Herdeiros de mestres do Carnaval baiano contam como levam adiante o nome da família

Hoje, herdeiros usam o que aprenderam com mestres e levam adiante o nome da família, seja em empresas, em banda que resiste há mais de quatro décadas ou abrindo um caminho próprio

  • Foto do(a) author(a) Gabriela Cruz
  • Gabriela Cruz

Publicado em 16 de fevereiro de 2015 às 10:35

- Atualizado há um ano

Ensinamentos que passam para filhos e netos, relatos de superação e  criatividade que inspiram gerações.  Orlando Tapajós, Osmar Macêdo, Luiz Gagliano, Charita. Homens que ajudaram a escrever vários capítulos da história do Carnaval baiano    movidos a paixão em épocas em que as decisões eram tomadas muito mais  por intuição do que por um plano de marketing ou acordo de publicidade.Hoje, seus herdeiros usam o que aprenderam com eles e  levam adiante o nome da família, seja em empresas que fazem da festa um negócio, em uma banda que resiste há mais de quatro décadas ou abrindo um caminho próprio, porém inspirado em lições de vida. ACOMPANHE A COBERTURA COMPLETA DE CARNAVALConheça algumas particularidades desses mestres da folia e quem são os representantes da nova geração.Movidos a desafiosComo autêntico carnavalesco, Orlando Campos, ou melhor, Tapajós, 81 anos, não está preocupado com este Carnaval, mas com o de 2016, quando comemora os 60 anos de sua maior criação: o trio elétrico. Parece que foi ontem quando ele, folião apaixonado, colocou na cabeça que teria um trio elétrico depois de contratar um e a atração não aparecer. Para isso, contou com a ajuda de Dodô Nascimento, parceiro de Osmar Macêdo, que já fazia sucesso com a Fobica. “Conheci Dodô em 1955 e, depois de conversarmos, ele me disse que eu ainda teria um trio elétrico e que me ajudaria quando chegasse a hora. No final do mesmo ano, procurei por ele para concretizar sua ‘profecia’”. E foi assim, em uma época em que o veículo tinha estrutura rudimentar e tecnologia zero, que seu Orlando começou a inovar e fazer seu nome. Foi ele quem criou a carroceria de metal, colocou banheiro, escadas e até elevador. “Até meados dos anos 90, meu pai construía, na metalúrgica dele, 90% dos trios elétricos do país”, conta Orlandinho Tapajós,55 anos. Foi de seu Orlando também outra criação que entrou para a história do Carnaval, a Caetanave, lançada em 1972 para homenagear Caetano Veloso, que acabara de chegar do exílio em Londres. “Todo Carnaval eu fazia uma carroceria nova para o Tapajós e nesse ano me inspirei em um avião supersônico que vi em uma revista durante um voo de São Paulo para Salvador. Como não podia trazer a revista, fui até o banheiro, rasguei a página, dobrei e coloquei na sola do sapato”, relata seu Orlando.Orlandinho tinha 7 anos quando viu seu primeiro Carnaval em cima do trio elétrico do pai. “Aquilo me marcou muito. Foi naquele momento que me deu vontade de seguir nessa carreira. Ele começou a trabalhar com seu Orlando aos 15 anos. “Em 1975, fomos contratados pela Souza Cruz e construímos cinco trios, dois para o Rio de Janeiro, dois para Minas Gerais e um para Salvador. Assumi uma das carrocerias e viajei o Brasil”, relembra. Com a chegada dos anos 80, Orlandinho percebeu que os foliões não iam mais atrás do trio e sim dos artistas e decidiu receber no Tapajós, que tinha uma banda de mesmo nome, outras atrações. Passaram pelo trio nomes como Luiz Caldas, Sarajane, Marcionílio, Durval Lelys, Carlinhos Brown, Netinho, Bell Marques e Daniela Mercury.  No início dos anos 90, Orlandinho convenceu o filho mais velho, Neto, 33, então com 13 anos, a dar expediente no escritório.

O garoto, que estudava no Colégio Militar com o irmão caçula, Bruno, 28, não curtiu muito a ideia, mas acabou tomando gosto. “No final dessa década, minha família entrou em crise financeira. Eu já fazia festas na escola e percebi que aquilo dava dinheiro. Abrimos a Tapajós Produções em 2006. Escolhemos esse nome para não deixar a marca Tapajós morrer. Hoje, temos um relacionamento muito próximo com a maioria das grandes bandas e artistas baianos e vendemos shows para todo o Brasil”, explica Neto. “Tá no sangue. Não me vejo fazendo outra coisa”, resume Bruno.Com amor no coraçãoLá se vão 50 anos desde que Lindolfo Araújo de Carvalho, mais conhecido como Charita, combinou com os amigos, durante um baba, que iriam se vestir de mulher no Carnaval. “A gente morava na Ladeira da Preguiça e lá tinha um bloco chamado Nega Maluca, que apenas um dos integrantes se travestia. Quando ele morreu, meu pai teve a ideia e assim nasceu As Muquiranas”, conta Washington Paganelli, que tinha apenas 2  anos quando o bloco foi criado.Luciano, Washington, Samuel e Victor: duas gerações da família Paganelli trabalhando no Carnaval deste ano (Foto: Angeluci Figueiredo)O tema do primeiro desfile foi baiana, parecido com o do cinquentenário, Orgulho de Ser Baiana. São 2.250 homens vestidos com a fantasia branca e dourada desfilando pelo circuito Dodô. “Todo Carnaval investimos em atrações, equipamento e segurança. Estamos com 1.200 cordeiros e 400 seguranças particulares neste Carnaval”, lista Washington, que toca o negócio ao lado dos irmãos Paulo, Raimundo e Luciano. O pai morreu há 11 anos e a mãe, Florisa, há 3.  Filhos e sobrinhos também participam da empresa. Dos dez netos de seu Charita, oito têm alguma função nas Muquiranas, dependendo da formação e da idade. São dois estudantes de Direito, um de Matemática, um de Administração – tem também um enfermeiro com vocação para os negócios –, entre outras profissões. As idades variam de 33 a 16 anos. E não dá confusão tanto parente junto? Raimundo, 51, garante que não. “Começamos a nos profissionalizar há 25 anos para acompanhar a evolução do Carnaval, senão ficaríamos para trás, como muitos blocos ficaram. Hoje, somos uma produtora de eventos e trabalhamos o ano todo. Para dar certo, cada um é responsável por um setor. Aqui não há ingerência”, pontua.Conversando com os Paganelli, parece que eles só pensam em trabalho. “A gente é muito unido fora do escritório também. Adoramos sair para comer. Churrascaria é o programa preferido. E sempre alguém reúne a família em um almoço ou café da manhã”, conta Junior, 33, que mora com Samuel, Igor, Daniel, Malu.... “Conseguimos manter o  espírito de espontaneidade dos nossos pais. Fazemos tudo bem feito porque trabalhamos com amor no coração”, resume Paulo, 59, que se autointitula “a Muquirana mais velha de todas”.Aprendizado para a vidaAndré Gagliano, 35 anos, é conhecido na noite baiana. À frente do Grupo San Sebastian ao lado do sócio, José Augusto Vasconcelos, comanda as boates Amsterdam Pop Club e San Sebastian em Salvador e Recife, além do restaurante Don Sushi Lounge. Com esse portfólio, muita gente nem desconfia que a história de Magal, como é conhecido, se confunde com a de um dos blocos mais antigos do Carnaval baiano. André é filho de Luiz Gagliano, um dos fundadores dos Internacionais. “Morava na Mouraria, perto da sede, e tinha um ateliê de fantasias dentro de casa, então sempre estive envolvido com Carnaval. Meu pai era meu melhor amigo e aprendi muito com ele. Quando criança, faziam a mesma fantasia dos adultos para mim e meu irmão. Eu gostava tanto de Carnaval que, mesmo sendo fã de Xuxa, preferia ganhar CD de Luiz Caldas e do Chiclete com Banana”, recorda. Depois de 20 anos dedicados aos Internacionais, houve um racha na diretoria e Luiz saiu. “O bloco começou a descer a ladeira e meu pai sofreu muito, porque era apaixonado. Quando o Inter voltou a ganhar força, quatro anos depois, ele resolveu juntar os amigos que saíram de lá e criou o Me Leva no circuito Barra-Ondina”, conta Magal, que nessa época tinha 14 anos, mas já opinava como gente grande. “Eu ficava na administração do bloco e adorava. Dava pitaco na fantasia, participava das reuniões. Virei diretor  ainda com meu pai vivo. Meu castigo quando tirava nota baixa era não ir pro bloco”, revela.O Me Leva (que depois virou Me Abraça) foi um sucesso logo no primeiro ano. O abadá custava apenas R$ 20 quando o valor de outros blocos semelhantes chegava a R$ 350. Luiz, que sempre foi polêmico, foi para a imprensa questionar o preço das fantasias. Foi ele também quem criou a campanha Carnaval sem Fome (que pedia aos associados que doassem alimentos não-perecíveis) e ganhou a mídia nacional. Próprio caminho - Luiz morreu aos 49 anos, vítima de uma pancreatite, e depois de dois anos o bloco foi arrendado para o Asa de Águia. “Saí do mercado, casei, tive uma filha, fui vender quentinha, montei restaurante, fui fazer outras coisas... um dia, na casa de praia de minha tia, encontrei (o empresário) Manoel Castro, começamos a conversar e ele perguntou minha idade (estava com 22 anos) e como eu sabia tanto sobre Carnaval. Contei minha história e ele me chamou para trabalhar na Pequena Notável”. André ficou um ano na produtora até abrir seu próprio escritório com um sócio e criar festas com sua marca, como Conceição Light e Tributo a Bob. “Conheci todo mundo desse meio, mas não usei o nome do meu pai para abrir portas. Ele sempre foi meu ídolo, mas consegui fazer minha história com meu trabalho, construído com o aprendizado que tive com ele”, avalia.Após deixar A Praia, André uniu-se a José Augusto Vasconcelos. “Montei com Zé a BLZ e fizemos muitas coisas marcantes, como a Festa Ploc, que foi um fenômeno na época”. Há seis anos, eles abriram a boate San Sebastian e decidiram investir na mistura de ritmos, dando ao público da casa a opção, não só de ouvir música eletrônica, mas se divertir com atrações da axé music como Gilmelândia, Márcia Freire e É o Tchan. “A gente é público antes de ser dono e temos gostos diferentes. Somos dois gays mas não gostamos só de uma coisa. Quanto gay gosta de axé e sempre gostou? Então trouxe isso para a San”, explica.Família musicalHá mais de quatro décadas, os irmãos Betinho, Armandinho, Aroldo e André Macêdo comandam a Banda Armandinho, Dodô & Osmar. A primeira vez que tocaram juntos foi em 1974, no trio elétrico construído pelo pai, Osmar Macêdo,  com o amigo Dodô Nascimento.  De lá para cá, o quarteto foi escola para filhos e sobrinhos. Passaram pela banda Daniel, Mariana e Bruna, filhas de Betinho, e Gabriel, herdeiro de Aroldo. Mariana e Bruna cantavam e Gabriel, que começou com Daniel na percussão, assumiu a guitarra e é o único dos primos que continua no grupo. Armandinho, Aroldo, André e Betinho com Gabriel Macêdo: formado em Música, ele toca guitarra com o pai e os tios (Foto: Angeluci Figueiredo)Mesmo quem não seguiu o caminho da música deu um jeito de chegar junto. João, filho de Armandinho, é empresário, e Dedeco, de Aroldo, ficou responsável pelo registro visual da banda. Cineasta, assina Made in Bahia, documentário dividido em sete episódios que conta a história da guitarra baiana (assista em youtube.com/armandinhododoeosmar). “Cresci nos bastidores dos shows, em fundo de palco. Com 4 anos, ia para a Castro Alves, dormia no colo de minha mãe. Carnaval para mim sempre foi uma festa familiar. Acabei não virando músico, mas a necessidade artística me fez ir para o cinema e percebi que precisava eternizar essa história deles, da guitarra baiana”, explica Dedeco.“É importante que eles continuem essa história indo para a rua, contanto para as pessoas, porque a gente não precisa só dos nossos, mas dos que chegam para aumentar esse bolo e passar adiante, de geração para geração”, diz Aroldo. Um exemplo  é a Oficina de Música Instrumental Osmar Macêdo, localizada no Canela, que oferece aulas de percussão, violão, bateria, cavaquinho, bandolim e guitarra baiana para  120 alunos, de 7 a 18 anos. “Nosso exército de filhos”, resume o músico.Nova geração Se depender da pequena Letícia, 5 anos, neta de Betinho, a tradição da família vai passar para mais uma geração. A garotinha já disse  que quer ser cantora. “Ela é afinadinha, tá no sangue”, revela Daniel, 38,  pai da menina. Depois de 20 anos sendo percussionista da banda, compromissos profissionais o levaram para o Acre e depois para Goiânia, onde trabalha na construção e administração de shoppings centers. “Estou em um mercado completamente oposto, mas falo que 80% de mim trabalha com música. Tudo que eu faço é ritmado, música é matemática pura. Tudo que sou hoje é por causa dela”.Realização - Guitarrista da banda desde os 15 anos, Gabriel Macêdo, 34, se emociona quando fala da família. “Tinha 7 anos quando ouvi Rock de Caicó, música que meu pai fez para minha mãe, Margarida, e me deu uma vontade danada de chorar. Foi ali que percebi o que queria para minha vida”, revela. Gabriel, que tem duas graduações em Música pela Ufba e uma especialização na Austrália e tocou com o pai e os tios pela primeira aos 13 anos. “Fiquei dez anos na percussão, embora sempre quisesse ser guitarrista. Foi a maneira que encontrei de entrar nesse sonho”, conta. Seu Osmar com os filhos Aroldo, Armandinho, Betinho e André Macêdo (Foto: Arquivo Correio)Gabriel aprendeu a tocar com pai e tem o tio Armandinho como maior ídolo. “É uma realização. Quantos músicos gostariam de se apresentar com profissionais do quilate deles, reconhecidos em todo o Brasil? Eu me coloco diante deles como  aprendiz, quero puxar o máximo que eu puder e contribuir com que eu sei para fazer a banda cada vez melhor”.“Nosso velho Osmar dizia: ‘o papa falou que família que reza unida permanece unida. E família que toca unida também fica unida’. Nos criamos com essa paixão pelo trio elétrico, pelos instrumentos, pelo Carnaval. Aprendemos com nosso pai e com Dodô e passamos esse amor para nossos filhos”, resume Armandinho.