'Fazemos com muito amor, temos o direito’, diz mãe de santo sobre sacrifício de animais

Entidades do candomblé defendem sacralização e comemoram decisão do STF

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  • Tailane Muniz

Publicado em 31 de março de 2019 às 06:00

- Atualizado há um ano

. Crédito: Marina Silva/ARQUIVO CORREIO

Não à toa, a ialorixá Jaciara Ribeiro é categórica ao afirmar que não faz o sacrifício de animais, mas a sacralização deles. Líder do terreiro Ilê Axé Abassá de Ogum, que funciona há 38 anos no bairro de Itapuã, em Salvador, ela acredita que, no entendimento das pessoas, a palavra sacrifício reflete algo sofrível e brutal, o que, para a mãe de santo, vai na contramão do real sentido do ato, descrito como uma oferta, junto aos orixás, para alcançar bênçãos, equilíbrio, amor e prosperidade.

Seja qual for a definição por pais e mães de santo, o fato é que o Superior Tribunal Federal (STF) decidiu, em julgamento realizado nesta quinta-feira (28), que é constitucional a lei que permite o sacrifício de animais em cultos de religiões de matriz africana. Mãe Jaciara acompanhou a sessão, em Brasília, e disse que, “se as pessoas não fossem tão preconceituosas, o caso não precisaria ter virado uma pauta de Justiça”.

Os ministros analisaram o tema pela perspectiva de uma lei estadual do Rio Grande do Sul, que defende o sacrifício de animais em circunstâncias propostas, por exemplo, pelo candomblé. A autorização foi acrescentada no Código Estadual de Proteção aos animais, que veda agressão e crueldade – coisas, que, aliás, mãe Jaciara faz questão de reiterar quando toca no assunto.“Em todas as religiões, as pessoas têm liberdade de fazer suas oferendas. Nós temos uma série de normas, como a não utilização de animais domésticos. Além disso, nós cuidamos, damos banho, criamos relação com alguns, que passam a viver conosco antes do ato simbólico, em si”, disse, ao comentar que, não poderia dar maiores detalhes, em respeito às tradições.“É importante que fique claro que não há maus-tratos, violência, não há 'magia negra'. Que bom que continuaremos com a liberdade de cultuar nossos orixás, no nosso país, que é laico, por isso vencemos por unanimidade. Nós fazemos tudo com muito amor, o animal não sofre, não fica penando, é um único golpe no pescoço. A gente não mata para vender, alimentamos nossa comunidade. Como poderíamos realizar algo sofrível, se o objetivo é alcançar coisas boas?”, indaga a ialorixá.  

Por meio da promotoria do Centro de Apoio Operacional do Meio Ambiente, o Ministério Público do Estado da Bahia (MP-BA) afirmou ser favorável à decisão. "Entendemos que a decisão do STF foi acertada", se limitou a dizer a promotora Cristina Seixas, coordenadora do Centro de Apoio Operacional do Meio Ambiente do MP-BA. Mães e pais de santo chegaram a ir às ruas, em agosto de 2018, pelo direito de sacralizar animais (Foto: Almiro Lopes/ARQUIVO CORREIO) 'Elo entre energias' A morte de um animal, no ritual, é um processo rápido e, defendem os religiosos, sem dor. Um único golpe, na carótida, região do pescoço, é suficiente para o cumprimento da sacralização. A ferramenta utilizada é sempre uma faca, que precede o ritual a Ogum, o orixá que representa a arma branca.

O primeiro ato, no entanto, é uma espécie de pedido de desculpas ao bicho que, segundo os líderes da religião, chegam a se “oferecer”, em alguns cultos. Quem explica a relação do processo religioso é o obá odosin Ribamar Daniel, presidente da Sociedade Cruz Santa do Ilê Axé Opô Afonjá – um dos terreiros mais antigos da cidade, fundado há 119 anos, no bairro de São Gonçalo do Retiro, e que teve como ialorixá Mãe Stella de Oxóssi, morta em dezembro de 2018.“Com a sacralização, queremos fazer o elo de ligação entre nós, crentes na religião e os orixás, como a simbolização da energia. Os animais não sofrem, eles têm uma passagem tranquila e preparada. Não é pegar aleatoriamente e sacralizar, é preparar, cuidar, limpar, pedir perdão pela morte e cantar para eles que, às vezes, se entregam”, relata o líder religioso.A aceitação da morte, segundo Ribamar, é evidenciado pelo bicho quando ele, por espontânea vontade, entra no ambiente onde vai ser realizado o sacrifício. “Nas festas de Oxóssi, ele tem que dar três voltas na casa do orixá e, por espontânea vontade, quando entra antes da última volta, a gente entende que ele aceitou. Mas cada orixá tem o animal de sua preferência. Pode ser o galo, a galinha, carneiro, bode, porco. Seja qual for, é uma troca”, destaca Ribamar, ao comentar que toda comunidade já esperava por uma decisão favorável.

Por meio de texto enviado ao CORREIO, a presidente da Comissão de Combate à Intolerância Religiosa e conselheira regional da Ordem dos Advogados do Brasil - Seccional Bahia (OAB-BA), Maíra Vida, se mostrou favorável à deliberação da suprema corte. O texto comenta que a decisão reflete o “melhor do Direito e abomina o racismo religioso e todas as formas discriminatórias que embaraçam o livre exercício da fé”.

“A proposição de que a retirada de dispositivo legal que se refere, precisa e especificamente, à proteção do sistema religioso do povo de santo implicaria na salvaguarda dos princípios constitucionais da igualdade e da laicidade, que tangenciam a todos/as indiscriminadamente, apenas assevera a desigualdade material porque não há, tratamento paritário para as religiões no Brasil, ainda mais em se tratando das religiões de matriz africana”, diz o manifesto. Líderes defendem que animais não sofrem em sacralização (Foto: Almiro Lopes/CORREIO) ‘O sacrifício não é uma maldade, impedir é racismo’ Mãe Carmen, anfitriã do terreiro do Gantois, localizado na Federação, um dos mais famosos de Salvador, afirmou que a decisão foi um acerto do STF.  "Oferecemos o fluído aos orixás e a carne para nos alimentar. Se soubesse, se convivessem numa casa de candomblé, esse assunto nunca sairia do ninho. Nossa consciência é super tranquila". 

Questionada sobre de que maneira os animais são "preparados", respondeu: "Só vendo para crer. É uma coisa linda, a gente não mata por matar. A gente dá banho, alimento, uma vida saudável", afirmou a mãe de santo de 90 anos. Já é de conhecimento das pessoas que algumas outras religiões, como o judaísmo, são adeptas do ato de matar animais durante culto ou seitas religiosas, como lembra o doutor e professor do Programa de Pós-graduação em Antropologia da Universidade Federal da Bahia (Ufba), Ordep Serra. 

“Em várias religiões é um ato comum. Sacrifício, em latim, quer dizer fazer o sagrado, porque é um alimento. Se eu colho uma planta que vou oferecer a uma divindade, eu estou fazendo um sacrifício. No Candomblé, ele tem sentido de oferenda, você colhe uma planta ou um animal, e oferece ao orixá”.  Ordep acrescenta, ainda, que o bicho vai ser consumido por pessoas da comunidade, ou seja, que vivem ou frequentam o terreiro.“Obviamente, assim como os alimentos que todos nós comemos, que também foi imolado mas não foi consagrado. Então é isso, quando você oferece a um orixá um cabrito ou um galo, você vai oferecer à comunidade. Não é uma maldade e não é à toa”, comenta o antropólogo. Segundo ele, as partes oferecidas ao orixá são as que, em geral, não são consumidas por pessoas, como cabeças, vísceras e pés. Ordep também destacou que é feito um ritual de pedido de desculpa aos bichos, antes da sacralização de cada um. 

“As pessoas não pensam, mas os frangos, por exemplo, são bastante maltratados nas granjas, coisa que não acontece nos terreiros. Pelo contrário, eles criam. Condenar o sacrifício é uma implicância que vem do racismo. A maior parte da população brasileira não é vegetariana e isso é um fato”.

E completou: “O Supremo teve toda razão em acabar com essa bobagem, porque é algo que diz respeito à nutrição e segurança alimentar das pessoas dessas comunidades, isso é um direito humano, convenhamos”.  Em poucas palavras, o que o povo de santo questiona a quem é contrário ao sacrifício é: há a diferença entre o animal que se oferece no candomblé para o que se come nos restaurantes?

*Colaborou Vinícius Harfush, com supervisão do chefe de reportagem Jorge Gauthier