O Brasil tem medo de eleger mulheres? O que falta para mais candidaturas femininas serem eleitas

O Brasil tem, hoje, o pior índice de representação política feminina da América do Sul

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  • Thais Borges

Publicado em 6 de março de 2022 às 07:00

- Atualizado há um ano

. Crédito: Foto: Gabriel Spenassatto/Shutterstock.com

Imagine o cenário: uma pequena cidade do interior de um estado que nunca teve uma prefeita mulher ou sequer elegeu alguma vereadora em sua história. No mesmo estado, uma grande cidade só teve uma prefeita desde a sua fundação. Nunca foi eleita uma governadora neste estado ao longo dos séculos. No país onde ficam essas localidades, até houve uma presidente, mas seu processo de destituição constantemente é citado por pesquisadoras de gênero pelos aspectos de misoginia. 

Diante deste contexto, a conclusão mais óbvia seria de que eleitores desses lugares - ou do Brasil, da Bahia e de muitas de suas cidades, independente do tamanho ou da composição - têm alguma resistência a eleger mulheres. Em um ano eleitoral tão decisivo para o futuro da democracia brasileira, as razões que estariam por trás de números tão baixos - na Câmara Federal, por exemplo, apenas 15% das cadeiras ficaram com as mulheres na última eleição - chamam atenção. 

Mas, segundo cientistas que se dedicam a estudar a representação política feminina, de forma geral, eleitores não têm receio, medo ou preconceito de votar em mulheres."Não é uma questão de ter medo. Os eleitores votariam e votam em mulher. Se ela tiver dinheiro, vai concorrer igual aos homens", diz a cientista política Teresa Sacchet, doutora em Ciência Política pela Universidade de São Paulo (USP) e professora do programa de pós-graduação em Estudos Interdisciplinares sobre Mulheres, Gênero e Feminismo da Universidade Federal da Bahia (Ufba). De acordo com ela, há dois mitos que são compartilhados pela maioria das pessoas: o de que mulheres não estão interessadas em política e o de que eleitores não votam em mulheres. "Se os eleitores não conhecem os candidatos, eles vão votar em quem estão vendo. Tem mulheres que são apoiadíssimas nos partidos, mas não estamos falando das exceções", explica. 

O pleito de 2022 terá uma novidade: os votos dados a candidatas mulheres e pessoas negras vão ser contados em dobro para a distribuição dos recursos do Fundo Partidário e do Fundo Eleitoral. A reforma foi aprovada no ano passado. 

Institucional A leitura da advogada Roberta Eugênio, diretora do Instituto Alziras, organização sem fins lucrativos que atua para fortalecer a presença de mulheres na política, é parecida. Há uma ‘culpa’ que recai sobre os eleitores, quando a explicação tem mais a ver com fatores que passam pelo financiamento, pelas regras eleitorais e também pela cultura patriarcal. 

“Acho que as práticas desse machismo se dão em considerar que o desenho do nosso sistema político eleitoral hoje não está sendo suficiente para garantir que mais mulheres estejam nesse espaço”, afirma. 

Chegar a 2022 com apenas uma mulher como pré-candidata à presidência (a senadora Simone Tebet, do MDB-MS) seria um reflexo disso. Em 2010 e 2014, Dilma Rousseff (PT) foi eleita enquanto o pleito de 2018 teve duas mulheres concorrendo: Marina Silva (Rede) e Vera Lúcia (PSTU).“A gente precisa se perguntar o que a gente está fazendo de errado”, enfatiza Roberta. 

Como aponta a cientista Teresa Sacchet, nos cargos majoritários, o percentual de mulheres selecionadas para concorrer é menor. Isso parte da escolha das próprias lideranças partidárias. "Quando tem uma disputa muito acirrada, quem será selecionado será um homem. Se só tem um candidato para a vaga, vão provavelmente escolher um homem porque pensam que os homens têm mais capital político", explica. 

Não é de hoje que pesquisas vão contra essa tendência. Em 2009, um estudo do Instituto Patrícia Galvão em parceria com o Ibope indicou que 94% dos entrevistados votariam em mulheres. Além disso, 83% afirmavam acreditar que a presença de mulheres melhora a política e os espaços de poder e de tomada de decisão. "Há um jogo de poder nesses partidos e os homens são mais articulados nas estruturas de poder. Os partidos têm um papel primordial nisso (no baixo número de mulheres eleitas) e seriam uma explicação. A outra explicação viria através das regras políticas e eleitorais”, acrescenta Teresa.Liderança Pensando em ampliar essa representação, alguns segmentos têm investido em capacitação para possíveis candidatas. É o caso da Aliá Política para Mulheres, a primeira consultoria política do país com foco em aumentar o desempenho das candidatas. Na Aliá, as pré-candidatas acompanhadas contam com mentoria, instrução de performance, dicas jurídicas e orientações quanto à própria atuação. 

"Os partidos têm que entender que eles têm que alterar seu modo de trabalho para atrair tanto as mulheres quanto a juventude para dentro de suas fileiras partidárias. Os relacionamentos intrapartidários têm que ser mais horizontais, mais participativos e dinâmicos. Tem que ser um ambiente de escuta maior do que os partidos estão habituados", diz a advogada Danielle Gruneich, consultora e mentora da Aliá.

Mesmo com menos jovens inscritos para votar, a expectativa dela é de que a busca por candidatas mulheres deve ser alta. No mês passado, o Tribunal Superior Eleitoral divulgou que o número de pessoas com idades entre 16 e 17 anos é o menor da história. Aptos a votar, mas sem a obrigatoriedade, o percentual de adolescentes nessas faixas etárias que tiraram o título de eleitor caiu 26%. Em comparação à última eleição presidencial, em 2018, a redução foi de 47%. 

"Os jovens normalmente votam nas novidades. Mas há uma variável grande da pandemia nas mulheres, porque a gente sabe que a economia do cuidado muitas vezes fica atrelada à mulher", analisa. 

Para Danielle, nem sempre mulheres que já são lideranças em suas comunidades se identificam dessa forma."Quando a gente conversa com as mulheres, elas são líderes em suas igrejas, nos bairros, mas muitas vezes elas não se veem como líderes eleitorais. Algumas até trabalham para outros candidatos", diz. Financiamento Para cargos proporcionais, por exemplo, o que mais pesa é o financiamento eleitoral. "Se as mulheres forem competir com pouco recurso financeiro, elas não conseguem se fazer conhecidas do eleitorado", diz a cientista política Teresa Sacchet, da Ufba. 

Segundo a professora, o fim do financiamento privado para campanhas já teve parte da responsabilidade do aumento de 10% das vagas de deputadas para mulheres em 2014 para 15% em 2018. Isso porque as empresas fazem doações em menor quantidade para as mulheres. Hoje, as leis brasileiras também determinam que ao menos 30% dos recursos partidários sejam repassados às mulheres. 

Ainda que tenham existido problemas no caminho, o aumento percentual já demonstra que algo foi feito. Mas os recursos de visibilidade, como o próprio tempo de televisão, também precisam ser melhor distribuídos. No horário eleitoral gratuito, não é incomum que alguns partidos deixem mulheres em um horário mais cedo, enquanto os homens são exibidos no horário nobre. 

"Existe todo um número de estratégias que os partidos utilizam e que acabam tornando inviável (a maior eleição de mulheres)", diz Teresa. "Como temos um número pequeno de mulheres eleitas, com capital político efetivo, temos um número pequeno concorrendo à reeleição. Por isso, as novatas têm que receber pelo menos recursos em níveis de igualdade com os homens", reforça. 

Além disso, o perfil dos gastos das mulheres é diferente do perfil de gastos dos homens, nas campanhas, como explica Danielle Gruneich, consultora e mentora da Aliá. Ainda hoje, homens recebem mais financiamentos privados, inclusive recursos próprios. Ela acredita, porém, que o problema do período de financiamento pode começar a ser superado em 2022. 

Por uma resolução do TSE, até o período de prestação de contas parcial, os partidos já devem ter repassado os recursos a todos os candidatos. "Isso foi um ganho importante. Entre 9 de setembro e 13 de setembro, esse recurso tem que cair na conta. Na reta final da campanha, a mulher vai ter isso para se organizar", pondera Danielle.

Cadeiras Uma das propostas que está sendo analisada atualmente é a chamada reserva de cadeiras no parlamento. Ao contrário do que acontece hoje - o Brasil tem cotas apenas de 30% de candidaturas femininas, o que não garante a eleição delas -, o projeto de lei 1951/2021 foi aprovado em julho no Senado com o objetivo de garantir ao menos 30% das vagas no Legislativo até 2038. 

A reserva de vagas ocorreria de forma escalonada, sendo 18% nas eleições de 2022 e 2024; 20% nos pleitos de 2026 e 2028; 22% nas eleições de 2030 e 2032; 26% nas eleições de 2034 e de 2036; e 30% nos pleitos de  2038 e 2040. No entanto, até hoje, o projeto não foi votado na Câmara dos Deputados, o que impediria que, caso aprovado, fosse adotado ainda este ano. 

As cotas para as cadeiras já são realidade em outros países, inclusive na América Latina. A Argentina, por exemplo, implementou cotas de 50% das cadeiras do parlamento para mulheres em 2019. Para a advogada Roberta Eugênio, falta vontade política e responsabilidade dos parlamentares. “É claro que não é uma mudança que alegra a todos. Para que tenhamos mais mulheres, teremos que ter menos homens e esse é o ponto que faz com que a gente não consiga alcançar. Existem alguns que não querem se levantar das cadeiras para contribuir”, argumenta. Além de serem uma reivindicação constante, a reserva de cadeiras é uma recomendação de organismos internacionais, inclusive a Organização das Nações Unidas (ONU). “Já temos muitos estudos que mostram que somente a reserva de candidaturas não é suficiente para que se altere o cenário em relação à presença”. 

Se parece algo muito distante, países da própria América Latina têm mostrado que é possível enfrentar o problema em um curto espaço de tempo. O Brasil tem, hoje, os piores índices de representação feminina da América do Sul. 

Em 2021, por exemplo, o Chile aprovou a primeira assembleia constituinte paritária para escrever a nova Constituição do país. De acordo com Roberta, até 2019, parecia impensável uma representação igualitária de mulheres e homens no país. 

“A gente não está falando de uma tradição muito distante do Brasil. São países que têm, sim, uma estrutura patriarcal com inúmeras práticas machistas, mas esse cenário hoje em relação à presença das mulheres no parlamento é diferente porque foram implementadas medidas que podem impulsionar esse tipo de mudança”, 

Partidos se mobilizam para aumentar o número de mulheres eleitas

As cientistas políticas acreditam que, além da pressão da sociedade em geral, as próprias mulheres que são lideranças podem fazer diferença nesse processo. Por isso, instâncias internas como secretarias de mulheres podem usar sua voz para conquistar mais espaço entre as candidaturas. 

Na avaliação da  advogada Danielle Gruneich, consultora e mentora da Aliá Consultoria Política, alguns partidos já saíram na frente nas tentativas de se adaptar a esse novo cenário. “Os partidos despertaram para atrair esses novos públicos que muitas vezes não estão acomodados na política. Não digo que é mais do campo da esquerda ou da direita, porque você tem o Republicanos fazendo um bom trabalho com mulheres, o PT fazendo um bom trabalho com mulheres, o União Brasil fazendo um bom trabalho com mulheres”, cita. Com a fundação do União Brasil, aprovada em fevereiro, o novo partido, que surgiu a partir da fusão entre o Democratas e o PSL, passará a ter o maior número de deputadas da Câmara Federal. São ao menos 12 parlamentares mulheres. 

A presidente estadual do União Brasil Mulher, Iris Azi, conta que, quando assumiu o cargo, ainda como presidente do Mulher Democratas, percebeu a dificuldade de encontrar candidatas para disputar o espaço por razões que iam desde falta de preparo e apoio financeiro até ao próprio perfil 'multifuncional' de muitas mulheres, que acumulam funções. 

"A mulher tem que ocupar esses espaços de poder. As políticas públicas defendidas pela maioria dos homens não vão estar para as mulheres. Com certeza elas podem agregar, mas é preciso que essas políticas sejam discutidas com as mulheres. É um trabalho conjunto", afirma. 

Ainda no Democratas, o aumento de candidaturas de mulheres em 2020 aumentou 33% em comparação a 2016 - passaram de 683 para 915. Assim, o número de eleitas também cresceu 65%: foram 71, incluindo prefeitas, vice-prefeitas ou vereadoras. Em 2016, apenas uma prefeita foi eleita contra sete em 2020.

Para 2022, o União Brasil está na reta final da identificação de possíveis candidatas a deputadas. Ao longo dos últimos meses, o partido criou um programa de desenvolvimento de aceleração da participação da mulher na política e contratou uma consultoria para apoio na capacitação de potenciais candidatas. "Tenho abordado muitas mulheres que vejo que têm protagonismo na educação, no entretenimento. Tenho feito exercício mas vejo que nem todas estão dispostas a encarar isso, porque é uma construção", diz Iris. "Tudo é exemplo. A gente tem poucos exemplos, precisa de mais. Isso só vai acontecer quando tiverem mais nomes fortes com boa argumentação, que tragam realmente a pauta para a discussão". Na Câmara Municipal de Salvador, o União Brasil divide com o PT o posto de maior número de mulheres eleitas: cada partido tem duas vereadoras. Para a secretária de Mulheres do PT na Bahia, Jazian Mota, os números do partido - o segundo com mais deputadas federais e também o maior número de deputadas estaduais - refletem uma luta antiga das mulheres da sigla. 

"Nós somos pioneiras em levantar essa bandeira da cota de candidaturas e conseguimos, no PT, instituir a paridade nas instâncias partidárias, respeitando também as cotas raciais e geracionais. Mas ainda que tenhamos avanços nesse sentido, a luta ainda é grande", pondera, citando o número de mulheres presidentes de diretórios, que ainda considera ser pequeno. 

Em 2018, a direção nacional criou o programa Elas por Elas para dar suporte às candidaturas femininas."Em 2020, nós fomos recordistas em candidaturas de mulheres, com mais de 1100 em toda a Bahia. Conseguimos ampliar o número de vereadoras de 42 para 60 e o de prefeitas de seis para oito", enumera. Na Bahia, o PT tem 62 mil mulheres filiadas - o que corresponde a 40,5% do universo de 153 mil filiados. No Republicanos, a capacitação das mulheres que são possíveis candidatas é um dos objetivos, de acordo com a secretária estadual do Mulheres Republicanas, Rogéria Santos. Esse processo começa com o incentivo a novas filiações. 

"Nós fizemos uma campanha grandiosa no final do ano que foi sucesso no âmbito nacional não só em relação às filiações, mas à própria capacitação das mulheres com cursos para estarem competitivas nas urnas", diz. Dos 51 mil filiados ao Republicanos na Bahia, 55% são mulheres. 

Segundo ela, o investimento nas candidaturas femininas foi uma decisão tomada pelo diretório nacional do partido. "Nós não só queremos que elas sejam filiadas como vamos dar a condição na parte de capacitação, instrução. Somos preparadas para chegar de forma competitiva. A mulher para nós é necessidade, não é mera cota", completa. 

Já na Assembleia Legislativa da Bahia (Alba), o PSD divide com o PT o posto de maior número de mulheres eleitas deputadas. Cada um dos partidos tem três das 10 parlamentares da Casa. 

Segundo a coordenadora do PSD Mulher na Bahia, Eleusa Coronel, a pandemia fez com que as estratégias fossem reformuladas para reunir as filiadas através de encontros virtuais, palestras e debates. Hoje, são quase 70 núcleos do PSD Mulher no estado. “Temos estruturado a nossa base desde então, para chegarmos nas eleições de 2022 fortalecidas, ampliarmos o número de mulheres com mandato no Estado e termos um partido forte, com a mulher do PSD mais forte ainda”, diz. “O que a gente na verdade mais precisa, é chegar num ponto em que não precisaremos mais brigar por gênero para entrar ou estar na política”, acrescenta Eleusa. Já outros partidos têm boa representação entre as deputadas na Câmara Federal, mas não têm baianas entre as eleitas. Esse é o desafio de legendas como o Progressistas, que elegeu em 2018 sete deputadas federais, todas de outros estados. 

Segundo a coordenadora estadual do PP Mulher, Ruth Vieira, o partido tem desenvolvido ações de capacitação online e presencial, eventos  'Mulheres Progressistas Construindo o Futuro' e eventos de filiação, além de cursos de formação política e gestão pública. 

“Construir a liderança feminina discutindo a mulher como mulher, sua presença nos diversos setores da sociedade, nas organizações, trabalhar sua imagem e buscar engajamento de fora para dentro do Partido Progressistas é imprescindível", completa.