Infância autêntica: pelo direito de ser criança sem rótulos e repressões

Conheça histórias de quem ouviu desde pequeno que era 'bicha' ou 'moleque macho'

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  • Da Redação

Publicado em 14 de maio de 2018 às 06:18

- Atualizado há um ano

. Crédito: (Arte: Quintino Andrade/ CORREIO)

Na rua, na escola ou nas festas de família, eles estavam lá, sendo sempre alvo de comentários por parte dos vizinhos, dos tios, dos professores ou mesmo dos colegas. Crianças que tiveram de aprender desde cedo a ouvir coisas sobre como se vestiam, sobre a forma como andavam, falavam e gesticulavam e também sobre suas brincadeiras preferidas.

“Por que você não veste um vestido? Tá parecendo um menino!”;  “Aquele menino é muito molinho”; “Olha como ela anda, parece um moleque macho, só brinca com menino”; “Tome jeito de homem, fale direito”; ”Esse menino é doente”. 

Essas foram as frases mais ouvidas e lembradas por meninos e meninas, hoje adultos, ouvidos pelo CORREIO. Foi através delas e também de muitos olhares estranhos que crianças, antes mesmo de chegarem aos dez anos, souberam que o mundo as via de forma diferente. (Arte: Quintino Andrade/ CORREIO) “As pessoas associam qualquer comportamento feminino de homens à homossexualidade. Se um menino brincar de boneca, ele coloca em dúvida a garantia de heterossexualidade”, explica o psicólogo clínico e pesquisador em Cultura e Sexualidade da Ufba, Gilmaro Nogueira.

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Mas, para as crianças, tudo isso não passa de mais uma coisa da cabeça dos adultos. "Tinha muito essa ressalva: 'você ta parecendo um menino'. Na minha cabeça eu não parecia um menino, eu era uma menina que queria me vestir com aquelas roupas e ponto. Não queria ser a menina que usava um tamanco e um vestido, mas eu me identificava como menina do mesmo jeito. O que eu não entendia é porque as pessoas só iriam me identificar como uma menina se eu usasse um vestido", lembra a jornalista Paula Morais, de 28 anos.

Ela sempre preferiu usar short, bermuda, camisas mais largas e de times. Por conta disso, desde cedo passou a ser apontada como um "moleque macho", principalmente no âmbito familiar. Paula destaca que na escola não sofreu muito com comentários do tipo, por ter estudado em Colégio Militar. "A gente não tinha a nossa individualidade respeitada, nesse sentido. Era todo mundo muito padrão. Eu precisava usar saia, por exemplo, precisava usar um sapato que tinha um saltinho, precisava usar meia calça; elementos que eu não usaria no meu cotidiano", recorda. (ouça relato na íntegra acima) Paula Morais era chamada de 'moleque macho', por não gostar de vestidos e preferir usar bermuda e camisa larga (Foto: Acervo Pessoal) O pai, o maior apoiador da filha quando o assunto era o que poderia transformá-la em uma criança ainda mais feliz, nunca ligou para esses comentários e fazia questão de comprar roupas iguais às dele para ela. "A gente praticamente usava tudo igual, não tínha esse preconceito e a gente fazia aquilo que gostava", resume o farmacêutico Paulo Morais, 58 anos (confira relato na íntegra no final desta matéria).

E o mesmo acontecia em relação às brincadeiras: natação, bola, xadrez, videogame e bonecas. “Quando era criança, eu gostava de brincar de bola, videogame, mas também brincava de boneca, porque não existe brincadeira para menino e brincadeira para menina. Existe brincadeira”, defende Paula.

O produtor cultural Caio Cruz, 26 anos, também pensa assim, mas lembra que na infância, havia um desconforto por parte dele em se aproximar da irmã mais velha para brincar de casinha. “Eu já internalizava que aquilo não era uma brincadeira para mim, mas eu tinha uma fascínio muito grande por aquele universo, por brincar de simular uma vida, de transformar a boneca em um personagem. Em nenhum momento meus pais me diziam que aquilo era errado, mas em nenhum momento eles naturalizavam. Era um olhar que me dizia: ‘isso não está certo’”, lembra.  (ouça relato na íntegra abaixo)

E quando nem a forma de falar e de andar parecem certas? “Quando eu estava na escola eu ouvia as pessoas dizerem que eu era uma ‘criança alegre’, uma criança ‘muito feliz’. Já vi professoras falando isso para minha mãe, para meu pai, e eu não entendia o que isso significava porque eu não me sentia mais feliz ou mais alegre que as outras crianças com quem eu estudava. Só vim descobrir o que isso significava muitos anos depois”, lembra o estudante João Bertonie, 22 anos. 

A descoberta sobre o que a sutil impressão sobre o seu comportamento significava aconteceu através de outro professor, aos 13 anos. “Recebia mensagens dele dizendo que eu não podia ser uma vergonha para meus pais, que eu deveria me policiar porque pessoas como eu nunca poderiam ser felizes e trazer orgulho para as famílias. Fiquei com muita vergonha, me sentindo muito mal, era como se ele tivesse descoberto uma coisa que eu nem sabia que existia, que eu nem sabia que tinha dentro de mim”, lembra João. (ouça relato na íntegra abaixo)

Para o psicólogo Gilmaro Nogueira, 43, discutir com crianças sobre a existência de uma diversidade de pessoas é benéfico à sociedade como um todo, já que a criança acaba apreendendo que não se pode ser homossexual através de violências físicas e verbais. “Não discutir na escola não evita desejo ou que as crianças falem sobre o tema. Pode atrapalhar ainda ao permitir situações de humilhação contra sujeitos diversos, desde a criança que não se encaixa nas normas de gênero, chamada de viada, como também a outras, negras ou gordas”, argumenta.

Pai de quatro filhos, um deles uma mulher trans, o jornalista Ricardo Argôllo, 46, lembra que antes de sua filha se descobrir trans, ela nunca tinha demonstrado interesse por “coisas de meninas”. “Eu não tinha um filho menino afeminado. Eu não tive isso. Criei um menino, a princípio cisgênero e hetero, e hoje eu tenho uma mulher trans e bissexual“, conta.

A filha dele, Lilin Argôllo, 21, reforça a memória do pai ao lembrar que quando criança chegou a ter uma uma coleção de carrinhos e que estava sempre entre meninos e meninas, apesar de as brincadeiras ditas masculinas a incomodarem um pouco desde aquela época.“Tenho lembranças de que na escolinha eu brincava de casinha com as meninas e era uma coisa bem natural, naquele espaço aquela brincadeira era mista, não havia uma separação de gênero nisso” afirma.

Para o educador físico Abilio Manoel, 30 anos, a escola sempre foi um ambiente hostil, mas a família e os colegas da rua em que morava sempre foram muito acolhedores. “Faz uma diferença enorme na formação de uma criança crescer num meio que respeita seu jeito e um que não respeita, em um meio que é homofóbico e em um que não é. Na minha rua, eu não era excluído de nada. Brincava de casinha com os meninos e também jogava bola com eles, mas eles me deixavam no gol. E hoje são héteros, são todos héteros. O único gay da minha rua sou eu”, diz.

Na escola, no entanto, ele costumava ser limado de alguns grupos. “Na segunda série, uma professora foi a responsável por piorar esse processo, ela me destratava real. Dizia na minha cara que eu era muito mole, que era para eu tomar jeito de homem, que aquilo que não estava certo”, recorda Abílio. O educador físico Abilio Manoel, 30, indo para escola; professora da segunda série dizia que ele "era muito mole" (Foto: Acervo pessoal) Apesar de não lembrar com quais palavras as pessoas costumavam se referir a ele para ofendê-lo, ele conta que tem lembrança de perguntar à mãe porque as pessoas diziam determinadas coisas sobre ele. “Eu sempre fui uma criança muito educada, fofinha, não era perturbado. Então, minha mãe me dizia que era por eu ser assim, bem educado e delicado, que as pessoas me diziam aquilo”, conta.

Para a educadora e pesquisadora de assuntos relacionados a gênero e infância da Ufba, Carla Freitas, a escola tem de encarar o desafio - bem como a família e a sociedade como um todo. “Quando o professor não passa pela formação devida, ele vai com toda carga moral e religiosa para a sala de aula e tem chances de estar cometendo equívocos, mesmo que não seja a intenção. Se dois meninos estão jogando futebol e durante uma discussão um deles chama o outro de ‘viado’ e a professora intervém e pergunta ‘não xingue seu colega de viado! você gostaria de ser ofendido?’, ela está reforçando a ideia de que ser viado é algo ruim, sem fazer eles pensarem porque estão dizendo aquilo”, diz.

Para a educadora, outro desafio diz respeito aos próprios pais, que às vezes chegam na escola exigindo que professores reprimam determinados comportamentos de seus filhos: “Tem família de todo o tipo e tem algumas que querem que curemos o que julgam ser um comportamento transviado dos filhos”, comenta. A situação tensa deve ser resolvida com o diálogo entre famílias e instituição de ensino, mas nem sempre há entendimento. (Arte: Quintino Andrade/ CORREIO) Há mais de 15 anos lidando com crianças e adolescentes, a professora e dramaturga Luciana Comin, diretora do grupo Teca Teatro, vê a mudança de disposição das famílias para o diálogo. "Alguns pais ainda associam teatro, balé, dança, a coisa de meninas. Sempre tivemos turmas com dez meninas e dois meninos, mais ou menos nessa proporção. Hoje eu tenho turma com maioria masculina", destaca.

Nas aulas com os pequenos, o lúdico está sempre presente. "O que vem das crianças, a gente aproveita, e é tudo muito natural. Claro que a gente tem uma preocupação do que vem das famílias. Se vem algo muito nessa perspectiva negativa, da repressão, dos rótulos, a gente descontrói isso, porque lá ela pode ser o que quiser. Questões de gênero não são nem colocadas. O menino pode fazer um personagem feminino e isso é perfeitamente aceitável.  Aqui ele pode ser o que ele quiser. E a criança acaba entendendo que isso faz parte do jogo", exemplifica.

Ela enfatiza, no entanto, que os pais que vêem no teatro e na arte de modo geral uma saída, já têm uma abertura maior. "Aqueles que associam o teatro a uma coisa ruim em relação à sexualidade nem procuram a gente. E já aconteceu, ainda mais relação ao pais de alunos adolescentes, de eles se incomodarem com alguma cosisa e não renovarem as matrículas", lamenta. 

O psicólogo Gilmaro Nogueira afirma que a melhor alternativa é sempre acolher a criança e mostrar aos pais a importância do afeto e da proteção familiar.  "Alguns pais desejam que a gente diga se o filho é gay ou não. Não temos condições de dizer isso, pois não é um diagnóstico, sobretudo de uma criança que apenas gosta de brincar de boneca”, explica. "Às vezes é preciso dizer que nosso trabalho não é impedir uma homossexualidade ou garantir uma heterossexualidade, mas que essas escolhas pertencem ao sujeito, num processo de desenvolvimento que não precisa ser antecipado", finaliza.