena e - desta forma, nós reforçamos a importância de que todos tenham essa mesma iniciativa: denunciar sempre.

Continuaremos em alerta e orientando a todos os nossos funcionários a não se calarem diante de qualquer tipo de tratamento ofensivo, a fim de evitar que situações como essa aconteçam novamente.

Todos nós da família Bonjour não aceitaremos nenhum tipo de comportamento discriminatório e continuaremos atendendo todos os nossos clientes com a mesma gentileza e atenção que cultivamos nesses mais de dez anos de empresa. Contem conosco!"