Da periferia para salões de bairros nobres, platinar cabeleira custa até R$ 600

'Loiro pivete', moda eternizada por Belo e Rodriguinho, no entanto, ainda enfrenta preconceito

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  • Hilza Cordeiro

Publicado em 8 de fevereiro de 2020 às 06:11

- Atualizado há um ano

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Faça o teste de mecha por Marina Silva/CORREIO

Bastou o verão entrar que a galera está, literalmente, com o sol na cabeça. Nas barbearias soteropolitanas, a estileira mais pedida é uma só desde o final do ano: o loiro platinado. O visual descolorido é moda nessa estação festiva e toma conta dos couros cabeludos, colecionando adeptos tanto da periferia quanto de bairros ricos. A todo lado, os rapazes têm exibido tons que vão do branco acinzentado ao ‘amarelo pivete’. Nas cadeiras dos profissionais, o ‘Platina para mim’ já é o novo ‘Me pinte aqui para a Timbalada’.

A procura pelo serviço vem desde dezembro. “É o que a galera mais pede. Eu acho que no período de final de ano o pessoal quer dar aquela mudada radical para recomeçar. E foi nessa que os meninos criaram essa tradição de passar de branco da cabeça aos pés”, conta Edson da Paz, dono da Barbearia das Estrelas, no bairro de Águas Claras.

De acordo com o cabeleireiro Léo Santos, de Brotas, o descolorido virou febre em Salvador há cerca de três anos. Mas essa moda começou a ganhar força no país no final da década de 1990 com os grupos de pagode romântico Soweto e Os Travessos, eternizados nas figuras platinadas dos cantores Belo e Rodriguinho. Naquela época, os artistas tinham presença massiva nos programas de TV e eram galãs de pôster nos quartos adolescentes.

De lá para cá, diversos outros famosos emplacaram o loiro oxigenado. Em 2017, o cantor Robyssão, ex-Black Style, adotou os fios dourados e ainda acrescentou uma lente de contato azul. No verão do mesmo ano, Anitta lançou o clipe de Vai Malandra, no Rio de Janeiro, e além do biquíni de fita isolante, fenômeno no estado, também chamaram atenção os rapazes platinados, entre eles o modelo baiano Pietro Baltazar. 

Vocalista da banda de pagode O Poeta, o cantor John Ferreira, 26, diz que aprendeu ainda menino a dourar os fios. Com origem no bairro de Periperi, o artista lembra que ele e os amigos tinham o costume de fazer o procedimento na praia mesmo, descolorindo não só os cabelos, mas também os pelos dos braços e pernas.“Sou da comunidade e lá a gente aprende essas coisas e eu nunca abdiquei, sempre descolori. A gente fazia sem qualidade, com o produto que comprava na praia mesmo”, recorda John.

Agora, ele retocou o loiro para as apresentações de verão e Carnaval. Fazendo sucesso, John já não descolore mais à beira do mar. “Hoje faço no salão de forma mais aperfeiçoada. Aquela material que a gente usava na praia descolore, mas não fica muito bom”, diz. E é só o cantor aparecer sem o platinado que o público reclama. “Eles dizem que se identificam mais comigo quando estou assim”, acrescenta.

Até R$ 600 para platinar Um dos motivos de o cantor voltar ao tom natural é para dar um respiro às madeixas, já que o procedimento químico é agressivo e faz o cabelo perder nutrientes. O look platinado é obtido através de uma mistura de pó descolorante com água oxigenada e chega a custar entre R$ 25 e R$ 600, a depender dos produtos utilizados, da quantidade, do tamanho do cabelo e, claro, da localização do salão. Nos bairros populares, o valor é mais camarada. 

Administrador e sócio da boate San Sebastian, José Augusto Vasconcelos, 34, já emenda dois verões com o visual descolorido. Primeiro foi o verão europeu e agora o nosso. Em julho do ano passado, o empresário adotou o loiro prateado para ir à Mykonos, na Grécia.“Sigo influenciadores digitais de fora do país e vi que estavam usando muito por lá, aí eu fiz só para essa viagem e todo mundo gostou. Fiquei no 'tiro ou não tiro' e já vou para seis meses assim”, conta, aos risos. José Augusto Vasconcelos, 34, já emenda dois verões com o visual descolorido (Foto: Acervo Pessoal) Nesse intervalo semestral, Augusto vem fazendo manutenção a cada 15 dias. Na academia dele, a atendente da cantina já decretou: não pode tirar mais nunca. O administrador diz que o platinado dá trabalho e custa mais caro, mas a aparência e os elogios compensam. Se antes ele gastava R$ 50 no mês com shampoo e condicionador, agora lá se vão R$ 300 com manutenção, hidratação potente e matizante — um produto usado para manter a nuance desejada e não cair no amarelo.

Quem também botou o couro à prova foi o cantor Jefinho O Maestro, 19, que aderiu à moda antes mesmo de ser oficializada a estação mais quente. Assim como aconteceu com Augusto, a inspiração dele veio de gente que o artista segue no Instagram. A aparência nem durou muito, mas rendeu um comentário engraçado.“Teve uma pessoa que quando eu tirei falou: ‘Oxe, rapaz, era sua marca registrada’. E eu: ‘Oxe, mas eu botei um dia desses’”, brincou ele, que fez a arte pela primeira vez. Daqui para o Carnaval, ele vai fazer de novo. O cantor Jefinho, da banda O Maestro (Foto: Arquivo pessoal) Época de se amostrar O modelo Igor Sacramento, 19, morador de Itapuã, conta que fez pela primeira vez na virada do ano de 2018 para 2019. O jovem preferiu recorrer a uma barbearia do próprio bairro. Igor diz que se sentiu mais seguro buscando um profissional e não se arrepende. Ficou do jeitinho que queria e lhe deu confiança para fazer em casa, ‘nas manha’, na virada de ano seguinte.

“Nunca sofri com abordagens policiais quando estava com o cabelo pintado, mas os outros me olhavam estranho”, lamenta o modelo. Já a moda na cabeça de Juan Martins não resistiu ao medo. Ele relata que já levou enquadro de policiais em seu bairro - não foi tão agressivo quanto o sofrido pelo adolescente em Paripe, no domingo (2). "Se uma coisa dessas rolasse comigo não sei como me sentiria", desabafa. Mas por que a galera escolhe justo o verão para inventar essas artes? O antropólogo Emílio Domingos explica que, devido ao calor, é nesse período que os corpos ficam mais à mostra. “O cabelo é uma parte muito importante na identidade das pessoas. É uma das primeiras coisas que os outros vão ver, é a forma como os indivíduos se colocam frente ao mundo. A estética tem sido hipervalorizada nessa era de superexposição nas redes sociais e um corte, uma pintura sempre geram uma expectativa”, comenta ele, que dirigiu o documentário Deixa na Régua, sobre a rotina de barbearias cariocas.

O cabeleireiro Léo Santos ensaia outra explicação para o fenômeno: tempo livre. “A galera fica de férias da escola ou do trabalho e inventa essas coisas para curtir de uma maneira diferente as suas festas. É quando se sentem à vontade para usar”, opina. O profissional diz que em dezembro o procedimento de descoloração correspondeu a 80% dos serviços realizados no salão. (Foto: Marina Silva/CORREIO) Cabelo sujo Todos os profissionais recomendam que as pessoas façam a descoloração com o cabelo sujo, preservando a oleosidade natural, que ajuda a amenizar a agressividade do produto. “Qualquer procedimento químico tem riscos e danos aos fios, seja alisamento ou coloração. Aqui nós costumamos aplicar uma proteção para a pele para não causar ferimentos e também um bom descolorante”, explica Léo Santos.

Para conseguir a aparência branca ou dourada, o tratamento pode demorar de 45 minutos a seis horas, de acordo com a cor do fio natural do cliente e também do tom a que se quer chegar. Quem deseja escalas mais claras toma chá de cadeira. Cabeleireiro do Espaço Performance, na Pituba, Gilvan Tâmega diz que o público gay entrou na onda e nas saídas de blocos carnavalescos só o que se vê são as cucas platinadas. O tom mais requisitado é o ice blonde, claríssimo, quase branco, que custa R$ 600. 

Preconceito: ‘loiro pivete’ O preço por adotar esse visual, aliás, pode ser ainda mais alto — advertem adeptos e cabeleireiros. No começo deste mês, circulou no Rio de Janeiro um vídeo de jovens sendo abordados por supostos milicianos só por estarem usando cabelos oxigenados. No caso, noticiado no dia 3 de janeiro pelo jornal O Globo, os homens utilizaram um spray de tinta preta para cobrir os cabelos loiros dos rapazes. As imagens mostram que um deles diz: “Ou cabelinho ou bala. Acabou o ano novo”.

Crescido em região periférica, o cantor John Ferreira, O Poeta, diz que desde sua época de adolescente a descoloração já era vista com discriminação pela sociedade e pelas forças policiais.“Sempre associavam à marginalidade, diziam que tinha pegada de ladrão. As pessoas da comunidade que usavam eram discriminadas. Quando eu uso esse cabelo, é para quebrar essa onda”, combate. Os cabeleireiros dizem que o termo ‘loiro pivete’, inclusive, surgiu nesse contexto. Como os meninos de bairros pobres não tinham tantos recursos e nem conhecimento técnico para enloirecer as madeixas, os cabelos descoloridos em casa ou na praia ficavam em tom amarelado, o chamado loiro pivete. “Esse é um termo pejorativo. Existe um preconceito e até hoje acontece de as mães não deixarem os filhos pintar por medo da polícia. O jovem da periferia é marginalizado o tempo inteiro, enquanto quem tem pele clara tem outro tipo de tratamento, é dado como bonito, estiloso, não sofre truculência”, contesta o cabeleireiro Edson da Paz.De acordo com Emílio Domingos, antropólogo, muitas das inovações estéticas no Brasil surgiram e continuam surgindo na periferia, onde a maior parte da população é negra. Apesar disso, os inventores terminam sendo alvo de repressões diversas. 

“O futebol, por exemplo, tem grande importância na disseminação das inovações com cabelos e a origem social dos craques, na maioria das vezes, é a periferia. Ver um jogo de Copa do Mundo hoje é um desfile, o gramado vira um tapete. E mesmo com todas essas contribuições geniais, o racismo não acaba”, conclui Domingos. 

Confira passo a passo para platinar o cabelo:

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Alerta: A água oxigenada e o pós descolorante são produtos químicos agressivos e podem gerar queimaduras no couro cabeludo. Para ter o resultado esperado, o ideal é procurar um profissional do seu salão de confiança.