Escritor e ensaísta baiano, Evando Nascimento reverencia a ancestralidade

Nascido em Camacã e radicado no Rio de Janeiro, ele veio a Salvador para participar da Flipelô e lançar livros

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  • Kátia Borges

Publicado em 5 de novembro de 2022 às 18:21

- Atualizado há 10 meses

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Natural da cidade de  Camacã, no sul da Bahia, mas radicado há muitos anos no Rio de Janeiro, o escritor, professor, ensaísta e artista visual Evando Nascimento sempre vem a Salvador, onde, desta vez, participou da mesa ‘Escrever ficção, poesia & ensaio – um testemunho’, na Flipelô, com apresentação da professora do Instituto de Letras Evelina Hoisel. O evento segue até este domingo (6). Pensador contemporâneo, prosador atento, ensaísta original e um artesão de imagens e versos, Evando lança durante a festa dois novos livros: o romance Diários de Vincent e o livro de poemas Linha a Linha. Nesta entrevista, ele fala sobre suas andanças pelo mundo, como isso influenciou sua literatura e o que pensa sobre o peso das culturas ameríndias e africanas.

Como é a sensação de retornar à terra natal, após tantas andanças? Penso aqui no narrador clássico de Benjamin, o viajante, que traz notícias das terras (metaforicamente falando) por onde andou.  A palavra “andança”, que você usa, faz todo sentido. Me formei em Letras pela Ufba, depois, nos anos 1980, fui fazer mestrado na PUC Rio, doutorado na UFRJ e, em seguida, passei cinco anos na França (de 1991 a 1996), dois estudando na Sorbonne em Paris e três dando aulas na Université Stendhal de Grenoble. Em 2007, passei alguns meses em Berlim num pós-doutorado. Saí da Bahia com 22 anos e agora estou com 62 anos, a maioria desse tempo morei no Rio de Janeiro. Olhe, como um narrador clássico ou o “contador de histórias” de Benjamin, tenho muito para narrar. Aliás, grande parte de minha literatura se baseia nessas caminhadas e estadias noutras regiões e países. Não por acaso, meu segundo livro de ficção se chama Cantos do mundo (contos, Record) e fala de lugares tão distintos quanto Berlim, Salvador, Lisboa, Rio de Janeiro e Paris. Nem todo escritor precisa sair de sua terra para poder inventar histórias, mas em meu caso isso deu um lastro existencial e literário enorme. Todavia, sempre ressalto que a base sólida é mesmo baiana: camacaense e soteropolitana.

Nessa vinda à Bahia, o senhor traz na bagagem ao menos dois lançamentos: o romance Diários de Vincent e o livro de poemas Linha a Linha, que é um livro de arte. Como nasceram e se desenvolveram esses dois projetos?  Quando eu era estudante no Instituto Social da Bahia (que foi demolido recentemente), sonhava em fazer o curso de Belas Artes e me tornar artista. Eu desenhava muito, mas era autodidata e, por isso, tive medo de ser reprovado no teste de aptidão artística. Optei por Letras, porque também adorava literatura e já tinha escrito um livro aos 14 anos, um romance decerto fraco, cujos originais perdi numa de minhas inúmeras mudanças. Ao longo dos anos, paralelamente à carreira de professor-pesquisador e de escritor, desenvolvi a paixão por artes. Conheci alguns dos grandes museus do mundo na Europa e nos Estados Unidos. Aos 16 anos, eu já ia sozinho ao Museu de Arte Moderna da Bahia, no Solar do Unhão. Em 2015, finalmente resolvi estudar na Escola de Artes Visuais do Parque Lage, no Rio de Janeiro, e desde então fiz inúmeros trabalhos de desenho, colagem e pintura, todos com uma forte relação com a escrita. Esses dois livros nasceram nesse movimento de retorno a uma prática artística exercida na adolescência: Diários de Vincent, inspirado num dos maiores pintores de todos os tempos, Van Gogh; e Linha a linha, um livro impresso que reproduz o que se chama de “livro de artista”, um objeto estético experimental, todo feito à mão, com nanquim e papel, bem como um poema em prosa, na segunda parte. São, portanto, um romance e um poema totalmente vinculados às artes visuais.   

Em Diários de Vincent, o senhor recria um Van Gogh que, em sua própria definição, foge aos estereótipos. Em que medida, a seu ver, a mídia alimentou e alimenta uma visão distorcida do pintor? Van Gogh é, a meu ver, um dos artistas mais prejudicados pela mitologia que a mídia, mas também o cinema, criaram em torno de sua biografia. Sem dúvida, em parte, o mito é correto: ele viveu a maior parte do tempo solitário e teve uma forte crise de loucura, que o levou a um hospício. Mas ele foi muito mais do que isso: teve grandes amigos, como o próprio irmão Theo, que sustentou sua carreira até o fim, além dos pintores Toulouse Lautrec, Émile Bernard e Paul Gauguin, entre outros. Teve ao menos três histórias de amor de que ninguém fala – a última foi com uma bela italiana, Agostina Segatori, que posou para dois de seus mais belos quadros. E sobretudo era um homem de imensa cultura literária e artística. Na enorme correspondência com Theo, um terço da qual escrita em francês, aparecem diversas referências a escritores como Zola, Balzac, Tolstói, Dickens, Shakespeare e muitos outros. Conhecia a história da arte, em particular a holandesa, como ninguém. Tudo isso torna a biografia do pintor holandês muito mais complexa do que o mito. Finalmente, tirei proveito das referências que aparecem aos trópicos, em particular ao Brasil. “Meu” Van Gogh é muito tropical, e a inspiração é real, não tem nada de forçada. O nome do Brasil aparece positivamente mais de uma vez nas cartas, as quais eu reinterpreto livremente sob a forma de diários.  

O senhor disse numa entrevista que “a verdadeira inteligência hoje está no modo como nos relacionamos com as alteridades vizinhas, plantas e animais”. Como vê hoje a evolução dos estudos e escritos sobre essas alteridades?  Esses estudos ultrapassaram o campo estrito da botânica e da zoologia em direção a outras áreas do saber, tais como filosofia, literatura e artes. Na verdade, os gregos antigos já se preocupavam com os outros viventes não humanos. Aristóteles, sobretudo, se interessou em saber se plantas e animais eram dotados de psyché, o termo que deu psiquê nas línguas neolatinas e que muitos chamam de “alma”. Prefiro traduzir psyché como “princípio vital”. Aristóteles reconheceu que tanto os vegetais quanto os bichos têm um princípio vital, porém limitado, sem as características dos humanos. Hoje essa superioridade antropocêntrica está sendo posta em questão no âmbito da própria botânica e da zoologia. Cada vez mais se pesquisa a inteligência e a sensibilidade de que as espécies vegetais e animais são dotadas.

Nesse sentido, como relaciona seu livro ‘O pensamento vegetal’ ao que chamam de virada vegetal e aos demais estudos sobre o tema?  Não gosto muito da expressão “virada vegetal”, bastante utilizada, pois dá uma ideia de moda, de algo recente que vai passar. É verdade que neste século, sobretudo na última década, o interesse pela singularidade da vida vegetal, por exemplo, aumentou muito e sobretudo ganhou uma configuração inédita. Dentro da biologia, as plantas sempre foram menos valorizadas do que os animais, pelo simples motivo de que estes têm alguma semelhança conosco: possuem focinho que lembram nariz, bocas e garras que lembram nossas bocas e unhas, são dotados de pelos, patas etc. Já as plantas são morfologica e fisiologicamente muito distintas, ou seja, não nos reconhecemos nelas. Daí um verbo como vegetar passou a significar nas línguas neolatinas, como português e francês, algo de muito negativo: estar em coma, não levar uma verdadeira vida. Hoje cientistas como Stefano Mancuso (já bem traduzido no Brasil) e Anthony Trewavas inverteram essa tendência, mostrando como os vegetais dispõem de grande inteligência e sensibilidade. Basta dizer que nós, animais, não somos capazes de produzir nossos alimentos a partir da matéria inorgânica nem como transferir a energia da luz solar diretamente para nossos corpos. Quem faz isso são os vegetais.

O que o senhor define como “fitofobia” e “fitocídio” e como estes termos se relacionam ao conceito de necropolítica na contemporaneidade?  Quando em 2019, o presidente Bolsonaro disse que não lhe interessavam nem o índio nem a “porra da árvore”, mas sim os minérios na exploração da Amazônia, ele demonstrou todo seu desprezo pela vida vegetal. Não por acaso, nesses quatro anos de seu governo, o desmatamento no país aumentou vertiginosamente, e não só na Floresta Amazônica, mas também no Pantanal, na Mata Atlântica e noutros lugares. Todos os nossos biomas estão ameaçados pela expansão imobiliária, pela poluição, mas sobretudo pelo agronegócio, que precisa derrubar florestas para abrir pastos ou campos de monocultura, como a soja. Fitofobia seria literalmente esse horror ou desprezo pelas plantas. Já fitocídio seria o “genocídio” dos vegetais, que futuramente pode representar o suicídio coletivo da própria espécie humana.

Quando o senhor afirma que “os saberes não ocidentais, que foram sempre reprimidos, vão ter grande influência para as humanidades”, como pensa que se dará esta transformação?   O fato de não considerar que seja uma virada recente se deve também ao motivo de que culturas ameríndias e africanas sempre tiveram uma relação diferente da nossa com os outros viventes. Para muitos povos africanos, as árvores são sagradas. Indígenas de várias culturas amazônicas ou não chegam a conceber que animais podem ser nossos ancestrais e que as plantas são habitadas por espíritos. Independentemente de se acreditar nisso ou não, o que importa é que essas culturas têm um respeito pelas outras formas de vida que nós, de cultura originariamente europeia, não temos. Só valorizamos as vidas humanas, e mesmo assim nem todas, porque nos países ocidentais é absurdamente crescente o número de desvalidos, de um lado, e de outro, a pequena quantidade de trilionários. Desconheço povos indígenas, ao menos na história recente, em que se dê esse acúmulo vergonhoso de bens e propriedades. É, portanto, com os saberes que esses povos desenvolveram ao longo dos séculos que temos muito o que aprender. Fico feliz em ver como a Universidade, por exemplo, tem dado diplomas de notório saber a personalidades oriundas do meio popular, tal foi o caso da UFMG há uma semana. Indígenas como Ailton Krenak também têm recebido títulos de doutor honoris causa. Do mesmo modo, foi muito simbólico que Mãe Stella de Oxóssi tenha ocupado uma cadeira na Academia de Letras da Bahia até seu encantamento em 2019. Tudo isso é muito novo, e ganhou grande força no século XXI. Infelizmente a reação contrária a essa tendência ao reconhecimento de saberes ancestrais também tem sido violenta, por causa dos movimentos neofascistas atuais.  

Qual o papel da literatura na reconstrução de um pós-humanismo que inclua definitivamente as chamadas alteridades subjetivas? A literatura, desde as fábulas de Esopo, e desde as chamadas mitologias ocidentais e não ocidentais, sempre colocou animais e plantas num plano de grande relevância. E no século XX autores como Kafka, Guimarães Rosa, Clarice Lispector, Borges, Drummond e diversos outros deram papéis altamente decisivos para esses viventes não humanos. Há toda uma fauna e toda uma flora em Clarice Lispector que é dotada da quase a mesma importância que a vida humana, tal como tento demonstrar num dos capítulos de O pensamento vegetal, “Clarice e as plantas”. A personagem Ana, do conto “Amor” (da coletânea Laços de família) se transforma quando entra no Jardim Botânico, tendo uma conexão inédita com a paisagem entorno. Mas há diversas outras histórias claricianas com plantas e animais: “A imitação da rosa”, “Macacos”, “A quinta história”... Hoje no Brasil são sobretudo poetas que têm se dedicado à fauna e à flora com uma abordagem não romântica nem simbolista, mas contemporânea, como Edimilson de Almeida Pereira, Julia de Carvalho Hansen e Ana Martins Marques.  

“Todo grande leitor é potencialmente um grande escritor: mesmo que nunca publique um livro”. Como a escrita se desenvolve enquanto ação no corpo deste país e de seus escritores, a partir desta sua afirmativa?  Posso falar a partir de minha experiência. Desde a infância camacaense, eu lia muito todo tipo de livro e histórias em quadrinhos. Foi assim que aos 14 anos escrevi o romance, a que já me referi. Ao longo das décadas escrevi muitos ensaios e contos. A partir de 2008, comecei a publicar ficção, isso depois de já ter uma carreira como teórico, crítico e professor universitário bastante consolidada, aqui e no exterior. Hoje já são seis livros de literatura, entre prosa e poesia. Tudo isso só foi possível porque li inúmeros autores e autoras, brasileiros e estrangeiros. Leitura é “metade da arte” (expressão de Baudelaire), a outra metade é a escrita. Uma alimenta e vivifica a outra. Daí ser importante reativar os programas governamentais de leitura, no nível federal, estadual e municipal. É uma tristeza saber que inúmeras de nossas cidades não têm sequer uma biblioteca municipal, para toda a população, contando no máximo com uma pequena biblioteca escolar. Por isso fiquei muito feliz ao saber que na cidade do grande escritor Antônio Torres, Sátiro Dias, vai ser inaugurado o prédio de uma biblioteca com seu nome. Essa é uma realização que deveria acontecer em todo o país. Sem leitores e leitoras, nenhuma literatura, nenhuma cultura nacional se desenvolve adequadamente. Há populações inteiras que só contam com a televisão e a internet para ter acesso a uma cultura que não seja estritamente local.

Este ano celebramos em todo o país o centenário da Semana de Arte Moderna, qual foi, em sua perspectiva, a real dimensão deste movimento, considerando a diversidade de recepções, sobretudo no Nordeste? Mais uma questão generosa, como todas as outras, aliás. Do ponto de vista da “cultura oficial”, acho que a importância da Semana de 22 e do Modernismo, que depois se desenvolveu, foi grande. Chamo de cultura oficial aquela que sempre reconheceu grandes autores, em detrimento de outros menos consagrados. A Semana foi uma conjunção de personalidades sobretudo paulistas e cariocas (mas não exclusivamente: Graça Aranha era maranhense radicado no Rio), que se inspiraram no que as vanguardas internacionais, como cubismo e futurismo, já faziam na Europa e nos Estados Unidos. O que nem sempre se entende é que esse viés vanguardista foi decisivo para o modernismo histórico e marcou autores posteriores como Clarice e Guimarães Rosa. Outros estados como a Bahia, Minas e o Rio Grande do Sul também tiveram desdobramentos a partir do diálogo com o modernismo da Semana, e isso tem sido bem mapeado pelos estudos recentes. Os grupos baianos de Arco e Flexa e a Academia dos Rebeldes (de que Jorge Amado fez parte) têm ganhado maior visibilidade pelo trabalho de estudiosos como Evelina Hoisel. Por outro lado, tenta-se pensar hoje outras formas de modernidade sem vínculo direto com a Semana. Assim, um autor como Lima Barreto e até Graciliano Ramos, que rejeitaram explicitamente o Modernismo oficial, têm sido interpretados como inventores de uma outra modernidade literária e estética. O papel dos autores negros em geral tem sido igualmente reavaliado, visto que durante décadas eles foram excluídos do cânone oficial. O mesmo acontece coma produção literária de mulheres ao longo do século passado. Finalmente, a cultura popular precisa ser cada vez mais revista em sua modernidade específica. Isso é o que chamo de “modernidade ampliada”, mais além do Modernismo oficial.