Existe anonimato na internet? Entenda como autores de crimes virtuais podem ser achados

Nos últimos dias, houve ataques à pesquisadora e ao filho da cantora Karol Conká

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  • Thais Borges

Publicado em 13 de fevereiro de 2021 às 16:00

- Atualizado há um ano

. Crédito: Foto: Shutterstock

"Feminista fedorenta, sovaco cabeludo, cara de fuinha, cara de maracujá, feia, estúpida, horrorosa. Demoníaca, desprezível, bafenta. Deveria ter sido abortada. Vai morrer empalada. Vou matar você. Sei onde você mora. Cretina, miserável". 

A lista de ofensas não para por aí - e só piora. Se foi minimamente perturbador ler essas palavras soltas, imagine se soubesse que esses ataques são destinados a você. Sem parar, chegam aos montes, na internet, vindos de perfis falsos e até de prováveis robôs. Escondidos por um pretenso anonimato, destilam ódio, promovem linchamentos virtuais e até ameaçam de morte. 

Nesse caso específico, foram todos direcionados à antropóloga Debora Diniz, professora da Universidade de Brasília (UnB) e uma das maiores referências no estudo sobre o aborto no Brasil. Desde o último fim de semana, Debora, que teve uma postagem crítica ao presidente Jair Bolsonaro tirada de contexto por um site, recebe mensagens de ódio de grupos bolsonaristas.

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A situação dela nem mesmo foi a única nos últimos dias. O filho da cantora Karol Conká, o adolescente Jorge Conká, 15 anos, fez um desabafo em sua página, depois de ser bombardeado por ofensas. A justificativa dos agressores? Segundo eles, seria a participação da mãe do garoto no reality show Big Brother Brasil - Karol tem sido apontada como vilã da edição. "Eu não tenho nada a ver com o que acontece dentro ou fora daquela casa", disse o menino. 

Mas será mesmo que os autores dos ataques vão permanecer anônimos? Há quem diga que existem brechas que garantem que a identidade fique desconhecida, mas alguns especialistas creem que é impossível. Ou seja: dá sim para que sejam responsabilizados.. "Não existe anonimato na rede. As pessoas às vezes se disfarçam de perfis falsos nas redes sociais, mas nós, profissionais digitalistas, temos instrumentos dados pela lei para chegar à autoria", diz a advogada Tamiride Monteiro, professora de pós-graduação em Direito Digital e presidente da Comissão de Tecnologia da Informação da Ordem dos Advogados do Brasil - Seccional Bahia (OAB-BA). Rastros digitais Ter uma página fake numa rede social, portanto, não significa que não há rastros. "Você deixa sua pegada na rede", pontua Tamiride. Seguindo esse caminho, é possível solicitar, à Justiça, os dados de usuários de sites como Twitter, Instagram e Facebook. O pedido pode incluir o número do IP, o email usado para cadastrar o perfil e o número de celular. 

Com esses dados, a vítima e seus advogados podem continuar a busca - essa segunda fase pode ser com a operadora do celular ou a provedora do email, por exemplo. E aí, já era: é possível chegar a quem fez aquilo. A pessoa pode responder tanto civilmente quanto na esfera criminal.

A partir do momento em que a vítima se sente ofendida, difamada ou injuriada, dá para acionar a Justiça. Mas ainda que crimes como o de injúria (incluindo a racial) sejam alguns dos mais comuns, eles não são os únicos. Na rede, tem de tudo: de extorsão a ameaças de morte, de pornografia de vingança a pornografia infantil. "É como educar uma pessoa a usar o cinto de segurança. A partir do momento que começa a doer no bolso, uma começa a dizer para a outra que respondeu processo por isso", acredita a especialista em Direito Digital.Para a advogada, essa 'educação digital' deve ser passada adiante. "As pessoas acham que ter um wi-fi público significa que elas podem fazer o que querem. A liberdade de expressão existe e tem que ser respeitada, mas ela termina a partir do momento que ofendem, ameaçam, difamam, causam injúrias", explica. 

Mais difícil Essa é a realidade para a maioria das pessoas que usam os provedores tradicionais de internet. Mas nem sempre é assim, segundo a delegada Lívia Carvalho, chefe do Grupo de Repressão a Crimes Cibernéticos da Polícia Federal.

"A gente ouve muito falar da deep web ou das redes VPN. É uma criptografia. Elas funcionam como descascar uma cebola. Você chegaria ao IP por milhares de fases, até chegar naquele núcleo da cebola, que seria o IP questionado", explica. Na deep web - a parte não indexada da web -, é como se o IP do autor do delito rodasse por vários países do mundo. Assim, não fica registrado em nenhum provedor.

Essa não é, porém, a internet 'padrão'."Todas as investigações relacionadas com a prática de delitos em geral na internet vão buscar a conexão original", diz a delegada. O que ainda pode acontecer é o que ela chama de cortina de fumaça. A pessoa usa a internet tradicional, mas, uma rede wi-fi pública. Isso faz com que a conexão não seja anônima, mas torna mais difícil chegar ao usuário que estava naquele local, naquele dia e hora exatos. Mesmo assim, não é impossível. “Saber de onde partiu a conexão também é relevante. E ela nunca vai ser anônima”, reforça. 

‘Soldados do ódio’ Situações como essa levam também a um debate psicológico. Em um caso de linchamento virtual, o psiquiatra André Brasil, professor de Medicina da UniFTC, acredita que o primeiro passo é buscar ajuda profissional. Isso evitaria que, mais tarde, a vítima desenvolvesse um quadro de estresse crônico ou mesmo de doenças como ansiedade e depressão. 

"Na verdade, tanto o abusador quanto a vítima precisam ser olhados profissionalmente por alguém. Às vezes, é difícil olhar o rebanho, mas quem é assediado obrigatoriamente deve passar por um acompanhamento", defende. 

Com as redes sociais, comportamentos que sempre existiram - como bullying e o stalking (uma perseguição persistente) - ficaram mais fáceis. Até em sites de notícias, a maioria dos comentários são mensagens de ódio. Segundo o psiquiatra, em casos de ataques em massa, é como se houvesse um exército de soldados invisíveis. "Esse anonimato dá uma espécie de barreira. Você vai desenvolver a agressão por ser um soldadinho do ódio, mas o outro não vai devolver o ódio (especificamente) a você. Quem está sendo odiado, destruído, não tem como se defender", pondera. A pandemia potencializou isso, já que as relações ficaram mais virtualizadas. Ao mesmo tempo, muitos usuários, ao se deperarem com uma situação de bullying, linchamento ou mesmo de stalking, decidem reforçar o coro - ou odiar em massa. São, inclusive, pessoas que, no dia a dia, dificilmente seriam vistas como gente que destila ódio na internet. 

"Pelo véu desse pretenso anonimato, elas se revelam. Não quer dizer que sejam odiosas, mas ajuda a entender como esse rebanho se movimenta. Tem que fazer um processo de psicoeducação com essas pessoas, que é algo feito com cada paciente", completa.