O pesadelo da princesa do povo

No bom drama biográfico Spencer, Kristen Stewart revive de forma magistral uma das fases mais deprimentes de Lady Di

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  • Doris Miranda

Publicado em 27 de janeiro de 2022 às 06:09

- Atualizado há um ano

. Crédito: divulgação

Há uma diferença abissal entre a princesa Diana apresentada na quarta temporada da série The Crown e a que se vê em Spencer, muito bom filme do cieneasta chileno Pablo Larraín (Jackie/2016). Jovem inexperiente, a Diana vivida por Emma Corrin ainda guarda a ilusão de que pode ser feliz no casamento com Charles. Já a princesa interpretada de forma supreendente por Kristen Stewart está escaldada e se prepara para pedir o divórcio do marido adúltero - e, consequentemente, da rígida burocracia da família real britânica. De uma fase para o outra, a princesa viu seu conto de fadas ruir, perdeu o controle mais imediato sobre sua vida e aprendeu a transformar cinismo em escudo.

O filme faz um recorte nos dias que circundam o Natal de 1991, o último que Diana passou com a rainha, e revelam o pesadelo que a vida real transformou o sonho idealizado para ela. Com uma aparência livre, Diana dirige sozinha seu carro conversível rumo ao castelo onde a família do marido se recolhe para desfrutar dos feriados. À medida que se aproxima, vemos a agonia tomar conta do seu semblante. A partir dali, estará sozinha, desamparada na imponência da Sandringham House, casa de campo da monarquia que a princesa considera como mais uma prisão.

Spencer, que se apresenta como "uma fábula de uma tragédia real", não demonstra rigor nos fatos históricos ou nos diálogos encenados. O importante mesmo para o diretor é conduzir o público na reconstrução de uma mulher fragilizada. Diana transborda angústia, sofre com bulimia e eventualmente corta a si mesma para aliviar a pressão. Vai se deteriorando numa rotina que mistura realidade com devaneios fantasmagóricos - a presença de Ana Bolena, rainha que foi decapitada para que Henrique 8º pudesse se casar e de quem a família Spencer é descendente, é uma constante ao lado da princesa nestes dias. Figurino primoroso: até o icônico vestido do casamento da princesa foi recriado para o filme (divulgação)  Ela mesma assombrada pela fama e obrigações com o público, a ex-estrela da saga Crepúsculo cabe perfeitamente no papel de Lady Di. Com uma atuação conectada ao espírito da personagem, Stewart tem aparecido nas listas de possíveis indicadas ao Oscar de melhor atriz - ela foi indicada ao Globo de Ouro. E é, de fato, o melhor desempenho de sua longa carreira. Até mesmo as expressões angustiadas que Kristen sempre exibiu como espécie de cacoete dramatúrgico parecem ajustadas ao grito mudo que Diana mantém entalado.

Outro fator que ajuda muito na composição da personagem é o figurino magnífico assinado pela premiada Jacqueline Durran e o ambiente meio nebuloso desenhado pela diretora de fotografia Claire Mathon (Retrato de uma Jovem em Chamas), que transporta o público para dentro de um sonho (ou seria pesadelo?) em cores pasteis.

No processo de preparação para o trabalho, Kristen tem dito que assistiu e leu todas as entrevistas possíveis de Diana, pois queria representar a vulnerabilidade e a natureza imprevisível da princesa com precisão. Além disso, Larraín sugeriu uma técnica de improvisação diária para ela se aprofundar na alma da princesa. Diariamente, o diretor escolhia uma música, que tocava enquanto a atriz expressava, fisicamente, uma emoção que Diana estaria sentindo.

"Eu morria de medo dessa improvisação. Enquanto me preparava para uma interpretação de Diana, tudo se tornava mais profundo, e eu, de fato, estava vivendo o que, imagino, ela estava sentindo. Me perdi na personagem, sentia que não estava mais simplesmente atuando, estava alucinando", explicou a atriz.

Ao contrário de Jackie, que, apesar da atuação brilhante de Natalie Portman, é um filme quadrado, o clima opressivo de Spencer ultrapassa a tela e atinge em cheio o espectador. O resultado é atordoante, bonito e nada burocrático.  

Veja o trailer de Spencer: