Desfile sobre Mãe Stella vai respeitar tradição e ‘trazer alegria’, garante escola de samba

Ialorixá assistia desfiles na TV, mas não gostava de holofotes; para a família, homenagem veio no momento certo

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  • Daniel Aloísio

Publicado em 8 de julho de 2020 às 06:00

- Atualizado há um ano

. Crédito: Marina Silva/Arquivo CORREIO

O povo do samba ainda não bateu o martelo se o Carnaval de 2021 vai ser adiado ou não, por causa da pandemia do novo coronavírus, mas a Bahia já garantiu duas personalidades como tema dos desfiles das escolas de samba do Rio de Janeiro. Além de Santa Dulce, enredo da Unidos da Ponte, Mãe Stella de Oxóssi (1925-2018) foi anunciada como o tema da Unidos do Porto da Pedra.  

A escola de samba da cidade de São Gonçalo, Região Metropolitana do Rio de Janeiro, vai homenagear aquela que ganhou notoriedade, a partir de 1976, como ialorixá do terreiro Ilê Axé Opô Afonjá, localizado no bairro de São Gonçalo do Retiro, em Salvador. “Falar de Mãe Stella é falar da luta pelas tradições da fé, contra a discriminação de negros, pobres e mulheres, pela valorização do ser humano e valorização da cultura”, disse a carnavalesca da escola, Annik Salmon.  

A ideia do enredo sobre a personalidade baiana surgiu no carnaval de 2020 da Porto da Pedra, o primeiro de Annik à frente da escola, que falou sobre as baianas de acarajé. “Nas pesquisas sobre esse carnaval, comecei a estudar mais sobre a vida e obra de Mãe Stella e fiquei apaixonada por toda a sua história”, disse.  

Na ocasião, a escola desfilou na Série A do carnaval carioca, o equivalente a uma segunda divisão, e ficou na terceira colocação. Em 2021, a escola vai apresentar o novo enredo na mesma categoria, em busca do acesso ao Grupo Especial.“O trabalho em cima desse tema está sendo tão prazeroso, que o desejo de fazer um bom desfile até ultrapassa o de ser campeão. A gente quer levar alegria para a avenida”, disse o pesquisador Carlos Carvalho, que ajudou Annik no desenvolvimento do tema. E esse desejo está estampado no título do enredo: “O caçador traz alegria”, a tradução dE Odé Kayodé, o uruko de Mãe Stella de Oxóssi, ou seja, nome pelo qual se identifica a pessoa iniciada no candomblé de tradição nagô-ketu. Tudo isso, é claro, respeitando as tradições da religião. “Vamos focar nisso até na parte plástica do desfile”, disse Carvalho. Para apresentar o legado da ialorixá baiana, a dupla escolheu uma narrativa poética.“Nós partimos da literatura de Mãe Stella, de quando ela recebeu das mãos de Mãe Aninha uma maçã na noite de Natal, e aí ela mesmo diz: ‘e assim começou o encantamento’. Daí abordaremos a iniciação dela por Mãe Senhora e o momento que se torna uma ialorixá. Todas as tradições que ela aprendeu com os mais velhos, ela deu continuidade: a preservação da cultura, da educação e a luta por questões sociais. Esse legado entra em cena”, explicou Carlos Carvalho.    O tigre de São Gonçalo, símbolo da escola, vai estar representado no desfile, asism como está no logo do enredo (Foto: Divulgação) Repercussão  Para o sobrinho de Mãe Stella, Adriano de Azevêdo, esse é o momento certo para uma homenagem ao legado da ialorixá. “Se ela tivesse viva, talvez pudesse se opor a participar de um movimento grandioso como esse, pois ela nunca foi de holofotes. Mas ela acompanhava as escolas de samba, ficava na frente da TV assistindo”, disse. Mesmo assim, para ele, a importância de ter a história da sua tia contada na Marquês de Sapucaí é algo relevante.   “É uma mulher negra, que fez parte da Academia de Letras da Bahia, escreveu oito livros, é sacerdotisa do candomblé, pioneira em ações socias, foi enfermeira... Tem todo um legado tão grande que eu pude presenciar. Poder reviver tudo isso através do desfile, sem a presença dela, vai ser muito emocionante”, disse.  Já Ribamar Daniel, presidente da Sociedade Cruz Santa do Afonjá e um dos obás de Xangô do terreiro, disse que Mãe Ana de Xangô, substituta de Mãe Stella no cargo de ialorixá, não ia se pronunciar sobre o desfile ainda. “A Porto da Pedra ainda não entrou em contato com a gente para consultarmos Xangô sobre a realização do desfile. Não é que não queremos que ela seja homenageada, mas temos que consultar o orixá patrono do terreiro”, disse.  

O pesquisador do enredo, Carlos Carvalho, explicou que, antes de anunciar o enredo, tinha tentado o contato com o Opô Afonjá por redes sociais, mas não obteve sucesso. No entanto, graças a repercussão do anúncio, eles conseguiram “estreitar os laços com a família espiritual e carnal de Mãe Stella. Já estamos em contato com toda a família e marcamos uma reunião virtual na sexta-feira para conversarmos sobre o assunto”, disse.  

Para Graziela Domini Peixoto, 58 anos, companheira da ialorixá nos seus últimos anos de vida, a homenagem feita pela Porto da Pedra pode ser uma oportunidade de transmitir os ensinamentos da líder religiosa para todo o país.  “Teve um período que uma escola queria homenagear o Ilê Axé Opô Afonjá e Mãe Aninha, e  Mãe Stella não aceitou. Se fosse hoje, ela aceitaria? Eu digo que sim, por uma adequação à modernidade. Mãe Stella não era a favor da mistura entre o profano e o sagrado, mas ela era inovadora. Se já foram feitas homenagens ao Gantois e a Bethânia, em enredos afro e respeitosos, não tem mais como barrar esse processo”, disse.   Ela ainda destacou alguns elementos que gostaria de ver no desfile, como "a luta que Mãe Stella travou para que o candomblé não fosse submisso a nenhuma outra religião, as obras culturais, os livros e a preocupação com a educação das crianças”, completou.  “Falar da Bahia sempre é muito satisfatório. É a região que recebeu os primeiros portugueses, onde começou toda essa nossa mistura. O estado é rico em cultura, tradições e é onde está o berço do Candomblé no Brasil, tema que sempre é bem-vindo no Carnaval”, explicou a carnavalesca da Porto da Pedra, Annik Salmon. Santa Dulce  Outra figura religiosa baiana e de importância nacional, Santa Dulce dos Pobres, também estará no carnaval de 2021. A freira soteropolitana foi a escolhida como tema do enredo Santa Dulce dos Pobres – O Anjo Bom da Bahia, da Unidos da Ponte, de São João de Meriti, cidade da baixada fluminense. A escola vai levar para a Marquês de Sapucaí um desfile do tipo biográfico. 

“Vamos contar a história dela como Maria Rita, Irmã Dulce e Santa Dulce. O enredo vai ser uma verdadeira homenagem ao legado que ela deixou, às Obras Sociais que ela construiu e às lições de amor ao próximo que ela nos passou”, disse Guilherme Diniz, carnavalesco da Unidos da Ponte.    Tema do enredo foi divulgado no domingo de Páscoa (12) (Foto: Divulgação) Também nessa escola, a preocupação com a tradição religiosa será levada em consideração. Por ser católico e abordar um tema religioso, o carnavalesco garante que a escola vai fazer um desfile sem nudismo ou elementos que possam ofender à fé. “Vai ser um enredo bem tradicional e respeitoso, pois quando a gente fala de fé, temos que ter um respeito, até mesmo pela questão da imagem. Eu não posso colocar uma mulher de biquini e sutiã representando Santa Dulce”, disse.   Outros carnavais   A Bahia é um estado que constantemente se torna tema de uma escola de samba. Em 2012, ano que se comemorava o centenário de nascimento de Jorge Amado, a Mocidade Alegre foi a campeã do carnaval paulista com um desfile sobre o escritor baiano.    As Ganhadeiras de Itapuã foram o "pé quente" da Viradouro (Renata Xavier/Divulgação) Em 2016, a Mangueira foi campeã do carioca com o enredo Maria Bethânia: A Menina dos Olhos de Oyá, que homenageou a cantora baiana. Já nesse ano, em 2020, foi a vez da Viradouro conquistar o título com o enredo De Alma Lavada, sobre As Ganhadeiras de Itapuã. 

* Com orientação da chefe de reportagem Perla Ribeiro