O que faz uma tese vencedora? Bahia tem quatro trabalhos entre os melhores do Brasil

Conheça pesquisadores baianos vencedores no Prêmio Capes de Tese 2022

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  • Thais Borges

Publicado em 28 de agosto de 2022 às 11:00

- Atualizado há um ano

. Crédito: Foto: Marina Silva

De um sistema totalmente novo para diagnóstico do vírus da covid-19 (e, eventualmente, de outras doenças) a uma nova abordagem da literatura produzida por escritoras mulheres negras sapatão. De uma descoberta que pode mudar as políticas públicas de saúde para reduzir a mortalidade materna até um estudo histórico que também é um alerta sobre o futuro da mobilidade em Salvador. 

O que esses temas tão diversos têm em comum? Todos estão entre as melhores produções científicas do Brasil em 2022, em suas respectivas áreas. São as quatro teses baianas que figuram entre os selecionados para o Prêmio Capes de Tese 2022, incluindo duas que receberam o prêmio principal e duas com menções honrosas. 

Divulgado este mês, o prêmio escolheu as melhores teses de 49 áreas do conhecimento entre pouco mais de 1,2 mil inscritos. As teses são produzidas após quatro anos de pesquisa em um doutorado. Ou seja: são o resultado de uma investigação original desenvolvida por cientistas que, após a ‘defesa’ delas, vão receber o título de doutor ou doutora. 

Criada em 2005 e entregue pela primeira vez em 2006, a premiação tem os seguintes critérios: originalidade do trabalho, relevância para o desenvolvimento científico, tecnológico, cultural, social e de inovação e o valor agregado pelo sistema educacional ao candidato. 

As quatro teses deste ano são da Universidade Federal da Bahia (Ufba), que lidera no Nordeste. Tradicionalmente comparadas à instituição baiana, as Universidade Federais de Pernambuco (UFPE) e do Ceará (UFC), tiveram três e uma tese premiadas, respectivamente. O primeiro lugar foi da Universidade de São Paulo (USP), com 35 vencedoras, entre prêmios principais e menções honrosas. 

Na avaliação do pró-reitor de pesquisa e pós-graduação da Ufba, Ronaldo Oliveira, trata-se do maior reconhecimento de que um doutorado foi bem conduzido.  “Tem tanto a fração que responde ao estudante que se tornou doutor ou doutora como tem a responsabilidade institucional que a universidade oferece para esse curso que está ali de forma gratuita e inclusiva”, diz, citando aspectos como a qualidade do corpo docente. Para o professor, é uma forma de reforçar que os pesquisadores que estão saindo dali estão prontos e a serviço da sociedade, no ponto de vista de produção de conhecimento. Ainda assim, ele reforça que as quatro teses são uma amostra da excelência da universidade. “Temos outras tantas teses com qualidade sendo produzidas na universidade. Claro que não dá para ganhar todos os prêmios Capes de tese em todas as áreas, porque tem ótimas competências nas universidades brasileiras, mas não deixa de ser uma amostra representativa”. 

A diversidade entre os premiados também reflete os programas - há desde os mais tradicionais, como o de Saúde Coletiva (que tem uma nota de avaliação que o equipara a programas internacionais), até programas mais jovens, como o de Biotecnologia, cujo doutorado foi criado em agosto de 2016. “Nossa formação é de qualidade entre todos os programas. Às vezes a gente acha que só programas com notas altas vão ter boas teses, mas está aí a prova de que temos produção de qualidade em todos”, acrescenta o pró-reitor.

A reportagem conversou com os pesquisadores responsáveis pelas quatro teses para saber o que torna uma tese vencedora. Confira a seguir. 

A tese que avaliou políticas públicas para identificar e reduzir o impacto na mortalidade materna

A primeira semente foi plantada há mais de dez anos, quando a psicóloga de formação Flávia Jôse Alves fez residência multiprofissional em saúde. Ali, começou a ter mais contato com questões de saúde das mulheres - e, mais especificamente, mortalidade materna. Naquela mesma época, o Ministério da Saúde começava a implementar a Rede Cegonha no Brasil, com o objetivo de criar uma rede de cuidados para atenção às gestantes e puérperas. 

Enquanto participava das reuniões de implantação, Flávia ia percebendo a vulnerabilidade das mulheres no momento do parto, assim como o caminho que percorriam até o momento de dar à luz. 

"Fui vendo as dificuldades que as mulheres enfrentam nessa atenção, vendo quem são as mulheres que mais morrem. A gente percebe questões de raça, porque as mulheres pretas estão em maior situação de mortalidade, e essas questões de acesso aos serviços sociais", explica, referindo-se ao trabalho de pesquisa desenvolvido ao longo dos quatro anos de doutorado no programa de pós-graduação em Saúde Coletiva do Instituto de Saúde Coletiva (ISC) da Ufba.  Flávia estudou os efeitos do Bolsa Família na redução da mortalidade materna (Foto: Marina Silva/CORREIO) A tese, defendida em agosto do ano passado, foi premiada este mês como a melhor do Brasil ao propor uma avaliação do efeito de intervenções de proteção social e de saúde na mortalidade materna entre as mulheres de baixa renda do Brasil. O trabalho, orientado pelo professor Maurício Barreto e coorientado pela professora Dandara Ramos, recebeu o Prêmio Capes de Tese 2022 na categoria Saúde Coletiva. 

Desde o mestrado em Saúde Comunitária, Flávia já vinha estudando políticas sociais e, mais especificamente, o programa Bolsa Família, que durou quase duas décadas até ser encerrado no final do ano passado. No ISC, uma das linhas de pesquisa mais tradicionais é a que estuda políticas públicas, participação social e saúde. 

Assim, o objetivo da tese era avaliar, prioritariamente, o impacto dessas políticas públicas na mortalidade. "A gente queria entender quais fatores estão influenciando a mortalidade materna e avaliamos o Bolsa Família, que é um programa de transferência de renda condicionada. Já vinha sendo colocado na literatura, de forma geral, que esses programas de transferência de renda condicionada têm impacto", conta. 

Isso porque, nesse tipo de programa, além do objetivo de redução da pobreza imediata, há desdobramentos na pobreza intergeracional. Nesse contexto, as condicionalidades de saúde e educação - no caso, as exigências para que uma família continue recebendo o auxílio - são importantes. 

As mulheres gestantes que eram beneficiárias do programa tinham que frequentar todas as consultas de pré-natal, por exemplo. São, no mínimo, seis. Da mesma forma, é preciso fazer o acompanhamento do desenvolvimento da criança. Todos esses fatores são considerados diretamente ligados à mortalidade materna. "A gente sabe que as mulheres mais expostas ao óbito materno, ou seja, as que têm maior probabilidade de morrer, são as mais pobres da população. São as que têm mais dificuldade de acesso aos serviços de saúde”. Uma das primeiras descobertas dela foi que os municípios com maior cobertura do programa a nível municipal têm menor taxa de mortalidade materna. Além disso, quando a cobertura do programa era mantida, sem cortes ou redução do alcance, também havia redução gradativa das taxas. 

Flávia trabalhou com uma coorte - um conjunto de pessoas que têm um evento em comum durante um mesmo período - feita pelo Centro de Integração de Dados e Conhecimentos para Saúde (Cidacs), da Fiocruz. O órgão é coordenado pelo orientador dela, Maurício Barreto, que é um dos pesquisadores com produtividade 1A da Ufba no CNPq. Nessa coorte, há mais de 100 milhões de pessoas, que é a população brasileira em situação de pobreza e extrema pobreza. 

Em seguida, ela selecionou uma coorte de mulheres com idades entre 10 e 49 anos que tiveram ao menos um filho nascido vivo entre 2004 e 2015. Ao fim, chegou a um universo de quase sete milhões de mulheres. "A nossa questão agora era: receber o programa diminui as chances de uma mulher morrer? A gente encontrou que as beneficiárias tinham 18% menos chance de morrer por causa materna do que as mulheres que não eram beneficiárias", diz. 

Para a pesquisadora, os resultados reforçam como as políticas sociais, ao longo do tempo, podem não apenas reduzir a desigualdade social, mas ter impactos na saúde. O trabalho é considerado original porque, ainda que trabalhe com dados de domínio público, ela usa também dados a nível individual. "Pensando no geral, busquei trazer respostas para a saúde pública. Nosso principal objetivo, além da ciência, é contribuir também com a perspectiva das políticas públicas e sociais". 

Apesar de saber da qualidade do trabalho, Flávia diz que o prêmio foi uma surpresa. Ela fez a inscrição a pedido da banca que a aprovou no doutorado. Para o orientador, o professor Maurício Barreto, a vitória de Flávia também é um reconhecimento para a linha de pesquisa, que há anos estuda o impacto das políticas sociais na saúde. “Flávia é uma estudante brilhante, muito esforçada, trabalhadora, inteligente e isso permitiu que ela fizesse um trabalho de grande relevância e importância”, diz. 

A coorientadora do trabalho, a professora Dandara Ramos, acredita que o trabalho de Flávia abre possibilidade para o uso dos dados administrativos. “Como a mortalidade materna ainda é o que a gente chama de evento raro em saúde, fazer um estudo primário, fazer coleta de dados com base em questionários e visita a hospitais levaria muito tempo e seria extremamente custoso. Flávia conseguiu fazer esse trabalho com dados já disponíveis e abre essa possibilidade para que estudos futuros possam usar essas mesmas bases de dados como o Cadastro Único”, avalia. 

A tese ainda não está disponível no site do repositório institucional da Ufba porque ainda aguardam que alguns artigos sejam publicados. 

Durante todo o doutorado, Flávia recebeu uma bolsa da Fapesb para que pudesse se dedicar exclusivamente à pesquisa. No mestrado, tinha recebido bolsa da Capes. Para ela, foi 'essencial' para que conseguisse se manter."Eu vim do interior da Bahia, de Itaetê, e não conseguiria sem outro tipo de recurso. A gente sabe que as bolsas precisam ser atualizadas, mas a pesquisa tem uma carga extenuante. Fazer ciência nesse período foi muito difícil pela pandemia e pelo cenário político". Em setembro, ela viaja para passar um ano nos Estados Unidos, na Universidade de Harvard. Lá, vai desenvolver a segunda parte de um pós-doutorado que já vem desenvolvendo no Cidacs, sobre a avaliação de políticas públicas na saúde mental de jovens no Brasil. 

A tese que propôs uma nova forma de diagnosticar o vírus da covid, com sistemas mais baratos e rápidos

Uma nova abordagem tecnológica que aplica conceitos das engenharias tradicionais à Biologia para produzir moléculas geneticamente modificadas. A partir daí, aplicar conceitos da biologia sintética em sistemas que permitem detectar o vírus Sars-cov-2, da covid-19, em larga escala e com custos muito menores. 

Essa é a proposta da tese de Filipe Sampaio, 32 anos, que venceu o Prêmio Capes de Tese 2022 na categoria Biotecnologia. Defendido em setembro do ano passado, o trabalho foi intitulado 'Implementação de princípios de biologia sintética para construção de sistemas genéticos avançados com aplicação biotecnológica'. 

O interesse pela área de engenharia genética veio ainda na graduação em Biotecnologia. "Com o tempo esse conceito começou a se modificar um pouco, até que surgiu o conceito da biologia sintética, que é uma nova área e traz conceitos de engenharia elétrica e engenharia da computação para a biologia", conta Filipe.      

Assim, veio a ideia de criar um circuito genético que funcionasse como circuito elétrico a partir de genes. Para completar, o pesquisador teve a oportunidade de fazer doutorado sanduíche na Harvard Medical School, nos Estados Unidos, onde trabalhou com um grupo que queria aplicar biologia sintética ao diagnóstico molecular. Através dos conceitos de engenharia de software, Filipe percebeu que seria possível usar as proteínas nos diagnóstico - elas seriam usadas ao invés de usar códigos binários. 

Quando chegou aos EUA, pouco antes da pandemia da covid-19, ele tinha ido trabalhar com zika vírus. No entanto, o projeto acabou sendo convertido em uma forma de detecção e diagnóstico do Sars-cov2. Foram usados elementos moleculares da engenharia de genomas para construir um sistema de diagnóstico do material genético do vírus em amostras de swab nasal. Esse sistema foi integrado a um processo de leitura e geração de resultados através de celular através de inteligência artificial. Filipe fez doutorado sanduíche na Harvard Medical School (Foto: Acervo pessoal) "Acredito que essas tecnologias desenvolvidas na tese têm muito potencial dentro da inovação biotecnológica da medicina nacional, uma vez que a gente importa muitos itens da saúde. Vimos, na pandemia, os países mais desenvolvidos como China e Estados Unidos investindo muito dinheiro para buscar novas terapias e medicamentos", analisa. Por isso, uma das aplicações desses sistemas seria justamente a criação de biofármacos nacionais, produzindo moléculas com caráter de suprir as necessidades do país. No caso dos diagnósticos, Filipe acredita que é possível aplicar na detecção de doenças comuns no contexto brasileiro, a exemplo da zika, da chikungunya e da influenza. Além de permitir diagnósticos mais baratos, seria possível testar em maiores escalas. Assim, a detecção poderia ser feita em outros lugares além de laboratórios centrais. 

Hoje, muitas cidades menores não têm laboratórios que fazem testes de doenças como a própria covid-19. Alguns vírus, inclusive, só são detectados nos chamados laboratórios de referência - a exemplo do Laboratório Central (Lacen). "No diagnóstico molecular, fala-se muito de PCR e de PCR em tempo real. Mas esses equipamentos, além de serem bem caros, têm custo de manutenção, de pessoal para operar. Precisa também de uma iniciativa de logística para tentar baratear esses testes, para que fiquem disponíveis. Hoje, mesmo com uma boa rede de logística, pode demorar até dois, três dias, até uma semana em alguns lugares e complicar o tratamento do paciente", explica. 

Foi a primeira vez que o Programa de Pós-Graduação em Biotecnologia recebeu a premiação. Fundado em 2010 com o mestrado, o programa só teve o curso de doutorado criado em agosto de 2016 - com a primeira turma sendo iniciada no ano seguinte. 

“Esse trabalho desenvolvido pelo nosso grupo, em colaboração com os americanos, foi uma das primeiras demonstrações na literatura científica do potencial de se integrar a tecnologia de edição genômica conhecida como CRISPR com os dispositivos de telefonia móvel, a fim de gerar sistemas diagnósticos descentralizados”, explica o orientador de Filipe, o professor Luis Pacheco, que atua nas áreas de biologia molecular e biologia sintética no Departamento de Biotecnologia da Ufba. 

Segundo ele, trata-se do primeiro prêmio na área em uma instituição das regiões Norte e Nordeste.“A área de Biotecnologia assumiu papel central durante a pandemia de COVID-19, por ser o campo científico responsável pelo rápido desenvolvimento de testes diagnósticos e vacinas. É muito interessante recebermos essa premiação nesse momento de protagonismo da área, pois isso destaca a qualidade do nosso trabalho realizado na Região Nordeste”, completa. A tese ainda não está disponível no repositório institucional da Ufba porque conta com uma patente, o que exige um período de um ano antes de ser disponibilizada. Alguns artigos que compõem o trabalho, porém, já foram publicados e podem ser conferidos. 

Filipe foi bolsista da Fapesb e, durante o doutorado sanduíche, recebeu uma bolsa do programa Capes Print, que é um projeto de internacionalização das universidades. Hoje, ele desenvolve um projeto de pós-doutorado na USP de São Carlos, trabalhando como métodos analíticos para desenvolver diagnósticos. 

"A biotecnologia na Ufba já é um curso bastante voltado para a parte científica, então, desde a graduação a gente já encarava a experiência com ciência e via como era importante fazer um estágio. O prêmio não é só do aluno, mas do programa também, porque essa área de biotecnologia é muito competitiva, com muitos grupos de excelência", acrescenta o pesquisador.  

A tese que traz o estudo dos afetos para a crítica literária

No começo, a pesquisadora Mayana Soares, 37, pensava em trabalhar com representações identitárias e literatura LGBT no doutorado. A partir das aulas e dos encontros com os grupos de pesquisa que faz parte, porém, as coisas mudaram. Aos poucos, se viu inclinada a estudar textos de escritoras negras sapatão até que, na qualificação - uma espécie de 'pré-banca', no meio do curso, quando o projeto é avaliado por professores que indicam se está no caminho certo -, sua orientadora fez uma provocação. Será que aquela não era uma tese literária sobre afetos? 

"Eu já estava falando sobre medo, sobre amor, sobre dengo e o erótico, através dos textos literários, sem me dar conta que tava teorizando sobre os afetos. Então esse caminho dos afetos na produção literária se mostrou um campo interessante, pouco explorado, e muito profícuo na pesquisa", explica ela, referindo-se a uma corrente teórica que começou a ganhar força na década de 1960 nas Humanidades, mas que ainda é recente na crítica literária. 

Foi assim que, aos poucos, começou a se delinear a tese Nós: afeto e literatura, que recebeu a menção honrosa no Prêmio Capes de Tese 2022 na categoria Linguística e Literatura. Afeto, aqui, não deve ser entendido como um sinônimo de amor ou carinho, como normalmente ocorre no senso comum. O estudo dos afetos vêm do verbo 'afetar'. Mayana trouxe o estudo dos afetos para a crítica literária (Foto: Acervo pessoal) "Trato sobre como nos afetamos e como os afetos da raiva, do medo e do amor nos afetam no sentido de manter uma certa ordem social, como herança colonial, que é racista, cissexista, heterossexual, machista e cristã. E trago essas reflexões a partir do que aprendi ao ler as escritoras negras", explica. Uma das surpresas dela foi ter se deparado com tantas produções literárias publicadas por escritoras negras sapatão. Para Mayana, há muita coisa boa aí que não recebe a devida visibilidade. Segundo a pesquisadora, trazer os afetos para a cena literária traz novas possibilidades para o campo tanto com o conteúdo quanto na forma. Por si só, a apresentação da tese de Mayana é diferente: não há uma preocupação em se manter dentro de 'caixinhas' das tradicionais normas da ABNT, a entidade que indica as regras de padronização técnica e científica no Brasil. 

Desde o começo, Mayana pensava em criar um trabalho acessível a qualquer pessoa que quisesse lê-lo - ainda que não seja alguém da área de Letras ou mesmo da academia. Pensou na mãe, uma senhora de 74 anos que estudou até o Ensino Médio. Seria possível que sua mãe compreendesse o que a filha tinha escrito? 

Para Mayana, todo esse investimento teve importância ética e política durante a pesquisa. Foi uma maneira de quebrar a lógica da escrita de tese inacessível, considerada colonial por ela."Há um mito sobre a 'objetividade' e 'neutralidade' na pesquisa e na escrita do texto, que mantém a 'universalidade' racista cismasculina capitalista que continua produzindo para si. Então, entendia que precisava quebrar isso", argumenta.Essas escolhas não tiveram resistência, por parte dos avaliadores. De acordo com Mayana, foi exatamente o contrário: sua orientadora, inclusive, foi uma das apoiadoras. "A maior dificuldade que tive foi de minha parte, porque fui treinada para seguir as regras sem questioná-las", revela.

Durante boa parte do doutorado, Mayana não teve nenhum tipo de auxílio. Desde a graduação, ela conciliava os estudos com trabalho para se manter. Mas, no segundo ano do doutorado, quase desistiu do curso porque estava desempregada. Depois, acabou conseguindo uma bolsa Fapesb e conseguiu se manter naquele ano. Já no penúltimo ano do doutorado, foi aprovada no concurso público para ser professora na Universidade Federal do Oeste da Bahia (Ufob) e encerrou o contrato com a bolsa. 

Desde então, ela trabalha como professora e pesquisa. "Produzimos muito em condições orçamentárias muito precárias. Isso demonstra o racismo geográfico que se quer esconder, para não desestabilizar a prática do 'bom mocismo' da esquerda branca nas práticas acadêmicas", critica. 

Para a orientadora de Mayana, a professora Denise Carrascosa, o trabalho de Mayana também movimenta um conceito de identidade. Ela defende que a pesquisadora fez uma cartografia contemporânea da obra das escritoras. "É um excelente arquivo, tanto no plano nacional quanto internacional, para as discussões da literatura ligada à questão da identidade - nesse caso específico, a identidade negra sapatão", conclui.

Leia a tese de Mayana aqui

A tese que é um alerta sobre o futuro da mobilidade em Salvador

Quando o pesquisador Marcelo de Troi, 47, apresentou sua tese de doutorado à banca, no programa de pós-graduação em Cultura e Sociedade, em novembro do ano passado, foi que a ficha começou a cair. Desde o começo da pesquisa, quatro anos antes, ele tinha uma noção de que era um trabalho inovador, mas só teve a certeza do alcance do projeto quando foi aprovado com distinção. 

Usava teorias que, até então, ninguém mais parecia ter aplicado dessa forma no Brasil. "Eram coisas aparentemente 'imisturáveis", lembra. O projeto era ambicioso: contar a história de quatro séculos de Salvador a partir da mobilidade. Marcelo queria mostrar que a mobilidade é multidisciplinar, atingindo diferentes aspectos da vida das pessoas. "Vou mostrando como a chegada das tecnologias, como o trem, o bonde, o automóvel, vão entrando em conflito com o próprio território de Salvador. Depois, descubro que toda a cidade está ligada ao movimento", diz, citando uma carroça que transitava pela cidade no século 19; as procissões marítimas, a figura da Mulher de Roxo, que andava pelo Centro, e o próprio Carnaval. O resultado gerou o trabalho ‘Salvador, cidade movente: corpos dissidentes, mobilidade e direito à cidade’, uma tese de 336 páginas que recebeu menção honrosa na categoria Interdisciplinar do Prêmio Capes de Tese 2022.  Em seu trabalho, Marcelo falou sobre como a história de Salvador está relacionada à mobilidade (Foto: Acervo pessoal) Durante a pesquisa, ele fez um doutorado sanduíche em Lisboa e percebeu mais formas de falar sobre mobilidade. Em um dado momento, tudo convergiu para o Centro de Salvador. "Durante quatro séculos, a cidade de Salvador era praticamente o centro antigo", explica. Assim, a pesquisa se debruça também sobre esse recorte da cidade. 

Salvador, de acordo com Marcelo, tem uma ligação com o mar desde seus primórdios. Começam, então, as disputas que se materializam com a roda e com o bonde, através de tentativas de desbancar um transporte histórico, que é o marítimo. "Eu definiria essa pesquisa como a história de Salvador a partir do modo como as pessoas se movimentam, mostrando que existe uma luta histórica a partir do modo como a gente se locomove", reflete. 

Para ele, o último capítulo dessa luta está para acontecer, com a construção da ponte Salvador-Itaparica. "Vai ser uma tragédia, porque vai significar a vitória da 'carrocracia', dos automóveis sobre o transporte marítimo", lamenta. 

Em seu trabalho, Marcelo ainda listou áreas de Salvador que podem ser inundadas até 2100. Entre elas, estão toda a costa da Cidade Baixa, inclusive toda a região do Bonfim."Minha tese é um alerta para as pessoas que fazem a gestão da cidade e que precisam criar formas de locomoção pública menos poluentes para sobreviver ao futuro, que não é nada bonito em relação às mudanças climáticas".  Hoje com um dos melhores trabalhos do Brasil, Marcelo conta que foi reprovado em cinco seleções de doutorado antes de entrar no Poscultura, ligado ao Instituto de Humanidades, Artes e Ciências (Ihac), uma das unidades da Ufba mais conhecidas por sua interdisciplinaridade. "O Ihac era perfeito para essa pesquisa. Era onde eu encontraria liberdade e não encontraria dificuldade com a barreira das caixas disciplinares", comemora. Todos os programas que tentou anteriormente eram no estilo 'tradicional', como um de Antropologia. 

Durante o doutorado, Marcelo não teve bolsa. Com exceção de um auxílio que recebeu durante nove meses no doutorado sanduíche pelo Capes Print, ao longo dos quatro anos, teve que trabalhar e não pôde ter dedicação exclusiva. Como jornalista de formação, fazia trabalhos de assessoria de imprensa e também trabalhou no restaurante de uma amiga. Trabalhava na cozinha e fazia pães. 

"Foi um processo bastante difícil, porque tive que estudar muito, passar muito tempo em arquivos. Ganhei uma hérnia de disco na lombar, porque tive que passar muito tempo estudando", conta. 

Atualmente, Marcelo trabalha como analista no Instituto de Pesquisa Multiplicidade e Mobilidade Urbana, uma startup que tem o objetivo de transformar cidades com pesquisas voltadas à redução de desigualdade e luta antirracista. 

"Nós concorremos com mais de 1200 trabalhos e você sabe que existe um privilégio para a produção acadêmica do Sudeste. Isso mostra que a Ufba é capaz de fazer pesquisa de qualidade e é uma das melhores do mundo, porque tem permitido a entrada de pessoas negras, indígenas, travestis", completa. 

Para o orientador de Marcelo, o professor Leandro Colling, o prêmio demonstra a qualidade da produção de conhecimento no Pós-cultura. “Pelo segundo ano consecutivo a Capes reconhece a qualidade das nossas teses, apesar de todos os cortes de verbas que atingiram a Ufba”, diz. Em 2021, outra tese do programa recebeu o prêmio Capes - a da pesquisadora Hannah Bellini, sobre a adesão de jovens ao Estado Islâmico. 

Leia a tese de Marcelo aqui