Márcia Short: 'A pandemia me adoeceu, eu pirei mesmo'

Cantora, que faz sua primeira live domingo (11), fala sobre dificuldades dos artistas independentes

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  • Vinicius Nascimento

Publicado em 9 de outubro de 2020 às 05:50

- Atualizado há um ano

. Crédito: Ayrson Heráclito

Já não é fácil para quem é gigante e tem espaço na grande mídia, imagine para os independentes. A frase é da cantora Márcia Short, que no próximo domingo (11), às 20h, faz a sua primeira live. Batizado de Portal Black, o show é fruto do esforço coletivo de amigos, parceiros e colegas que pegaram na mão de Márcia e afirmaram “você vai fazer”. Mesmo com as dificuldades em lidar com o mundo digital, ela se jogou e agora está ansiosa para soltar a voz. 

Cria do Engenho Velho de Brotas, ela deixou o bairro onde nasceu no final do ano passado para morar num apartamento maior no bairro de Nazaré. Assim a sua família teria mais espaço. Foi um acerto e tanto: "graças a Deus, porque se tivesse todo o mundo apertadinho como era no lugar que a gente morava as coisas estariam ainda mais difíceis", disse em conversa por telefone.

A pandemia pegou a cantora de surpresa - assim como todo mundo. Junto ao coronavírus, vieram os diversos cancelamentos de shows e eventos que tinha marcado. E aí, como faz? Márcia Short conta que adoeceu. Pirou a cabeça mesmo e precisou de força para colocar no lugar.

"Eu pirei. Quando vem uma puxada de tapete dessas que impacta no seu rendimento, no que garante a sobrevivência, é desestabilizador. Fiquei muito tempo impactada com o prejuízo, com o fato de não ter onde cantar, de não ter pra quem cantar e de não estar preparada para esse mundo digital", conta.

Em sua volta ao palco, Márcia quer ser expressiva, inventiva e gigante ao fazer as pessoas dançarem e cantarem em suas casas, com suas músicas autorais e versões de canções de artistas como Chico César, Lazzo, Tonho Matéria, Jorge Ben e Moa do Katendê - outro ilustre morador do Engenho Velho de Brotas. Na última quinta (8), completaram-se dois anos do seu assassinato.

A apresentação tem Edivaldo Bolagi na direção geral e coordenação de produção executiva, Ayrson Heráclito, na direção artística, Pola Ribeiro, na direção de transmissão e edição e Adail Sccarpelini, na direção musical. A apresentação fica por conta de Josy Brasil e Carlos Messias Alves, como intérprete em libras.

"Colocar Josy ali enquanto mulher preta, mulher com deficiência, é jogar luz para uma realidade de exclusão que precisa ser revista. Ela vem provando que há capacidade sim e que temos que extrair o melhor de cada pessoa. Que felicidade a nossa de poder contar ela", disse.

Durante a transmissão do show, o público poderá doar valores que serão destinados à Associação de Pais, Amigos e Pessoas com Deficiência, de Funcionários do Banco do Brasil (APABB) e Associação Lar Vida. Mãe de Daniel, que tem autismo, Márcia diz que reverter o que conseguir levantar no seu show para essas instituições é também uma maneira de agradecer ao esforço empenhado por toda a sua rede de colaboração para colocar o projeto no mundo."Poder voltar a cantar, atuar no meu ofício estendendo a mão de uma causa tão nobre de um povo que vive à margem de tanta coisa assim como nós artistas alternativos pretos é comovente", contou.O cenário terá a obra Bori, do artista visual baiano Ayrson Heráclito, um dos principais nomes da arte da diáspora africana. O trabalho, batizado com nome de um importante ritual de iniciação do candomblé, reúne 12 fotografias e mescla materiais orgânicos utilizados dentro da filosofia da religião de matriz africana, retratando a relação entre a arte e o sagrado, com representações dos orixás. Primeira live de Márcia Short será transmitida pelo YouTube (Foto: Ayrson Heráclito)

CONFIRA ENTREVISTA COM MÁRCIA

Como foi esse período de isolamento e quais os impactos da pandemia em sua vida?

Eu fui pega de surpresa, cara. [A pandemia] foi algo que me adoeceu porque você sabe que as coisas pra quem não está na grande mídia funcionam com um nível de exigência e dificuldade muito maior. Não temos nem como quantificar e varia sempre pra mais. Eu pirei porque tive meus shows cancelados, várias coisas canceladas e a gente vive como aranha, vive do que a gente tece. Quando vem uma puxada de tapete dessas que impacta no seu rendimento, que garante a sobrevivência, é desestabilizador. Fiquei muito tempo impactada com o prejuízo, com o fato de não ter onde cantar, de não ter pra quem cantar, de não estar preparada para esse mundo digital. Eu nunca pensei que rede social fosse mais importante do que já era e agora se tornou essencial, ainda estou me adaptando a tudo isso. Agora tenho assessoria e condução das minhas redes pelo Canto do Galo com Plínio, que está me dando uma aula atrás da outra. Eu vou sair desse novo anormal mais rica de conhecimento, principalmente de conhecimento tecnológico. 

E como está a expectativa para voltar a tocar para um monte de gente e não ver ninguém?

Eu venho mirando esse pulo e esse avanço [digital] há algum tempo e parei na questão que barra o avanço de nós todos, pretos e independentes. Eu digo isso porque o Brasil e a Bahia se olham no espelho e não se vê, não se reconhecem. Há uma pervesidade com artistas pretos, que ainda vamos ter que brigar muito com o que o racismo instituiu. Estamos em curso e essa revolução não tem volta. Eu vinha querendo fazer [a live] há muito tempo, sentia essa necessidade de me inserir, mas não tinha coragem, nem dinheiro para fazer. O que me trouxe até aqui foi sobretudo a dedicação de Edivalgo Bolagi, que é meu companheiro, a dedicação de comprar a briga de dizer que 'não, você vai fazer'. Ele acionou uma rede de relações do capital de amizade deles e conseguiu criar essa rede junto com a equipe que já trabalhava comigo, meus músicos. Não me cobraram nada, o que não tem jeito a gente tá tratando com custo das coisas e dessa forma está sendo viabilizada a primeira live de Márcia Short e para dar uma devolutiva à espiritualidade desses amigos eu decidi dar o dinheiro a essas instituições. Nada disso seria possível se não fosse a dedicação, o amor à causa antirracista e luta do povo preto que nos conduziu a esses espaços que são nossos e nós temos que tomar.

E o que é que vai ter no show? Ah, meu lindo, tem de tudo. Nesse repertório preto tem Chico César, tem Jorge Ben Jor, tem nosso querido Moa do Katendê, tem as pessoas que me forjaram enquanto pessoa e enquanto artista. Eu sou cria do Engenho Velho de Brotas, cria de Jorjão Bafafé, de Lazzo, de Moa do Katendê. Todo esse povo passava na minha porta me influenciando com sua música, com a riqueza do afoxé, do badauê... tudo isso estará dito na live. Esses poetas estarão lá. Tem Beto Jamaica com um pouco de Banda Mel, um pouco de Márcia na carreira solo. Só tem preto e tá todo mundo lá.

Fala um pouco sobre Josy Brasil, que vai apresentar sua live? Josy Brasil é uma história de superação. Uma mulher gigante. São anjos que os orixás colocam na terra pra gente ver. Uma mulher que ressignificou sua história, que tem uma bagagem intelectual incrível e que hoje é uma referência. Colocar Josy ali enquanto mulher preta, mulher com deficiência, é jogar luz para uma realidade de exclusão que precisa ser revista. Ninguém pode ser preterido por sua condição. Ela vem provando que há capacidade sim e que temos que extrair o melhor de cada pessoa. Que felicidade a nossa de poder contar ela. Ficamos pensando quem seria essa pessoa e aí chegamos ao nome de Josy. Pedi à produção para fazer o contato porque ainda não tinha nenhuma amizade ou ligação, então fizemos o convite formal de trabalho e fomos surpreendidos com uma receptividade, com uma entrega... nossa, eu já era fã de Josy e cada hora que converso fico mais ainda. A mulher é barril dobrado. Comunicóloga, cantora e empresária, Josy Brasil fará a apresentação da live de Márcia Short (Foto: Divulgação) Recentemente, Luís Miranda comentou que só as pessoas negras e as pessoas menos abastadas é quem se transformaram durante a pandemia e as pessoas mais abastadas seguem num mundo de egoísmo, você concorda com isso?

Esse comentário de Luiz é muito pertinente. Nossa pandemia é desde a dita libertação, da abolição que nunca aconteceu. A gente continua vivendo à margem das coisas, convivendo com o triste fato de quererem tudo que é nosso e não nos quererem. As pessoas criaram uma estrutura racista muito perversa. Preto se ajuda desde sempre e se a gente não estender a mão um pro outro, vemos um irmão morrer em nossa frente - literalmente: por falta de oportunidade, adoecido pela exclusão, pelo racismo e quando um de nós desponta o povo que manipula acha que está contemplando a nós todos, como se fossêmos um só. O que temos a título de representatividade é insignificante perante a dívida histórica desse país  diante de tudo que nós representamos para a cultura deste lugar desde sempre. E sobre as pessoas mais abastadas eu passei a não comentar, quem quiser que vista a carapuça.