'O homem usa o amor como ferramenta para nos matar', diz pesquisadora

Iraildes Andrade reflete sobre cobranças feitas às mulheres

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  • Hilza Cordeiro

Publicado em 8 de março de 2020 às 06:30

- Atualizado há um ano

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Quem pensa nas mulheres? Pesquisadora formada em Gênero e Diversidade (Neim/Ufba), Iraildes Andrade, coordenadora nacional de Gênero do Coletivo de Entidades Negras (CEN) e ex-facilitadora da Secretaria de Políticas para as Mulheres (SPM), enumera uma série de ideias equivocadas que é preciso parar de reproduzir sobre o que é ser mulher na sociedade. (Foto: Reprodução/Acervo Pessoal) Num mundo em que nascer ou identificar-se com o gênero feminino é sinônimo de ser vulnerável, Iraildes pensa em caminhos viáveis para desconstruir mitos sobre o que é ser mulher.

Quais são os principais mitos sobre ser mulher? Um dos principais é exatamente essa história da maternidade. Não é exatamente um mito, mas uma responsabilidade que você incute como se filho fosse algo exclusivo da mulher, quando, na verdade, a maternidade é algo compartilhado. A mulher não faz o filho sozinha e a responsabilidade da criação não tem que estar unicamente na mão da mulher.

Quando acontece algo na rua, um problema com uma criança, a primeira coisa que a sociedade pensa é: Cadê a mãe desse menino? Como se só existisse mãe. Isso me incomoda. 

Outra história é de que uma mulher não é feliz se ela não for mãe. É algo muito complicado porque a gente pode entender que a maternidade é opcional. Por que você tem que achar que a mulher tem que ser mãe? Acho legal, é ótimo, mas não é somente isso.

Tem a história do casamento também. Se você é a mulher que opta por estar sozinha, a solidão é você que decide. Aliás, não é exatamente a solidão é a decisão de viver e não ter um companheiro dessa forma tradicional, mas ter alguém esporadicamente. E se ela gostar de dormir sozinha? De ter uma cama larga só para ela?

Imagine, eu quando me separei, meus filhos tinham 14 e 17 anos. Eu me lembro das pessoas dizendo que eu os abandonei porque eles ficaram com o pai, que ganhava bem, tinha apartamento. Eu continuava presente, mas ouvi muito isso. A gente está o tempo todo julgando e falando de que ser mãe é padecer no paraíso, da linda imagem de Nossa Senhora…

Mas a realidade é que as mulheres, hoje, quando conseguem, criam os filhos sem ajuda de companheiro.Tem mulheres que estão ali com a grana pouca, mas ainda assim estão ali dando conta disso. E ninguém critica os companheiros. 

Nós queremos ver as mesmas críticas porque, para o homem, o abandono é algo natural. Na sociedade machista, o homem pode tudo e a mulher nada. A sociedade patriarcal nunca vai reconhecer o poder da mulher na manutenção do caráter, da casa e de tudo o que ela provém.

Mas nós estamos trabalhando, vencendo e ganhando a cada dia. Quando você vê um casal em que o homem cuida da casa, a própria sociedade condena isso. “Oxe, por que ele tá dentro de casa?” E por que ele não pode estar dentro de casa?

O que essas ideias equivocadas provocam na vida das mulheres? A gente bem sabe o quanto essas condenações, esse achar age no psicológico de uma mulher. Afeta nossa cabeça, machuca, magoa, nos faz viver na sombra. E isso é muito perverso porque é como se a gente só pudesse pensar e ser aquilo ali. Existem mulheres reproduzindo posturas machistas.

Neste Carnaval, viralizou um vídeo em que uma mulher filma a outra nua na avenida e fala assim “Amanhã ela vai se arrepender, coitada”. Se você sabe que ela não está bem, que vai se arrepender, por que filma? Não gosto de dizer que a mulher é machista. A mulher é objeto do machismo, ela reproduz posturas machistas. 

A gente consegue perceber o quanto isso é complicado. Isso afeta enormemente o psicológico de uma mulher e, quando se abala o psicológico, automaticamente, isso lhe destrói, lhe deixa muito ruim. É o tempo todo sobre lidar com uma sociedade que está sempre lhe cobrando posturas que não é só você que tem que ter.

Aí você vê que se seu companheiro não está acompanhando seu filho, ele não sofre represália. Mas se você deixa, tome aqui esse filho, entrega ele para alguém, você vai ouvir as pessoas dizerem uma grande quantidade de absurdosOutra coisa… Será que essas mulheres conseguem ter um lazer? Essa é uma das perdas. Todas nós precisamos. Mas será que elas conseguem oferecer momentos de interação? De ter tempo para sair? A criatura está sozinha no mundo. Ela e os filhos, claro, mas está cuidando da casa, vendendo sua guia em algum lugar. O dinheiro que ela ganha não é uma grana que ela pode pagar alguém para ajudar. Ela é mãe, empresária, empregada doméstica, cozinheira. Ela ainda é a professora do reforço porque tem que olhar as tarefas de escola de suas crianças. E quem é que cuida dela? Quem cuida da cabeça dela? Quando ela cai de cama, como é? Aquela história do “Quem pariu Mateus que balance” é cruel. As mulheres têm a perda do cuidado com elas mesmas. Muitas, inclusive, deixam de tentar um novo relacionamento. Quem é que tem coragem de pensar num novo relacionamento depois disso tudo?

Minha mãe, por exemplo, era negra e vivia a solidão. Ela não tinha mais coragem de entrar numa outra relação e preferiu ser sozinha. Ela dizia isso o tempo todo em casa, nunca me esqueço. Elas se impõem uma solidão porque não querem mais relações escrotas de homens que não conseguem ser parceiros, que não conseguem dividir.

Em que momento nós estamos atualmente quanto ao combate a essas ideias? O combate hoje é exatamente quando se tenta minimizar todas essas questões, levando para elas, as mulheres, essas questões do quanto o machismo e o patriarcado são ruins, o que fazem com a gente. Ele nos adoece. Tem nos matado! O homem tem usado o amor como ferramenta para nos matar. É aquela história do “Eu amo e não quero ela com ninguém”. É a pior justificativa. 

A gente precisa levar essas falas de combate para todos os lugares. Quando eu trabalhava na SPM, eu achava importantíssimo o fato de a gente ir para o interior, para as comunidades em distritos pequenos e conversar com todas as mulheres, jogar pílulas sobre o assunto.

A gente precisa fazer com que elas entenda isso dentro de uma linguagem mais fácil. É a conversa, não é palestra. E essa conversa também precisa ser feita com os homens. Quanto mais a gente tem tentado conversar, a gente tem sentido um avanço. 

Não vou lembrar agora o nome do artigo em que li isso, mas antigamente colocava-se módulo de polícia perto dos condomínios e dizia-se que existia, principalmente, para atender ocorrência de marido que batia em mulher. Quando temos hoje dados de violência doméstica que mostram aumento, isso quer dizer que mais mulheres estão tendo consciência e denunciando.

As violências sempre aconteceram, só que agora a gente entende que precisa denunciar. Felizmente, elas denunciam, esses dados aparecem e sabemos como vem acontecendo, como o machismo recai. O feminicídio, então... Antes as mulheres morriam e se dizia “Ah, ela foi morta”. Hoje, a gente enquadra numa lei que diz: morreu porque era mulher.