Liberada para quem? Pacientes comemoram liberação da Cannabis, mas temem preço

Para associações, plantio seria a forma de baratear o custo, mas ele segue proibido pela Anvisa

Publicado em 8 de dezembro de 2019 às 06:30

- Atualizado há um ano

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A cada doze horas, o pequeno Kalebh Kaiodê, de 3 anos, deve tomar cinco gotinhas de um óleo chamado Esperança. É justamente nessa fórmula, que inclui canabidiol e tetra-hidrocanabinol - dois derivados da Cannabis, a planta da maconha - que repousam as esperanças da mãe dele, a autônoma Joseane Oliveira, 36 anos. Mas, em junho passado, o sentimento que tomou conta de Joseane foi desespero.

Em abril, ela havia levado o filho a um neurologista que lhe receitou o óleo de Cannabis para tratamento da microcefalia, paralisia cerebral e epilepsia refratária de difícil controle. Joseane investiu 350 dólares, mas uma atravessadora lhe vendeu azeite. “Meu filho pegou uma infecção, teve uma crise convulsiva de 40 minutos, quase morreu. Não gosto nem de lembrar”, conta.

Joseane e Kalebh, na verdade, não são os únicos expostos a situações desse tipo. Na Bahia, de acordo com Leandro Stelitano, fundador e presidente da Associação para Pesquisa e Desenvolvimento da Cannabis Medicinal no Brasil (Cannab), apenas 1% das cerca de 300 pessoas cadastradas na associação conseguem comprar de maneira lícita:“Muita gente acaba recorrendo ao mercado negro”, diz Stelitano.É que o óleo, usado para o tratamento de doenças como epilepsia, microcefalia, dor crônica, esclerose múltipla, Parkinson, fibromialgia e até câncer, custa caro - importado, com os impostos, cerca de R$ 2 mil por um frasco. “Como não tem uma produção brasileira, com a venda nas farmácias, digamos que o preço vá chegar a R$ 1,5 mil. Vai continuar difícil”, aponta a psiquiatra Eliane Nunes, diretora geral da Sociedade Brasileira de Estudos da Cannabis (Sbec).

Para ela, pelo menos 10 milhões de pessoas no Brasil podem se beneficiar com o uso dos produtos derivados da Cannabis, mas, até o início desta semana, apenas uma associação em todo o país podia plantar, produzir e revender o óleo: a Abrace Esperança, na Paraíba. E ela não dá conta de suprir a demanda.

Desde o dia 3, no entanto, a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) autorizou a venda de produtos derivados da Cannabis em farmácias do Brasil, bem como a produção do óleo no país, num prazo de 90 dias. O que segue proibido, no entanto, é o plantio.

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Primeiro Passo Para Leandro Stelitano, a decisão da Anvisa é um primeiro passo. “Foi importante porque a regulamentação antes dessa decisão da Anvisa só permitia quem tinha poder aquisitivo de importar o medicamento. No nosso entendimento, foi uma solução paliativa. Facilita, mas os remédios ainda vão continuar a chegar aqui no Brasil com alto custo”, avalia.

Joseane, que finalmente conseguiu comprar o óleo para o filho e agora aguarda a entrega pelos Correios, também considera a decisão importante, mas não acredita que ela vá impactar no preço do produto.“Só vai começar a vigorar daqui a 90 dias e a vida não espera, terei que recorrer a um importado até lá”, afirma a mãe, que precisou deixar o emprego e hoje vende balas e bebidas em casa.Na prática, sem poder plantar no Brasil, os interessados em produzir ainda terão que importar o insumo. Mesmo assim, Joseane reconhece que a comodidade de encontrar o medicamento na farmácia já traz alívio – a espera para chegar pelos Correios é de 20 dias, se não houver greves nem desastres naturais.

Qualidade de vida Hoje, Kalebh Kaiodê usa quatro medicamentos e praticamente não há resultados no controle das convulsões - por isso, as esperanças de Joseane estão no óleo. “Meu filho nos traz muitas alegrias. Só o sorriso dele quando volta de uma crise deixa meu coração cheio de alegria”, conta. O óleo de Cannabis atua justamente nas convulsões. Segundo um estudo do pesquisador Orrin Devinsky, publicado no New England Journal of Medicine, o produto consegue reduzir em até 39% as convulsões de epilepsia em casos graves. 

O canabidiol, que não tem efeitos psicotrópicos e atua no sistema nervoso, tem melhorado a qualidade de vida de pacientes como a economista Dailza Almeida Mendes, 57. Ela começou a usar o óleo há dois meses para tratar de dores crônicas. A receita foi assinada pelo mesmo médico de Kalebh, o neurologista Antônio Andrade, do Instituto do Cérebro e professor da Ufba.

“Eu tinha crises de enxaqueca constantes, a ponto de me levarem para emergência de hospital, tomar aquelas medicações todas, sofria muito. Quando eu comecei a usar o óleo, na primeira semana eu já senti uma melhora, hoje minha qualidade de vida melhorou 70%”, conta Dailza.

Mas, comprar também não foi fácil. “Nem todo mundo tem poder aquisitivo, eu precisei abdicar de algumas coisas para conseguir comprar porque o preço é incompatível com a minha renda”, afirma.

Os resultados, no entanto, valem muito a luta, defende:“Foram janelas que se abriram para mim, porque eu já não tinha mais esperança de tantos tratamentos que eu já tinha feito com a medicina convencional”, conta Dailza. Em países como Portugal e Estados Unidos, plantio medicinal é legalziado (Foto: Patricia de Melo Moreira/AFP) Plantio Enquanto aguarda pela chegada do medicamento para Kalebh, Joseane luta na justiça pelo direito de plantar e fabricar o próprio óleo. Isso sim, defendem os pacientes e as associações, faria uma grande diferença no preço final.

No Brasil, de acordo com Leandro Stelitano, 52 famílias conquistaram na justiça o direito ao plantio para produção do óleo. Na Bahia, são seis.

“Quando a pessoa entra na justiça, ela pede para produzir e plantar em casa ou pede que o Estado e custeie a medicação importada. Os juízes têm dado como causa ganha”, explica. Na Bahia, a Secretaria de Saúde do Estado (Sesab) fornece medicamentos à base de canabidiol para 16 pacientes.

O Tribunal de Justiça da Bahia informou que não era possível levantar as ações especificamente sobre Cannabis. 

A Associação Cannab também luta na justiça para poder produzir e vender o óleo. Mas, a decisão sobre autorizar ou não o plantio não cabe à Anvisa e sim ao Congresso Nacional. Segundo o relator, Antônio Barra, cabe à Agência deliberar sobre insumos prontos. Tratar do plantio seria uma “exorbitação de competência”.

Apesar da negativa, a Schoenmaker Humako, do grupo Terra Viva, conquistou no dia 3 o direito de plantar.

Que doenças podem ser tratadas com produtos derivados da Cannabis?Epilepsia refratária de difícil controle Transtorno do Espectro do Austismo (TEA) Mal de Alzheimer Esclerose múltipla e Esclerose Lateral Amiotrófica (ELA) Mal de Parkinson Diabetes Síndrome congênita do Zika Vírus (Microcefalia) Dor crônica Fibromialgia Câncer Aids Ansiedade, depressão e insônia