Covid-19, carnaval e as 'viroses': como a folia de 2022 pode ser a receita para o caos

Entenda os riscos; mesmo com vacinação, festa atrai turistas do Brasil e do mundo

  • Foto do(a) author(a) Thais Borges
  • Thais Borges

Publicado em 27 de novembro de 2021 às 07:00

- Atualizado há um ano

. Crédito: Foto: Marina Silva/Arquivo CORREIO

Ziriguidum, lepo lepo, xenhenhem, metralhadora, abaixa que é tiro. Poderia ser uma lista de músicas coroadas como ‘a do Carnaval’ de seus respectivos anos, mas na verdade é uma lista de homônimas indesejadas: as ‘viroses’ momescas, que nunca hesitaram em bater ponto depois da folia. Se voltarmos mais ao passado, os nomes eram ainda mais sugestivos: espirration, em alusão à Rebolation (2010) e gripetonita (2011), na referência à Liga da Justiça (2011) são alguns dos exemplos mais óbvios. 

Seja para quem ficava atrás dos trios ou mesmo para quem passava longe dos circuitos, essa era uma possibilidade real: depois dos dias de festa, cair de cama. Sintomas respiratórios, gastrointestinais e, às vezes, até conjuntivites. Em geral, eram brandos. Em poucos dias, a pessoa ficava curada - e, assim, ninguém nunca teve medo de morrer por conta da virose de Carnaval. O problema é que o mesmo não pode ser dito do Sars-cov-2, o vírus da covid-19.

Nos últimos dias, a discussão sobre a folia vinha crescendo. De um lado, o setor de eventos, que pressiona por uma resposta para conseguir organizar os detalhes da festa a tempo. Do outro, a pandemia ainda sem controle total - e o surgimento de uma nova variante mais contagiosa identificada esta semana na África do Sul. Mesmo com a vacinação avançada e a redução do número de casos, o recrudescimento da covid-19 em países da Europa como Áustria e Alemanha, com índices de imunização relevantes, tem servido para reforçar que o cenário ainda é instável e imprevisível. 

Daí vem o Carnaval, com seus números totalmente impressionantes: em 2020, último ano em que foi realizado, a prefeitura de Salvador divulgou que 16,5 milhões de pessoas circularam pela cidade, considerando o período pré-momesco, com o Fuzuê e o Furdunço. Só no Carnaval dos bairros, o público foi de mais de 1,1 milhão. Os turistas foram mais de 850 mil, entre brasileiros e estrangeiros. 

Só que não era só gente circulando: com as pessoas, também vieram vírus como Influenza A e B (gripe), rinovírus (resfriado), parainfluenza (respiratório), enterovírus (gastrointestinal), norovírus (que causa diarreia), o vírus da mononucleose (conhecida como a ‘doença do beijo’) e por aí vai. Agora, siga para 2022 e imagine a covid-19 nesse recipiente totalmente favorável à propagação de doenças. “A gente está falando numa das maiores festas de rua e sabe que é impossível programar um Carnaval sem aglomeração. Além disso, propicia a chegada de muitas pessoas de várias partes do Brasil e do mundo. A gente não pode afirmar nada, mas é uma previsão dentro do cenário que já conhecemos antes da covid. A gente já tem esse registro de que, após o Carnaval, há incidência dessas viroses”, diz a virologista Andréa Mendonça, professora da Medicina da UniFTC e de Biotecnologia na Universidade Federal da Bahia (Ufba). Emergências lotadas O resultado sempre foi de que, anualmente, as emergências hospitalares de Salvador, assim como as unidades básicas de atendimento, sentiam a pressão com o aumento da demanda pós-Carnaval. Como não são doenças de notificação compulsória, a Secretaria da Saúde do Estado (Sesab) não tem estatísticas oficiais, mas a experiência dos profissionais de saúde era de emergências lotadas. 

"Esse aglomerado de pessoas próximas termina favorecendo a disseminação de doenças, principalmente as virais", diz a infectologista Ana Paula Amorim, médica do Hospital Português. 

Além disso, a própria duração da folia contribui para que esse tipo de vírus seja ainda mais comum."As pessoas vão para o Carnaval por muitos dias. Dormem, perdem a noite. Isso também termina deixando uma fragilidade no sistema imunológico", acrescenta. Esse aumento já é independente da covid-19. No entanto, os quadros leves são justamente porque são vírus que circulam há anos entre os humanos, como explica a virologista Andréa Mendonça. Assim, mesmo que os vírus sofram mutações, o corpo de cada um já têm alguma resposta imune na memória contra esses agentes porque as pessoas já foram expostas em outros momentos da vida. 

“Já em relação ao Sars-cov-2, a gente sabe que é uma caixinha de surpresa. A gente não sabe quem vai evoluir com gravidade e quem vai morrer. Tivemos exemplos de pessoas com toda a assistência médica possível, em várias faixas etárias, e que foram a óbito. O Sars-cov-2 se comporta de maneira diferente do que a gente espera”, alerta. (Casa Grida com foto de Evandro Veiga/CORREIO)  O receio com um eventual Carnaval não está restrito aos pesquisadores e profissionais de saúde brasileiros. A diretora-geral assistente da Organização Mundial da Saúde (OMS) para Acesso a Medicamentos, Mariângela Simão, disse na última segunda-feira (22) que a entidade vê com preocupação essa mobilização em torno do Carnaval no Brasil.  

"Me preocupa bastante quando vejo no Brasil que tem discussão sobre a abertura do carnaval. Isso é realmente uma condição extremamente propícia para aumento da transmissão comunitária. Precisamos planejar as ações para 2022", afirmou, na ocasião. 

Esta semana, uma carta da direção da Fiocruz Bahia foi divulgada com o percentual de que 90% da população deveria estar vacinada para uma festa segura. No entanto, a fundação não respondeu aos questionamentos da reportagem quanto à forma como o número foi calculado, nem os aspectos levados em conta. 

Transmissão As viroses pós-Carnaval são adquiridas de forma muito semelhante à transmissão da covid-19, segundo o pneumologista José Tadeu Monteiro, coordenador de Infecções da Sociedade Brasileira de Pneumologia e Tisiologia (SBPT). 

"A gente sabe que a disseminação do Sars-cov-2 é a via aerógena. São as pequenas gotículas de ar e saliva contendo o vírus e que, quando a gente fala, canta, espirra ou tosse, ficam em suspensão. Elas acabam adentrando a via aérea e disseminando a doença de uma forma bem simples", explica. 

Espaços abertos são considerados mais seguros contra a covid-19. No entanto, em um contexto de aglomeração, com uma grande proximidade entre as pessoas, essa proteção acaba caindo por terra e favorecendo a disseminação. É o que aconteceria no Carnaval. "Quanto mais aglomeração, quanto mais próximas as pessoas estão, maior o risco, que acaba se equalizando", completa. 

Embora os casos estejam em retração, no Brasil, devido ao avanço da vacinação (74,3% da população), é preciso considerar que boa parte da população não foi imunizada ainda. Alguns não completaram o esquema vacinal e outros simplesmente não querem se vacinar. De acordo com o pneumonologista, uma única dose não confere proteção e o vírus pode continuar circulando sem grandes dificuldades. "Os estudos também mostram que, mesmo com duas doses, o tempo que garantiria uma certa segurança do ponto de vista imunológico seria de seis meses. Muitas pessoas estão nesse momento com a proteção no limite e vão precisar tomar a dose extra. Será que teríamos tempo suficiente, até o Carnaval, para que todos recebam a dose extra?", questiona. O Carnaval de Salvador tem tantas particularidades que é até difícil chegar a um cálculo de risco de infecção na festa. Algumas universidades internacionais têm calculadoras de risco que ajudam a ter uma noção, mas nenhuma consegue acompanhar a dimensão do período carnavalesco aqui. 

Na ferramenta Event Risk Assessment Tool, desenvolvida por pesquisadores de instituições como a Georgia Institute of Technology e a Universidade de Stanford, nos Estados Unidos, para entender o tamanho do perigo da disseminação do coronavírus em eventos, a escala máxima que é possível indicar é de um público de até 5 mil pessoas. De acordo com o site do projeto, são eventos como um show ou um jogo de basquete universitário. Nessas situações, até em estados com mais de 65% da população totalmente vacinada, a probabilidade de ter infectados entre os 5 mil presentes é maior que 99%. 

Mas, no contexto do Carnaval soteropolitano, com milhões de pessoas e turistas de outros lugares, é difícil saber o que vai acontecer, como pondera o epidemiologista Aristeu Vieira Silva, professor da Universidade Estadual de Feira de Santana (Uefs) e colaborador do Projeto Geocovid. 

"A gente está num padrão de diminuição de casos diários e de mortes por conta da vacinação. Mas o que será daqui a três meses? A gente não sabe qual será o quadro daqui até o Carnaval, nem qual vai ser o comportamento das infecções no Brasil", afirma. 

Como nunca houve testagem em massa da população no Brasil, o percentual de assintomáticos também é totalmente desconhecido. Em Feira de Santana, pesquisadores da Uefs fizeram um rastreamento de assintomáticos nas ruas da cidade, entre abril e maio deste ano. Na época, encontraram 14% - cerca de 180 pessoas - assintomáticas infectadas com a covid-19. "Essa é uma preocupação, é um problema que a gente tem. Não estamos falando do Carnaval de cidadezinhas do interior de São Paulo. Estamos falando do maior do mundo. É uma coisa que precisa ser bastante pensada", defende. Em São Paulo, inclusive, cerca de 70 cidades que têm carnavais tradicionais já anunciaram o cancelamento da festa em 2022. Nas grandes capitais, assim como em Salvador, ainda não há definição. Há iniciativas como a do prefeito de Recife, João Campos, de criar um comitê entre as capitais para que a decisão seja tomada em conjunto. Já o prefeito de Belo Horizonte, Alexandre Kalil, disse que o município não vai patrocinar a festa da cidade no próximo ano. 

Contrários Entre os seis especialistas ouvidos pela reportagem, o posicionamento é o mesmo: a realização do Carnaval pode colocar toda a conquista recente a perder. Para a epidemiologista Glória Teixeira, professora do Instituto de Saúde Coletiva da Ufba e pesquisadora da Rede Covida, ainda é cedo. O momento, segundo ela, exige cautela. 

Ela acredita que o tal 'Carnaval com controle' que algumas entidades defendem, inclusive com uma eventual exigência de comprovante de vacina - que ainda não foi regulamentada em Salvador -, não funcionaria."É impossível, com todas as ruas abertas, pedir atestado de vacina. É uma coisa ilógica. Essa pandemia é muito cruel, mas o que a gente pode dizer é isso", afirma. Também não há lugar mais ou menos desprotegido, em um contexto como esse. Seja atrás ou na frente do trio elétrico, o risco é grande. "Todo mundo está amontoado, cantando e gritando, ou seja, colocando perdigotos no ar. Mesmo sendo ao ar livre, não tem como manter distância atrás do trio elétrico. Isso é falar besteira. Não é fácil para quem tem a necessidade do seu sustento, mas também temos que preservar a vida. Não temos nenhuma condição de dizer que vamos ter carnaval a não ser que sejamos irresponsáveis. É uma pressão muito grande, eu entendo, mas nunca é fácil ser gestor", diz. 

A avaliação é a mesma do infectologista Antônio Carlos Bandeira, professor da UniFTC, membro da diretoria da Sociedade Brasileira de Infectologia e coordenador do serviço de infecção do Hospital Aeroporto. Ele também não acredita na hipótese de um Carnaval com distanciamento. 

"Não existe carnaval com adjetivação. No momento que liberar, não tem nada que consiga regular. As pessoas vão entender que, se o gestor público diz que está liberado, é porque é seguro", diz. 

As vacinas que estão sendo produzidas hoje têm dado conta, mas elas ainda são as primeiras desenvolvidas. É provável que, daqui a alguns anos, imunizantes melhores estejam à disposição. Mesmo com elas, porém, Bandeira não acredita que é o momento de cortar todas as barreiras de proteção. "Ninguém vai para o Carnaval de máscara. As pessoas vão para se agarrar, para se beijar, ficar grudado. É uma aglomeração que não existe nada igual. Fazer o Carnaval significa ter o risco de, na sequência, vivenciar o que a Europa está vivenciando", explica, citando o aumento de casos no continente europeu. Uma das possíveis consequências da aglomeração e do maior fluxo de pessoas é do surgimento de novas variantes, numa espécie de mutação in loco, ou da introdução de uma variante que ainda não circula aqui, segundo a virologista Andréa Gusmão. 

"A gente já vai ter o Réveillon, mas, se a gente pensar, são várias festas, vários polos. O Carnaval é um polo multidão", diz. Se uma nova cepa provocar aumento de casos e internações, fugindo da proteção da vacina, o cenário resultante disso seria um novo confinamento, como os que aconteceram nos últimos meses. 

"Se o vírus sofre uma mutação que escapa desse reconhecimento pela resposta imune, a gente vai ter uma nova cepa resistente à vacina. É um medo que a gente também tem que ter", reforça.  

Quarta onda da pandemia na Europa preocupa por possíveis reflexos no Brasil

A situação enfrentada pela maioria dos países da Europa, hoje, é também uma das preocupação dos cientistas. Mesmo em países com uma cobertura vacinal relevante, os números de ocorrência de covid-19 têm aumentado - é o caso da Alemanha, que tem registrado os maiores recordes diários desde o início da pandemia, apesar de ter 68% da população totalmente imunizada. 

“A situação é dramática; é muito mais sério do que em qualquer outro momento da pandemia“, afirmou o Ministro da Saúde da Alemanha em exercício, Jens Spahn, nesta sexta-feira (26). Pela primeira vez desde o início da pandemia, o país pediu ajuda ao Exército para realizar uma transferência maciça de 100 pacientes de unidades médicas lotadas da Baviera, Saxônia e Turíngia para regiões que ainda têm leitos de UTI disponíveis. Foram 100 mil mortos até agora no país de cerca de 83 milhões de habitantes.

O problema é que, nesses países, a vacinação parece ter chegado a um teto máximo, devido aos grupos antivacina, que não pretendem se imunizar. Como resultado, as medidas de restrição têm voltado a aparecer no continente, que vinha flexibilizado nos últimos meses. A Áustria foi quem tomou as medidas mais enérgicas: além de impor o lockdown total, se tornou o primeiro país europeu a exigir a vacinação contra a covid-19. “É uma quarta onda maior de todas e tem pessoas vacinadas com covid. A Europa já não gostava muito de máscaras, mas fazia o distanciamento. Só que eles estavam vivendo praticamente de maneira normal há alguns meses. O que estamos vendo é que essa ausência completa de barreiras não é viável, porque joga todo o peso para cima das vacinas”, analisa o infectologista Antônio Bandeira, do Hospital Aeroporto. Esse recrudescimento pode gerar variantes mais agressivas que podem, num eventual Carnaval, ser trazidas ao Brasil por turistas. “Isso me faz recordar do que aconteceu no ano passado, quando tinha melhorado em novembro e, depois da virada do ano, veio a segunda onda com toda aquela tragédia que acompanhamos. É um panorama muito indefinido”, diz o epidemiologista Aristeu Vieira, da Uefs. Agora, o mundo agora está em alerta diante da nova variante do coronavírus detectada na África do Sul e que  acumula mais de 30 mutações - a nova versão do vírus apresenta alterações que trazem maior capacidade de contágio e de enganar as defesas humanas.