Do algodão ao ouro: conheça a história das fitinhas do Bonfim

Hoje, as de poliéster dominam, mas há versões até com ouro, esmeraldas, rubis e safiras

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  • Thais Borges

Publicado em 17 de janeiro de 2019 às 05:34

- Atualizado há um ano

. Crédito: (Foto: Evandro Veiga/CORREIO)

Quando a pequena Beatriz tinha quatro meses de idade, a representante comercial Carolina Dantas, 39, levou a filha até a Basílica do Senhor do Bonfim para que ela fosse benzida pela primeira vez. Esta semana, foi com a menina à igreja mais uma vez para repetir o gesto. Na bolsinha de Beatriz, agora com 1 ano e seis meses, fica amarrada uma fitinha do Senhor do Bonfim – cor de rosa, com uma figa dourada pendurada na ponta.  Beatriz anda com uma fitinha benzida na bolsa (Foto: Evandro Veiga/CORREIO) “Ela ganhou de presente. A dela é benzida, mas ela não usa no braço para não estragar”, explica a representante. Vinda de uma família católica, ela própria já perdeu as contas de quantas vezes amarrou a fita nos tradicionais gradis. Apesar de seguir essa tradição, ela diz que o segredo não está só nos três nós.“Acho que a fé vai muito além da fitinha”, disse Carolina. As fitinhas do Bonfim são uma das marcas da Bahia. Seja no pulso ou para amarrar no gradil da igreja, elas carregam a tradição de realizar três desejos quando se rompem e estão espalhadas por toda cidade. Mas, quem vê essa fita atual, nem faz ideia que ela já foi muito diferente. De seda, de algodão, de acetato. Hoje, as de poliéster dominam, mas há versões até com ouro, esmeraldas, rubis e safiras.  

Ela é tão famosa, que já foi importada para outros estados. A professora Lucineide da Rocha, 38, visita Salvador pela primeira vez. Só conheceu o Bonfim nesta terça-feira (15), mas sabe da fitinha desde que se entende por gente. Há cinco anos, em uma festa no Pará, se deparou com o mesmo costume.  Lucineide e o filho vieram de Brasília amarrar as fitinhas (Foto: Evandro Veiga/CORREIO) Na época, trouxe de viagem uma fitinha para o filho André, hoje com 13 anos.“Ele fez três pedidos: um cachorro, uma casa e um quadriciclo. Dois se realizaram. Só o quadriciclo que não veio”, brincou Lucineide, que é de Brasília.Espírita, ela acreditava na superstição. Por isso, aproveitou para amarrar as fitinhas no gradil da igreja. “Estamos vendo se vamos vir à Lavagem. Ainda não sei, porque estamos em um grupo grande”, disse, referindo-se à festa desta quinta-feira (17). 

Medida do Bonfim Mas, se hoje, a tradição envolve fitas coloridas e até realização de desejos, foi porque as coisas mudaram muito nos últimos anos. Na verdade, as mudanças teriam acontecido, mais especificamente, ao longo de 210 anos. É o que afirma o padre Edson Menezes, reitor da Basílica Santuário Senhor do Bonfim. 

Segundo ele, a fitinha foi criada em 1809, pelo tesoureiro da Devoção de Nosso Senhor do Bonfim, Manoel Antônio da Silva Serva. Naquele tempo, a fita sequer era chamada por esse nome. Era a tal ‘Medida do Bonfim’, porque tinha o comprimento do braço direito da imagem do Bonfim. 

A cor era branca, feita em algodão e bordada com fios de ouro. Bem mais grossa do que as de hoje, chegava a ter seis ou sete centímetros de largura. Segundo o padre, a medida foi criada justamente para angariar recursos para a igreja. Desde que a devoção foi fundada, em 1746, ela é a mantenedora da basílica, que só ficou pronta oito anos depois. 

Há quem diga, porém, que a origem das fitinhas é de antes disso. De acordo com o jornalista e pesquisador Nelson Cadena, as medidas sempre existiram na Igreja Católica – ou seja, nunca foram exclusivas do Senhor do Bonfim. Vindas de Portugal, se tornaram comuns em todas as festas religiosas do estado, a exemplo de Nossa Senhora da Conceição, Nossa Senhora das Candeias. 

Ele garante que elas eram de seda e lembravam uma estola – quase como aquelas usadas pelos padres para celebrar missas. Não se usava no pulso. O mais comum era ver pessoas com as ‘medidas’ nos ombros ou em chapéus, no caso de mulheres. E, mais caras, estavam longe de custar alguns centavos, como as de hoje. “Manuel Serva era um empreendedor. Ele fabricava, então ganhava dinheiro com isso. Mas, depois, se descobriu que tinha outro documento, de 1804, que já falava das fitas na própria irmandade do Bonfim. Então, não se pode falar que começou em 1809”, pondera.  Fitinhas desapareceram na década de 1940, mas reapareceram dez anos depois (Foto: Betto Jr./CORREIO) Isso durou até por volta de 1940, quando desapareceram por completo. Na década de 1950, porém, a indústria do turismo, segundo aponta o pesquisador , foi a principal responsável para que surgissem as fitinhas atuais. Ela passou a ser divulgada como um adereço ‘milagroso’. Inclusive, essa tradição dos três pedidos também seria importada. Em outros países, até pontos turísticos têm essa aura de realizar desejos – é o caso da Fontana Di Trevi, na Itália.  

“Foi uma decisão de governo para tentar manter viva a tradição. Teve uma divulgação muito grande das fitinhas, inclusive nas revistas Cruzeiro e Manchete. Como a festa do Bonfim sempre foi a grande festa da Bahia, ela ganhou uma visibilidade maior”. 

Inspiração para outras Enquanto a lavagem do Bonfim crescia, outras enfraqueciam. E, se antes as medidas eram comuns nas festas as católicas, hoje, elas se inspiram nas fitinhas do Senhor do Bonfim – mas as criadas no fim do século XX. Proprietário da empresa Skill, que produz os acessórios há 22 anos em São Paulo (SP), o empresário José Mondine conta que as fitas do Bonfim são campeãs de encomendas. 

Salvador é a cidade com o maior número de clientes, seguida de Bom Jesus da Lapa, no Vale do São Francisco, mas já recebeu pedidos de países como Alemanha, Estados Unidos e Canadá. Ele afirma que sequer sabe quantas vende, mensalmente. Outras festas do Brasil usam o Bonfim como referência. “A conversa é sempre a mesma: ‘a fita tipo a do Senhor do Bonfim’. A que vai sair hoje é de Bom Jesus dos Passos, em Lençóis, aí na Bahia. Tem outra de São José da Lagoa, padroeiro de Nova Era (MG), e por aí vai”, conta. Antes de ter a própria empresa, ele já trabalhava com as fitas. Em 1968, já produzia. Na época, as fitas eram feitas de acetato, um tecido que já não se usa mais porque se deteriora mais rápido. Rasga facilmente. Hoje, as fitinhas são de poliéster, que é mais resistente.  Hoje, as fitas são de poliéster (Foto: Evandro Veiga/CORREIO) O tamanho oficial, de 47 centímetros, dá lugar ao tamanho pedido pelo cliente – normalmente, fica entre 44 e 45 cm. “Agora, as fitas que você encontrar na praça, não vai encontrar uma com a medida correta. Você encontra até de 30 centímetros, por causa de custo, de preço. O turista passa lá, vê a fitinha, não sabe a história e acaba comprando. Isso vai acabando com a tradição”, opina. Ele vende um rolinho com 100 fitas por R$ 12. No Largo do Bonfim, é possível encontrar pacotes de 10 fitinhas por R$ 2. 

Pulseira de ouro E as fitinhas inspiram até mesmo o mercado de luxo. Há 15 anos, o designer baiano Carlos Rodeiro criou a Pulseira do Senhor do Bonfim, que tem versões que vão do ouro puro até com detalhes em brilhantes, safiras, rubis e esmeraldas. 

O acessório, que tem o mesmo formato das fitinhas, já foi usado por modelos do naipe de Gisele Bündchen e Naomi Campbell, além do cantor Elton John, da princesa Stéphanie de Mônaco, da atriz Deborah Secco e da influenciadora digital Thássia Naves.  Deborah Secco foi uma das fsmosas que usou a pulseira do Senhor do Bonfim criada por Carlos Rodeiro (Foto: Divulgação) "Tamanho sucesso se deve também ao significado de proteção que quem usa acredita ter, por conta da devoção ao padroeiro da nossa Bahia. Não por acaso, trata-se da minha criação mais procurada nas lojas e nos eventos que participo. É uma peça patenteada, que leva a Bahia para o mundo e que todo mundo sabe que fui em quem criei", disse Rodeiro.

Hoje, somente a Igreja do Bonfim não vende as fitinhas do Senhor do Bonfim. E, segundo o padre Edson, não há nenhuma projeção para que isso mude. "Hoje, já é uma coisa que praticamente virou domínio público, por isso, não pensamos mais", explicou. 

A cada três ou quatro meses, todas as que estão amarradas no gradil são queimadas pela igreja em uma cerimônia, até mesmo para dar lugar a novas. Por enquanto, é difícil imaginar qual será o que virá depois, na tradição das fitinhas. "Mas acho que é uma coisa tão forte que vai se perpetuar", opinou padre Edson. 

Confira cinco coisas que o Bonfim tinha e não tem mais Ninguém sabe, ao certo, quando a Lavagem do Bonfim foi criada. O que se sabe é que, em pelo menos dois séculos de existência, muita coisa mudou. Saíram trios, caminhões e jegues. Em seu lugar, entraram fanfarras, blocos políticos e até o próprio andor com o Senhor do Bonfim. 

Guardas de honra – Na abertura da festa, saíam pessoas montadas a cavalo. Assim como no Carnaval, tocavam trompetes e outros instrumentos de sopro. De acordo com o pesquisador e jornalista Nelson Cadena, porém, eles desapareceram na década de 1940. 

Desfile de ciclistas – Era um desfile que, de acordo com Cadena, fazia parte do cortejo oficial. Na época, saíam entre 100 e 200 ciclistas, com bicicletas ornamentadas – inclusive, usando fitinhas como decoração. “Tem uns 20, 30 anos que eles pararam de sair”. 

Jegues – Os desfiles com os jegues decorados eram famosos, mas, desde 2013, os jegues não dão as caras na festa. Depois de idas e vindas na Justiça, a presença dos bichinhos foi proibida sob a justificativa de maus tratos aos animais. Moisés Cafazeiro e a família desfilavam junto com o jegue Pagode (Foto: Alexandre Lyrio/Arquivo CORREIO) Trios elétricos – Já teve um tempo em que a Lavagem do Bonfim era um Carnaval antes da folia oficial, porque tinha trio elétrico e tudo. Desde 1998, porém, estão proibidos. Em 2014, foi a vez dos minitrios serem limados, com o objetivo de dar mais espaço aos pedestres.  Trio Joia desfilou na Lavagem do Bonfim de 1993 (Foto: Arquivo CORREIO) Caminhões – Da mesma época que os trios elétricos, também desapareceram praticamente ao mesmo tempo. “Você alugava um caminhão, colocava 80, 100 amigos, uma banda e seguia até o Bonfim. Era divertido, mas era uma bagunça e engarrafava muito”, explicou Nelson Cadena.