Neta relembra histórias de João Pequeno, que faria 100 anos nesta quarta

Nani de João Pequeno também é capoeirista e professora de Educação Física

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  • Da Redação

Publicado em 26 de dezembro de 2017 às 02:00

- Atualizado há um ano

. Crédito: Foto: Reprodução

Nani com o avô, João Pequeno; e hoje, seguindo os caminhos dele como mestre de capoeira (Foto: Reprodução) “Eu sou um patrimônio da capoeira.” Essa frase, que foi uma das últimas de João Pereira dos Santos, mais conhecido como João Pequeno, é a que a sua neta mais velha, Nani de João Pequeno, mais tem orgulho de relembrar. Nani é Cristiane dos Santos Miranda, a primeira neta de João Pequeno de Pastinha, capoeirista angoleiro da segunda geração do mestre Vicente Ferreira Pastinha. 

Nascido no dia 27 de dezembro de 1917 - amanhã faria 100 anos -, ele foi o capoeirista mais velho a praticar a capoeira, e o fez até o último dia de sua vida, em 9 de dezembro de 2011, no mês em que completaria 94 anos de idade. “Ele fez a sua passagem no mesmo mês em que veio à vida”, diz Nani, no pátio do Forte da Capoeira, em Santo Antônio Além do Carmo, onde fica a Academia de João Pequeno de Pastinha, lugar sagrado para os capoeiristas do mundo inteiro. Mestre João Pequeno, quando tinha 92 anos, no Forte da Capoeira, no Santo Antônio Além do Carmo (Foto: Angeluci Figueiredo/ Arquivo CORREIO) Mestre Nani, que além de capoeirista é professora de Educação Física, estava vestida com o abadá - nome dado à calça usada pelos capoeiristas - e a camisa da academia de seu avô quando recebeu o CORREIO, no último dia 20: “Meu avô dizia que roupa de gala é a roupa que a gente usa na roda. Se ele pudesse, usava essa roupa em todas as ocasiões”.    “A comunidade baiana precisa lembrar não só dele como de outros mestres: mestre Pastinha, mestre Bimba. E nós, enquanto discípulos, também devemos cuidar da sua memória”, disse Nani, frisando a importância do reconhecimento coletivo daqueles que tanto influenciaram a capoeira.

João Pequeno é responsável por ter tornado o esporte mais visto, compreendido, celebrado e, principalmente, respeitado. João Pequeno de Pastinha foi o mestre mais homenageado em vida e, juntamente com seus discípulos e outros mestres, elevou um cenário marginalizado para a posição de símbolo cultural mundial.

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Saudade No centenário do avô, o sentimento é uma mistura de saudade e reconhecimento. “Ele era um homem de poucas palavras. Costumava dizer: ‘fale pouco, olhe mais e ouça mais’. A simplicidade, o modo de falar, o jeito de cantar e o conhecimento que tinha estão guardados: “Ele nunca forçou ninguém a ser igual a ele. Mestre Zoinho, Mestre Aranha, Mestre Pé de Chumbo, Mestre Jogo de Dentro. Você consegue sentir a presença do meu avô, mas eles são autênticos, cada um tem seu jeito de ser, de levar e transmitir o conhecimento que o mestre deu para cada um”, diz Nani. Quando está em um jogo de capoeira, ela diz que a própria ginga a faz lembrar o seu avô. 

Cobra mansa O mestre João Pequeno seguia os ensinamentos de Vicente Ferreira de Pastinha, também baiano e conhecido por ser o maior propagador da capoeira angolana no Brasil. Pastinha costumava chamar João, seu aluno, de Cobra Mansa. O motivo do apelido, segundo Nani, é porque existiam dois ‘Joãos’ na academia dele: “Um João era alto e o outro era baixo, que era o meu avô. Enquanto um jogava mais embaixo, o outro jogava mais no alto. Mestre Pastinha dizia: ‘Na minha academia,  eu tenho dois Joãos. Um é cobra mansa e o outro é gavião. Enquanto um anda pelos ares, o outro enrosca pelo chão’”, explica ela.

Entre os diversos momentos vividos com o avô, Nani relembra o Carnaval de 2008, quando a capoeira foi homenageada. “Uma repórter perguntou sobre o que ele achava da homenagem e ele disse: ‘Ótimo. Tudo que é bom para a capoeira é bom pra mim. Se tá bom para a capoeira, tá bom pra mim’. Ele era muito espontâneo, acessível, aberto e sereno. Lembro desse momento com carinho, porque ele falava coisas que, muitas vezes, a gente desacreditava.”

Recomeço Foi em 1952 que João Pequeno conheceu a sua “mãezinha”, a esposa, dona Edelzuíta. O mestre tinha acabado de perder a mulher devido a um parto complicado e, em Edelzuíta, encontrou uma forma de recomeçar no amor: “Eles se conheceram na academia do mestre Pastinha. Chamou minha avó para lavar as suas roupas de capoeira e aproveitou para convidá-la para ir ao cinema. Minha avó diz que eles não foram para cinema coisa nenhuma, foram logo para o barraco dele, e lá mesmo ela ficou”, relembra Nani, que sempre morou com os dois, no bairro de Fazenda Coutos.

Nani começou a praticar a capoeira com o avô aprendendo a ensinar, como ela mesma diz, nos anos 90, na academia de Fazenda Coutos, cuja construção foi um sonho do mestre João Pequeno.“Ele me passou o método de ensino, as sequências de aula que eu deveria seguir. Ficava do meu lado e eu ia ensinando aos meninos na comunidade”, conta. Em 2008, Nani começou a dar aulas profissionalmente em uma escola na Ribeira, mas foi no projeto Pequenos de João, encabeçado pelo seu avô, que ela começou a colocar em prática os ensinamentos.

Mulheres no jogo No início, o mestre João Pequeno achava que mulher não poderia segurar o berimbau gunga - instrumento que comanda a roda, normalmente sendo tocado por um capoeirista mais antigo ou um mestre. Depois, enquanto treinava para seguir os seus passos, Nani perguntou a ele sobre segurar o gunga, e a resposta foi: ‘É claro. Você vai deixar um homem comandar a sua roda?’”.

“Não existe diferença entre um jogo de uma mulher ou de um homem, e nem deve ter. A palavra de ordem sempre foi respeito”, disse Nani, em tom sério. O mestre João Pequeno acreditava que a educação era para todos. Costumava questionar os seus discípulos: “Se você jogar com uma criança, você vai bater nela?”, dizia, pois, para ele, todo capoeirista iniciante era como uma criança que se desenvolveria através do jogo: e essa lição servia para ambos os sexos. 

Sobre a presença feminina no esporte, Nani afirma que a mulher sempre esteve presente na capoeira, mas ‘escondida’ nos bastidores: “São as mulheres que fazem tudo acontecer. Todos os eventos e trabalhos que envolvem a capoeira, somos nós que organizamos. Minha avó sempre foi a capoeirista por trás das rodas e eventos do meu avô. Era ela quem trazia as comidas, as panelas, quem estava no fundo do quintal construindo os berimbaus, lixando as cabaças...”, afirma ela.

Presente Nani é mãe de Gustavo e João, que nasceu após a morte do avô. “Nem pensei em outro nome. Foi um presente que eu ganhei logo após o falecimento dele”, conta ela. Assim como foi com Nani, os seus filhos aprendem a capoeira de forma natural: participando das rodas.“Ele dizia que eu era a menina dos olhos dele. Eu fui a única que continuou na capoeira, meus irmãos pararam. De vez em quando até tentam, eu ainda não desisti deles”, compartilha ela, aos risos.Nani completa que conheceu o lado familiar, pessoal de João Pequeno e só viu o lado capoeirista dele nos anos 90. “Ele já era muito sábio, mas tranquilo. Teve muita luta e nunca se deslumbrou nos meios em que andava.” João Pequeno e outros mestres cumpriram o seu legado. Agora, é fazer a capoeira se perpetuar.

* Renata Oliveira é integrante da 12ª Turma do Correio de Futuro, orientada pela editora Mariana Rios.