Cordel: A Chegada de Moraes Moreira no Céu

Além de músico, artista morto nesta segunda (13) também se destacou na literatura de cordel; leia homenagem do poeta Elton Magalhães

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  • Da Redação

Publicado em 13 de abril de 2020 às 21:00

- Atualizado há um ano

. Crédito: Arte: Amanda Lima

O cantor Moraes Moreira, que faleceu nesta segunda-feira (13), aos 72 anos, além de ter se eternizado na música popular brasileira com grandes clássicos como 'Preta Pretinha', 'Chame Gente', 'Chão da Praça', entre muitos outros, também se destacou pela sua produção poética através da literatura de cordel.

Em 2015, passou a ocupar a cadeira de número 38 da Academia Brasileira de Literatura de Cordel, que tinha como patrono o poeta paraibano Manoel Monteiro. Desde então, suas apresentações passaram a ser um misto de música e recital.

Além de ter escrito um livro contando “A História dos Novos Baianos e Outros Versos”, publicou também “Poeta Não Tem Idade” e o álbum “Ser Tão”, no qual equilibra canções e textos. Numa das faixas, inclusive se assume nessa nova fase: “De Cantor Para Cantador”. 

Também poeta e cantador, o professor baiano Elton Magalhães compôs, com exclusividade para o CORREIO, um poema que fala da chegada de Moraes no plano superior (tipo de homenagem bem comum entre os cordelistas). Por lá, é recebido por outros bambas baianos que deixaram saudade e entraram para a eternidade. Confira o texto na íntegra. Arte: Amanda Lima/Divulgação A CHEGADA DE MORAES MOREIRA NO CÉU

Em tempos de pandemia O mundo respira o mal Mas os grandes da Bahia Vão de morte natural Pr’um outro plano fazer Um bonito Carnaval.

Assim foi com Riachão Que abriu as portas do céu Dizendo: saaaaamba, São Pedro Com seu lencinho e chapéu Ganhando dos seus amigos Um merecido troféu.

Com o samba comendo solto A multidão foi chegando: Batatinha deu o tom Ederaldo foi somando E o clã baiano no céu Logo foi se amontoando.

Raulzito, inebriado, Sentou-se pra observar Ao lado de Dorival A baianada chegar Acompanhada do trio De Dodô e de Osmar.

A festa estava montada Santa Dulce abençoando E ao som da guitarra elétrica Com os mestres no comando A chegada de outro mito O trio ia anunciando.

São Pedro saiu da roda  Pra deixar a porta aberta E nesse exato momento A todos fez um alerta: “Abram alas pra Moraes Que pr’este plano desperta!”

Tímido, ele foi chegando E no trio já foi subindo Foi pegando o microfone E pro seus mestres sorrindo Disse a todos “salve salve! Veja só que dia lindo!”

Pra manter o ritual, Puxou o Pombo Correio Dizendo: “sempre sonhei Em ver esse bloco cheio Mas cadê meu grande mestre? Por que será que não veio?”

Certamente ele falava Do bruxo João Gilberto Que até mesmo lá no céu Mantinha o hábito certo De ficar enclausurado Com seu pijama coberto.

Mas a comoção foi grande E logo João chegou Pois Caymmi, seu amigo, Da mesa se levantou Puxou João pelo braço E este de pronto aceitou.

João Gilberto que estava Calado até o momento Disse: “Moraes você é Sim o meu maior rebento O grande orgulho da raça: Receba o meu cumprimento!”

“Acabou chorare, gente! Eu agora sou eterno Fugi do triste Brasil Que se tornou um inferno Espero que o céu se mostre Em tudo um lugar fraterno.

Deus me faça brasileiro Criador e criatura Nessa terra que é de todos Distante dessa amargura E que os meus que lá ficaram Tenham jogo de cintura.

Nasci em Ituaçu Lá no Sertão da Bahia  Terra de todo o encanto Terra de força e magia Sou filho de Dona Nita Que sempre foi minha guia.

Com um baiano aprendi A arte do violão Tom Zé, o primeiro mestre, Deu grande contribuição Pois pra mim a Tropicália Foi de grande inspiração.

Com os amigos Pepeu, Baby, Paulinho e Galvão Tracei uma linda história Que levo no coração Os Novos Baianos foram Pra mim a grande lição.

Segui dando o meu melhor Para o carnaval baiano E aos poucos do trio elétrico A história eu fui mudando À fobica eu dei a voz E segui me alumbrando.

Com o meu irmão mais velho,  Zé Walter, o menestrel, Aprendi métrica e rima Peguei caneta, papel E logo fui descobrindo O universo do Cordel.

Assim, fiz minha passagem De cantor pra cantador Exaltando o meu sertão E esse povo de valor Homenageei os mestres Que em vida eu dei valor.

O grande artista do século É o nosso Rei do Baião Nesses versos de carinho Exaltei nossa nação Através do maioral: O eterno Gonzagão”.

Foi assim que num rompante Mestre Lua apareceu Com seu fole de cem baixos E a todos ali deu Um presente: a Asa Branca O céu todo comoveu.

Moraes Moreira chorando Diante da emoção Foi cantando “chame gente” E assim uma multidão Foi pelas nuvens pulando Em grande celebração.

Tocaram Frevo Mulher Depois Cara e coração Desabafo e desafio E Pedaço de canção Mas o que veio depois  Explodiu a multidão:

Carnaval em cada esquina Só não foi mais badalada Do que a épica Vassourinha Que deixou embriagada Toda uma multidão Que estava ali deslumbrada.

Riachão também subiu No trio causando um rebu Carregava cachacinha Meladinha no caju E pegando o microfone Foi puxando Besta é tu.

Raul, chegado ao “caju” Sendo de pouca etiqueta Também chegou na fobica E tirou duma maleta Sua gaita pra tocar O Mistério do Planeta.

Caymmi também subiu Preparado para a guerra Levando João no braço (Esse é certo: nunca erra) Com Moraes então fizeram O Samba da minha terra.

Depois dessa grande festa E justa recepção O mestre Moraes, sereno, Iniciou um sermão Pra todos ali presentes Eis sua declaração:

“Sigo sendo como posso  E mostrando como sou Morri dormindo, e assim Sei que Deus me abençoou. Pela vida que vivi Orgulhoso aqui estou.

Na minha velha Bahia Quando era bem menino E eu ainda digo mais: Menino e beduíno Com jeito de mercador Preparei singelo hino!

Peço a Deus que nesse instante Se compadeça do povo Que na terra, isolado, Quer viver livre de novo E que essa pandemia Deixe de ser um estorvo.

Para o povo lá da Terra Eu só queria escrever ‘Tudo passa e em breve Todos poderão dizer: Abra a porta e a janela E vem ver o sol nascer’”

Elton Magalhães, 13/04/2020