Em livro, Wilson Gomes analisa por que o Brasil virou à direita extremista

Professor da Ufba lança 'Crônica de Uma Tragédia Anunciada' nesta sexta-feira (20) no YouTube

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  • Roberto Midlej

Publicado em 18 de novembro de 2020 às 07:00

- Atualizado há um ano

. Crédito: Marina Silva/Arquivo Correio

Em seu novo livro, Crônica de Uma Tragédia Anunciada - Como a Extrema-Direita Chegou ao Poder (Sagga Editora), Wilson Gomes reúne uma série de textos escritos  por ele no Facebook entre 2014 e 2018, anos em que, segundo o escritor, “o Brasil virou radicalmente à direita”. Nos artigos, o professor da Faculdade de Comunicação da Ufba analisa como a Operação Lava-Jato, o antipetismo, as manifestações de 2013 e o impeachment de Dilma Rousseff, entre outros elementos, contribuíram para a eleição de Jair Bolsonaro em 2018.

Nesta entrevista, Gomes explica as diferenças entre direita e extrema-direita e analisa o que a derrota de Donald Trump nos EUA significa para a direita “troglodita”, segundo ele: “Sem Trump, Bolsonaro fica sendo o último representante da nova direita troglodita à frente de um país realmente importante para o mundo”. 

O livro será lançado nesta sexta-feira, às 20h, no YouTube da editora Sagga, às 18h, com a presença de Jean Wyllys e Francisco Bosco.

O subtítulo do livro fala em “extrema-direita”. Qual a diferença entre “direita” e “extrema-direita”? À primeira vista, a extrema-direita é uma posição no espectro ideológico que radicaliza as premissas da direita, assim como a extrema-esquerda radicalizaria as premissas da esquerda. Não é bem assim. A extrema-esquerda é, de fato, uma esquerda extremada que se coloca sob a tentação da ideia de um Estado totalitário, isto é, de um regime de governo que, para implementar ideais de igualdade social, fatalmente viola as liberdades e a igualdade políticas. Mas a extrema-direita é uma inversão conservadora da direita republicana e não a radicalização de suas premissas liberais. Explico. A direita representa o eixo liberal da democracia liberal e insiste na proteção dos cidadãos privados contra um Estado que tenderia inercialmente a retirar-lhes as liberdades, ao mesmo tempo em que é obstinada quanto ao fato de que os cidadãos é quem devem controlar o Estado e não vice-versa. A direita é uma posição republicanamente legítima e, portanto, também herdeira da luta contra o Absolutismo, contra o segredo e a razão de Estado, por liberdades econômicas, políticas e civis, por direitos e garantias fundamentais dos cidadãos privados. Já a extrema-direita vê aspectos fundamentais e irrenunciáveis da democracia liberal como estorvos aos seus projetos de sociedade. As liberdades civil, política e religiosa são para ela um empecilho ao seu modelo autoritário de sociedade, baseada em lei e ordem, unicidade doutrinária e controle do comportamento dos indivíduos. A divisão liberal do Estado em Três Poderes, mediada por sistemas de pesos e contrapesos, é um obstáculo ao seu padrão de sociedade ordenada, conduzida pela vontade forte e legítima do líder carismático que não deveria ser perturbada por liberdade de expressão, opinião e impressão dos divergentes nem pelos limites dados pelas instituições de controle. A extrema-direita é, na verdade, uma posição que até pode estar, institucionalmente, dentro de um Estado liberal-democrata, mas como um vírus testando os limites e atacando o sistema imunológico do hospedeiro para transformá-lo em um Estado autocrático. 

O governo bolsonarista pode ser considerado conservador ou reacionário?

Bolsonaro é reacionário, assim como o bolsonarismo. Entendo o reacionarismo como aquela posição política que não apenas é decadentista (“o passado era bom, o presente é decadência”), mas toma providências para parar o progresso, o avanço, e voltar à Idade de Ouro, em algum ponto da sua imaginação. Claro que estamos aqui falando dos costumes sociais, dos julgamentos morais sobre comportamento e caráter, ideias e atitudes, sobre vícios e virtudes. O conservador é o sujeito avesso a mudanças, temeroso com transformações, inseguro com relação ao que as liberdades e as liberalidades podem fazer com o seu mundo organizadinho, tradicional e seguro, ordenado pelos princípios que ele aprendeu e que não se atreve a examinar nem a discutir. O reacionário é o conservador que milita para que as coisas não mudem, não sejam discutidas nem examinadas, para que novas ideias não desafiem as já estabelecidas, para que novos costumes, novos hábitos, novos estilos de vida não se contraponham nem afrontem o seu velho, organizado e reconfortante mundo moral. Os bolsonaristas “hard core” consideram que mais do que o direito de governar o país, dentro dos limites do Estado de direito, das liberdades garantidas na Constituição e sob freios provenientes dos outros Poderes da República, Bolsonaro ganhou o direito de reformar moralmente o país. 

As manifestações que tiveram início em 2013 têm relação com a ascensão da extrema-direita? Por quê?

Por algumas razões. Primeiro, foi a ocasião em que uma sociedade que vinha numa espiral de contentamento, sentindo que a sua vida estava melhorando, quase ufanista, é apresentada dramaticamente ao sentimento de que algo estava muito errado. O fato é que até maio de 2013 dominava o que o saudoso jornalista Clóvis Rossi chamava de “feel good factor” (a sensação de que as coisas estão bem) e que a partir de junho uma chave virou e cada vez mais gente aderiu à sensação de que, no Brasil, vivíamos no pior dos mundos possíveis. 2013 deu este clique. Segundo, as manifestações de 2013 e 2014 deram palco e plateia a outras forças políticas além da esquerda de movimentos que iniciou a temporada de protestos. A direita no armário apareceu para dizer que o pior dos mundos possíveis era a esquerda há tanto tempo no poder; os intervencionistas militares apareceram para dizer que desde o fim do governo militar o que se vê é decadência; os ultraconservadores descreviam o presente como o pior dos mundos possíveis em termos de degeneração dos costumes, libertinagem nos estilos de vida e violação dos valores da Bíblia e da tradição. E a esquerda de movimentos, claro, estava lá para vociferar a sua insatisfação com a esquerda institucional ao governo, porque institucional, porque ao governo e porque custava a entregar o paraíso prometido, este que toda a esquerda que acha que o mundo é só vontade e representação espera que seja implantado na Terra. 

A derrota de Trump é um indício de que a onda da extrema-direita que chegou a países como Brasil, Hungria e Turquia está começando a se esvair?

É muito cedo para dizer. Donald Trump conseguiu mais de 73 milhões de votos e esteve a ponto de ganhar a eleição americana. O que significa, no mínimo, que a assim chamada “maior democracia” do mundo está dividida entre os que veem em governos autoritários, radicais e populistas uma ameaça à democracia e dois outros grupos: os que se identificam com o autoritarismo iliberal, antissistema, antimigrantes e ultraconservador e os que não se sentem comprometidos com os valores da democracia liberal ao ponto de se importar para correr em sua defesa, desde que, naturalmente, o autocrata de plantão consiga conduzir bem a economia. Os que consideram a extrema-direita uma ameaça à democracia se mobilizaram, juntaram forças e tomaram eleitoralmente o governo da mão dos outros dois grupos, mas foi por muito pouco. Se isso vai se replicar mundo afora é ainda muito cedo para dizer. O certo é que, sem Trump, Bolsonaro fica sendo o último representante da nova direita troglodita à frente de um país realmente importante para o mundo. Mas Bolsonaro nasceu para ser liderado, não para liderar, é vagão, não locomotiva. Vamos ver o que acontece no país e no mundo em um cenário pós-Trump. 

A vitória de Bolsonaro em 2018 significou que os eleitores dele realmente desejavam um governo de extrema-direita? Ou prevaleceu a ideia de que “qualquer coisa é melhor que o PT”?

Raramente há apenas uma razão de voto. O importante é que as diferentes razões de voto convirjam no mesmo candidato e guardem alguma coerência entre si. Falo no meu livro dos eleitores “não fascistas” de Bolsonaro, o sujeito que não compartilha a sua visão de mundo autoritária e adversária dos valores liberais e democráticos, mas ainda assim votou nele. Este sujeito pode ser, como muitos outros, alguém movido pelo sentimento de que o PT era o grande mal moral e político do país, e que, portanto, precisava não apenas ser arrancado da Presidência da República, pelo impeachment, como principalmente impedido de ganhar uma eleição presidencial. Impedido por Moro ou pelo voto, tanto faz. Para este sujeito, Bolsonaro podia ser escolhido sem hesitação, se não pelos seus próprios valores e predicados, vez que não os tinha, mas por representar o menor dos males ante a alternativa da volta do PT ao poder. Mas havia, claro, o ultraconservador de direita, o radical reacionário que quer uma guerra cultural para levar o Brasil para trás, para quando havia ordem, respeito, hierarquia, fé e obediência, o revisionista histórico da ditadura militar e do fascismo, o intervencionista militar, o homofóbico, machista e misógino, esses todos que hoje compõem o núcleo duro do bolsonarismo, 20% cravado da população, e que, afinal, de contas, continua a ser o público para o qual Bolsonaro fala e diante do qual ele encena o seu papel de líder autoritário, teocrático e incorruptível. 

No texto "O PT e a Corrupção" (p.33), o senhor se refere à corrupção como o "monoproblema nacional", o que, provavelmente se trata de ironia. A crença de que a corrupção seja esse "monoproblema nacional" contribuiu para a ascensão da extrema-direita no Brasil? Sim. A operação midiática-judicial da Lava-Jato e o movimento lavajista que daí derivou  foram uma das mais importantes torrentes que levaram muita água para o moinho do bolsonarismo e lhes deu um discurso mais universalizável do que o baseado nos slogans tradicionais dos ultraconservadores como “levar o Brasil para Cristo”, “Contra a sem-vergonhice que está aí” e “Bandido bom é bandido morto”. As outras ideias-motrizes foram, então, deixadas em segundo plano em nome da ideia de que os políticos precisavam ser punidos, principalmente os políticos do PT, para a purificação da sociedade brasileira. A ideia da “corrupção” foi ao mesmo tempo uma expressão da tipologia penal e da Teologia, ligada a pecado e expiação, a sacrifício e purificação. Chegou-se a um momento em que “corrupção” nem era mais uma expressão do vocabulário penal, mas uma descrição religiosa e moral da política nacional, liderada, naturalmente pelo PT: não é que os políticos fossem singularmente, corruptos, a política é que estava corrompida pelos pecados da ganância, do roubo e, no caso do PT e da esquerda, do apoio a práticas imorais como a homossexualidade, a pedofilia, a dessacralização feminista e por aí. E dessa mistureba de Sérgio Moro com Silas Malafaia, de Marco Feliciano com Deltan Dallagnol, é que se montou o discurso anticorrupção e antipolítica, sucesso de público e renda nas eleições de 2018. 

A extrema-direita é menos escrupulosa que a esquerda na hora de disseminar fake news ou essa é uma impressão maniqueísta?

A bibliografia mundial não tem dúvida: fake news são uma criação da direita. Tenho coletado um volume de 1025 artigos científicos publicados sobre fake news no mundo inteiro até julho de 2020 e o fenômeno era irrelevante até 2016. A sua estreia mundial são as eleições americanas vencidas por Trump. Então, sim, faz parte das estratégias de propaganda suja da nova extrema-direita digital, de cuja onda fazem parte Trump e Bolsonaro. E são usadas pesadamente como arma de campanha juntamente com outros recursos como teorias da conspiração e outras formas de difamação e assassinato de reputação de adversários e divergentes, de difusão de interpretações falsas e falsas narrativas de fatos em conformidade com os interesses da campanha. E são parte de outros comportamentos antidemocráticos online como a exposição de pessoas à importunação e à violência, e os linchamentos digitais. Mas é claro que é fácil de dominar o modus operandi da fabricação e do tráfico de informações falsas e de teorias do complô e a esquerda também aprendeu a usar o recurso. Há, contudo, uma enorme desproporção no uso desse tipo de material entre a extrema-direita e outras posições no espectro ideológico como a direita, o centro e a esquerda.

Quando: 20 de novembroOnde: Youtube – Página da Editora SaggaHorário: Das 18 às 19hConvidados: Jean Wyllys e Francisco BoscoParticipação gratuita