'O clima é estranho', narra baiana que vive em cidade ucraniana

Professora de inglês vive no oeste do país e narra como ficou a rotina diante das ameaças de guerra

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  • Fernanda Santana

Publicado em 19 de fevereiro de 2022 às 16:00

- Atualizado há um ano

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A cidade de Terebovlya fica ao oeste da Ucrânia e, com um milênio de existência, sedia monumentos históricos de guerras passadas. Em dezembro do ano passado, a ameaça de uma guerra - dessa vez contra a Rússia - voltou a rondar. A seis horas de distância, por terra, do ponto de ebulição do conflito, Kiev, mora a baiana Iasmin Avhustovych, 29 anos. De lá, ela envia notícias para os pais, em Salvador, planeja o futuro e narra o cotidiano diante dos possíveis ataques.“É uma coisa de filme para mim, nunca imaginei viver isso. Meus pais sempre me perguntam como eu estou", conta a professora de inglês, que, em julho do ano passado, se mudou para Tereblovya, onde se casou com o atual marido.Ao acordar, Iasmin e o marido, Mykola, atualizam as notícias da noite que passou. As notícias mudam o tempo todo e eles querem estar atento a cada uma delas - inclusive as divulgadas pela imprensa russa. “Já pensamos no caso do meu marido ser convocado, o que faríamos. São várias conversas”. Rússia aumentou presença militar nas fronteiras com a Ucrânia (Foto: Russian Defence Ministry/AFP) A escalada de tensão sobre o território ucraniano tem como principal ponto a possível adesão da Ucrânia à Organização do Tratado do Atlântico Norte (Otan), aliança militar intergovernamental criada em 1949, no pós Segunda Guerra, para fazer frente à União Soviética e seus aliados da Europa oriental e fornecer ajuda mútua aos países membros. A Rússia exigiu que a entrada na OTAN não ocorra. A Ucrânia afirma que é independente e não pode ser impedida. 

Leia mais: Entenda conflito entre Rússia e Ucrânia e o que está em jogo.

Na cidade onde Iasmin mora, o clima é de aparente tranquilidade, diz Iasmin, apesar da necessidade de estar sempre conectado aos acontecimentos. Talvez a maior diferença seja a união dos habitantes locais, aflorada pelas ameaças de guerra. A sogra de Iasmin, enquanto termina de construir a casa, diz que lutaria pelo país. Ela tem 55 anos. “Imagina ver pessoas mais velhas que estão construindo suas casas com medo, novamente, de terem suas coisas tomadas. Eles querem viver tranquilamente, com liberdade de ter suas casas, plantar seus jardins, não sob ameaça”.De acordo com a Embaixada Brasileira na Ucrânia, 500 brasileiros, em média, vivem espalhados pela Ucrânia. Sobre a quantidade de baianos que habitam o país, não há estatística. Confira o relato de Iasmin:

'A gente acorda e já começa ver as notícias'

Moro em Tereblovya desde julho do ano passado [2021]. A cidade, na época da União das Repúblicas Socialistas Sov­­­­­­­­­­­­­­­iéticas (URSS), era bem industrializada, mas isso mudou bastante: há fabricas abandonadas e aqui as pessoas trabalham no mercado local ou na cidade vizinha. A cidade tem 13 mil habitantes. Desde dezembro, o clima é estranho. Sempre teve essa ameaça de guerra, mas não tão critica. 

Hoje, recebemos a notícia de que houve um novo ataque cibernético à Ucrânia. Eles [Rússia] começam com ataque cibernético e há alertas, com voos cancelados, que diminuem nossas possibilidades de saída, o que gera temor, porque pode não ser um bom sinal.

Olho as notícias todos os dias, meu marido também. A gente acorda e já começa ver as notícias, o que está acontecendo. Querendo ou não, de manhã cedo, precisamos saber o que aconteceu na noite passada, por questão de segurança. Virou rotina. 

Meus pais ficaram todo dia me perguntando se eu estava bem. Se acontecesse algo, a gente tinha pensado no que fazer, em meios de saída. Pensamos no caso do meu marido ser convocado para lutar numa possível guerra, o que faríamos. São várias conversas. Essa semana ficou meio estranha. A questão dele ir para o Exército me deixou muito apreensiva. Iasmin e o marido (Foto: Acervo Pessoal/Iasmin Avhustovych) É uma coisa de filme para mim, nunca imaginei viver isso. Ele [meu marido] me explicou tudo, até para eu ficar mais tranquila. Criamos planos para saber se poderíamos sair do país, se eu poderia sair do país. Foi uma conversa que acabou acontecendo, algo natural, não planejado.

Existem saídas de trem e de carro, mesmo sem voos. Há uma escola que tem um bunker [estrutura ou reduto, parcial ou totalmente subterrâneo, construído para resistir a uma guerra] aqui. Quando meu marido passou por lá, ele mostrou que lá ficava um bunker, construído na época da guerra. Há resto de bases militares, igreja que virou base de defesa, lugares que foram bombardeados e reconstruídos. Há lugares históricos aqui. 

A rotina não mudou muito, as aulas recomeçaram normalmente e o pessoal está trabalhando, apesar da tensão. Eu dou aula de inglês com meu marido. Ele também trabalha com construção civil e design e estamos fazendo a casa da mãe dele. Minha sogra foi a primeira a dizer que ela mesma lutaria em caso de guerra. Ela tem 55 anos.  Monumento histórico de Terebovlya (Foto: Acervo Pessoal/Iasmin Avhustovych) Assim que começou a tensão, fiquei bastante ansiosa, mas tive que ir relaxando, sinceramente. O pessoal daqui tenta passar uma certa segurança. Eles passam a sensação de que estão cansados de ter que lutar para defender o próprio território.

Há uma sensação de que eles vão lutar ate o fim e, mesmo sendo estrangeira, sou influenciada por esse sentimento. Imagine ver pessoas mais velhas que estão construindo suas casas, como minha sogra, com medo, novamente, de terem suas coisas tomadas. Eles querem viver tranquilamente, com liberdade de ter suas casas, plantar seus jardins, não sob ameaça de alguém chegar e tomar.

As informações que recebemos aqui, na Ucrânia, são, geralmente, completamente diferentes do que circulam [na Rússia]. Para quem está na Ucrânia, é triste, porque vendem uma imagem que não é real. Aqui, mesmo numa cidade não tao grande, eu posso dizer que a qualidade de vida é boa. É muito tranquilo.

Muita gente acha o nacionalismo daqui algo negativo, mas eu consigo entender o ponto. Quando você conhece a história deles, você vê um povo muito oprimido. Eu entendo o sentimento de nacionalismo, porque eles precisam defender a própria identidade que outros povos tentaram apagar. Eles têm a própria língua, o próprio povo. Em mim, isso gerou um sentimento bem forte.

A família da minha sogra tem uma parte russa, que mora na Rússia. Depois da situação Crimeia, em 2014, eles não têm mais contato [há oito anos anos, a Crimeia foi anexada à Rússia, após uma longa disputa pelo território com a Ucrânia]. O lado da família da Rússia dizia que eles, russos e ucranianos, falavam a mesma língua, eram do mesmo país, mas os ucranianos não acreditam nisso. Eles são ucranianos. É a identidade deles.