Medo do vírus, medo da violência: mortes violentas crescem durante a quarentena

Disputas entre traficantes, maior demanda por droga e ruas mais vazias são apontadas como possíveis motores para o crescimento

Publicado em 3 de agosto de 2020 às 08:45

- Atualizado há um ano

. Crédito: Foto: Marina Silva/CORREIO

Todos os dias, quatro vidas se perdem, como num ciclo, repetido 135 vezes. Uns dias mais, outros menos; em alguns poucos, a paz de nenhuma morte violenta registrada em Salvador e Região Metropolitana. O que chama a atenção nesses casos não são os números, mas o contexto: 606 pessoas tiveram mortes violentas durante a quarentena, quando a principal recomendação para evitar o contágio pelo coronavírus é o isolamento social.

Mas, mesmo com a rotina alterada, mais de 60% das mil mortes registradas este ano em Salvador e RMS aconteceram quando as pessoas tentaram ficar resguardadas em casa. No último dia 30, a milésima vítima do ano se foi. Um homem de identidade ignorada foi morto às 22h42, no bairro da Saramandaia.

Em alguns locais, o isolamento não provocou qualquer mudança em relação à segurança pública: nas periferias, o risco de morrer em decorrência da violência não diminuiu com o isolamento social – até aumentou e se somou a mais uma preocupação: a de morrer de covid-19. Em Salvador, o risco ficou ainda maior nos bairros de Sussuarana e Lobato. Eles somam 53 casos entre as primeiras mil mortes do ano em Salvador e RMS. A pedagoga Michele Santos, 26 anos, que mora no Lobato há 25, confirma que a pandemia não diminuiu o medo por lá. “Ultimamente, temos tido mais medo por causa da frequência dos tiroteios. Tem acontecido conflitos entre rivais com frequência, até mesmo durante o dia”, conta. 

Para o cientista social Luiz Cláudio Lourenço, um dos coordenadores do Laboratório de Estudos em Segurança Pública, Cidadania e Sociedade (Lassos/Ufba), algumas hipóteses podem ajudar a compreender o aumento da violência durante a quarentena, entre elas a disputa por controle do tráfico de drogas, o aumento da demanda por entorpecentes e, mesmo onde o isolamento não tem sido tão efetivo, as ruas mais vazias.“As periferias tiveram uma baixa adesão ao isolamento. Por outro lado, há também um período de exceção, menos vigiado, em alguns horários com menos gente na rua. E, quando diminui o número de pessoas, também propicia a prática de atos ilícitos”, sugere.Em bairros periféricos, o isolamento tem sido mesmo menor. Segundo a Ouvidoria Geral do Município, foram 2.527 denúncias de aglomeração em Sussuarana e outras 2.425 do Lobato, de um total de 133.145 demandas até 28 de julho. Mas essa baixa adesão, explica a cientista social Luciene Santana, não necessariamente é intencional.

Luciene é pesquisadora da Rede de Observatórios de Segurança na Bahia e da Iniciativa Negra por uma Nova Política Sobre Drogas e aponta que nesses locais, muita gente simplesmente não pode se isolar - precisa trabalhar fora, por exemplo. Ou seja, para elas, o cenário geral não mudou com a quarentena.

Em alta  Os números da violência em Salvador e RMS são maiores este ano do que em 2019, mas o mês de abril chama mais a atenção. A marca de 197 vítimas de crimes violentos letais intencionais (homicídios, latrocínios e lesões corporais seguidas de morte) em 30 dias, registrada nos boletins diários de ocorrências da Secretaria de Segurança Pública da Bahia (SSP), é 27,9% maior do que as 154 registradas em abril de 2019. Além disso, abril de 2020 tem o maior volume de mortes em um único mês desde janeiro de 2017.

No dia 21 de abril, uma terça-feira, feriado de Tiradentes em que o isolamento social na Bahia alcançou a marca de 52,4% e o fluxo de veículos estava 66% menor em Salvador, foram nove vítimas, três delas de uma só vez, no bairro de Sussuarana. Fernando, Davi e Laércio estavam algemados dentro de um carro na Avenida Gal Costa. Foram mortos a tiros e o barulho chamou a atenção até de quem estava isolado em casa. Se o triplo homicídio ajuda a mostrar a situação de abril, vale dizer que nos quatro meses da quarentena iniciada em 17 de março, a alta se manteve: entre 17 de março e 30 de julho de 2019 foram 557 mortes violentas. Este ano, foram 606 nos mesmos 135 dias – 49 a mais.

O dia da milésima vida perdida também indica um aumento no número de CVLIs: este ano, em 30 de julho - 35 dias antes da data em que a marca foi alcançada em 2019, 3 de setembro.

Em nota, a SSP reconheceu que, após três anos de quedas de mortes violentas na Bahia, houve alta em março e abril - e atribuiu à soltura de presos ligados ao tráfico (leia ao lado).

Para a cientista social Luciene Santana, o aumento da violência durante a pandemia foi observado também em outros estados. Ela explica que, no início da quarentena, houve uma redução de casos, o que ela atribui a um certo tempo para que as forças de segurança se reorganizassem. Depois, os casos subiram.“Se é um momento de pandemia, a gente imagina que as pessoas vão estar em suas casas e que esses crimes teriam uma redução - e a gente também imagina uma redução de incursões policiais. Mas, para a gente, ficou muito evidente que houve grandes operações”, destaca Luciene.Operações policiais  Ela cita como exemplo o próprio bairro de Sussuarana. Somente durante a quarentena, foram 21 CVLIs lá - 37 desde o início do ano e 11 somente em abril. Naquele mês, após cinco mortes em uma semana, uma operação com 120 policiais militares ocupou o bairro.

“Como isso interferiu no bairro? As mortes continuaram acontecendo, tanto em decorrência de crimes, de tráfico de drogas, como até da pandemia”, aponta Luciene. Tiroteio entre tarficantes do BDM e da Tropa do A, que disputam território em Sussuarana, levou terror ao bairro (Foto: Marina Silva/Arquivo CORREIO) Entre maio e julho foram mais seis mortes, uma madrugada de terror e mais uma ocupação a partir do dia 1º de julho. No local, a Polícia Militar decidiu instalar uma base móvel, depois que um tiroteio entre traficantes do Bonde do Maluco (BDM) e da Tropa do A causou medo e deixou marcas.

“Lá na rua onde eu moro aconteceu aquele tiroteio e foi guerra interna entre as facções. A polícia teve que se fazer presente, mas não tem para onde correr.”, contou um morador, sob anonimato. 

Segundo a SSP, diante do cenário, a pasta “ampliou as ações de inteligência e repressão, alcançando quedas seguidas no meses de maio e junho (menor número de 2020)”.

Dinâmica das facções  Para a cientista social Silvia Ramos, coordenadora do Centro de Estudos de Segurança e Cidadania (CESeC), da Universidade Candido Mendes (Ucam), no Rio de Janeiro, a disputa por território do tráfico em Sussuarana é um exemplo do que vem e desenrolando em outros locais do Brasil durante a pandemia e contribuindo para um maior número de mortes violentas: dinâmicas internas de facções associadas a uma política de segurança pública que mais estimula que coíbe confrontos.“Parece que, durante a pandemia, alguns grupos faccionados tomaram a decisão de disputar territórios, de se preparar, digamos assim, para um momento em que as atividades vão voltar ao ‘normal’. Isso combinado com políticas de segurança que são exclusivamente voltadas para a repressão armada, e não para a prevenção, acho que está contribuindo para essa situação difícil de explicar”, avalia Silvia Ramos.A disputa por territórios do tráfico também chamou a atenção, durante a pandemia, em outros bairros de Salvador, como Saramandaia e Engenho Velho da Federação.

Luiz Cláudio Lourenço, do Lassos/Ufba, também vê um aumento na disputa entre facções e diz que uma das hipóteses pode ser o aumento na demanda por drogas. “Aqui em Salvador, esse movimento de disputa aumentou e uma das possibilidades, hipoteticamente falando, é que a demanda por drogas nesse período não diminuiu. Pelo contrário, ela tende a aumentar, os usuários tendem a ter uma fuga da realidade maior”, afirma.

Jornalista, doutor em Ciência Política e pesquisador do Núcleo de Estudos da Violência da Universidade de São Paulo (NEV/USP), Bruno Paes Manso diz que ainda é cedo para apontar respostas para esse quadro, mas cita dois fatores importantes: primeiro, o ciclo de vingança, em que a morte de uma liderança no tráfico acaba gerando reações de vingança em cadeia. Depois, a polícia como um terceiro elemento que ajuda a “jogar gasolina na fogueira”.

Mesmo que os números apresentados no boletim de ocorrências da SSP não incluam as mortes em decorrência de atividade policial, Paes Manso aponta que a polícia ajuda, sim, a aumentar a letalidade na medida em que usa uma política de incentivo à violência.“Ninguém vai conseguir acabar com o mercado de drogas, mas se você consegue acabar com a violência, é uma redução de danos, é uma política pública bem sucedida”, aponta o pesquisador.“Mas, a polícia vai lá e mata de um lado, desestabiliza o líder, aí vai o grupo rival e aproveita para invadir. A polícia acaba contribuindo, muitas vezes involuntariamente ou voluntariamente, porque faz parte da política do governo dividir para controlar”, completa Paes Manso.

Para Silvia Ramos, a falta de solução para os crimes também ajuda a aumentar a letalidade. “Se a pessoa mata um aqui e sabe que não vai acontecer nada, ela vai lá e mata de novo”, aponta.

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Itinga reduz em 40% as mortes violentas Se, em Salvador, Sussuarana viu a curva de crimes violentos letais intencionais subir de 2019 para 2020, o bairro de Itinga, em Lauro de Freias, viveu um movimento contrário. No ano passado, quando o CORREIO publicou um levantamento com os CVLIs lançados nos boletins diários da Secretaria de Segurança Pública desde janeiro de 2011, Itinga era o bairro com o maior número de mortes, num ranking que incluía todos os bairros de Salvador e da Região Metropolitana. Itinga, em Lauro de Freitas, reduziu mortes violentas esse ano, mas sofre com casos de covid-19 (Foto: Marina Silva/Arquivo CORREIO) Este ano, o bairro da cidade vizinha registrou queda acentuada. Enquanto em 2019 foram contabilizadas 25 vítimas entre 1º de janeiro e 30 de julho, este ano o número caiu para 15 no mesmo período, uma redução de 40%. Já em Sussuarana, o aumento este ano em relação ao ano passado foi de 70,2%, saltando de 11 casos até o final de julho para 37 no mesmo período. No Lobato, o número de vítimas de janeiro até o final de julho caiu este ano em relação ao ano passado: tinham sido 25, agora são 15. Mesmo assim, o bairro segue na segunda posição com o maior número de registros. 

Em nota, a Polícia Militar informou que a criminalidade atua de forma mutável e de acordo com várias circunstâncias.“Onde há mais casos de crimes, há replanejamento de atuação com o envolvimento das companhias ou batalhões de área e apoio de especializadas e outras unidades. São realizadas operações constantes, ocupações, acompanhamento e estudo com ações específicas”, diz a nota.A PM acrescentou que há peculiaridades para cada localidade. “Em alguns casos, há resultados mais rápidos, porém em algumas regiões há necessidade de um trabalho mais intenso, o que está sendo realizado”, diz a nota.

SSP atribui aumento de mortes violentas a soltura de detentos Para a Secretaria de Segurança Pública da Bahia (SSP), a soltura de presos ligados ao tráfico de drogas durante a pandemia explica a alta no número de mortes violentas este ano, sobretudo nos meses de março e abril.“Nesse mesmo período, pouco mais de três mil detentos envolvidos com tráfico de drogas foram colocados em prisão domiciliar, acirrando as disputas por pontos de venda de entorpecentes”, disse a SSP, em nota.Desde o início da pandemia, de acordo com a Secretaria de Administração Penitenciária e Ressocialização (Seap), 1.841 detentos foram liberados de presídios baianos para prisão domiciliar e outros 2.502 receberam alvará de soltura e livramento condicional por conta da pandemia de coronavírus.

Para Luiz Cláudio Lourenço, um dos coordenadores do Laboratório de estudos em Segurança Pública, Cidadania e Sociedade (Lassos/Ufba), pra fazer uma relação direta entre o aumento do número de mortes violentas e a soltura de presos é preciso observar, também, se esses detentos foram vítimas de crimes violentos letais intencionais.“Teria que ver se essas pessoas não foram vítimas e não apenas autores de homicídios, porque, muitas vezes, essas pessoas saem com dívidas de drogas e não conseguem arcar com isso. Manter elas presas é uma possibilidade de manter elas vivas, por incrível que pareça”, pondera.