O senso crítico hiberna no futebol

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  • Gabriel Galo

Publicado em 31 de agosto de 2020 às 05:03

- Atualizado há um ano

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O grande negócio do futebol, hoje em dia, é a reclamação. É ela que suscita paixões e reações exageradas, movimentando a roda de comentários, impulsionando o engajamento, essa palavra mágica do mundo das redes sociais. Tome, então, polêmicas vazias, provocações espúrias e, cúmulo da incivilidade, imposição do pensamento individual ao outro.

Messi anuncia que não quer ficar no Barcelona logo depois da goleada vexatória sofrida pelo time catalão. De fato, apenas o anúncio, enquanto o resto é especulação. Põem-se, então, a horda a debater o inexistente. Vai o craque para o Machester City? Tome ódio para o time inglês. Pep Guardiola? Um qualquer que só ganha com time grande. Outros, mais exaltados, dizem que ou joga no argentino Newell’s Old Boy, time do coração, ou então é um mercenário. Tem também a linha de quem atribui uma certa falha de caráter por abandonar o time que defendeu por tantos anos em um momento tão delicado. Ninguém sabe exatamente o que ocorre por bastidores, mas para o julgamento basta convicção, segundo a nova cartilha brasileira.

Na Copa do Brasil, Vitória e Ceará fizeram um jogo extremamente movimentado e que teve um protagonista indesejado: o árbitro. Não é novidade no Brasil a baixíssima qualidade da arbitragem brasileira. E a pergunta surge: cadê o VAR? No fim de semana, o clássico entre Santos e Flamengo empaca no protocolo e o outro lado brada: pra que VAR? Vamos debater com afinco a melhoria da arbitragem e admitir que a forma de uso do VAR está equivocada? Qual o quê! Melhor é dar vida a teorias conspiratórias, em vez de lutar por aquilo que poderia dar uma luz de recuperação.

Na esteira do absurdo, narrador descreve conforme vê, e em vez de ser criticado com argumentos, vê-se alvo do ódio da massa, que quer promover boicote e abaixo-assinado para que seja, no jargão da nova era, cancelado. Para que senso crítico mesmo?

O abafamento do senso crítico se transforma invariavelmente em incivilidade. Dirigente tal, não satisfeito com o papelão da invasão ao campo de jogo e ameaças, consequentemente suspenso, emite nota esdrúxula, usando o mesmíssimo linguajar que buscava oferecer salvo conduto a execuções pelo Estado, dentro do ultrajante excludente de ilicitude: violenta emoção. Mas quem fala de interesses politiqueiros são outros.

A opinião diferente virou afronta pessoal. A experiência individual virou caminho da verdade única e inquestionável. Entenda-se, no entanto, o que é opinião. Racismo, homofobia, gordofobia, misoginia e ameaças, isso não é opinião: é crime. Ir contra a ciência e conceitos sedimentados de conhecimento para espalhar mentiras não é opinião: é ignorância. Ofender e impor o que outros devem fazer e pensar não é opinião: é falta de respeito e de caráter.

O diferente, neste âmbito, em vez de algo legítimo, virou agressão. A verdade, se em confronto com convicções pessoais, se torna teoria conspiratória. Num campo passional como o futebol, ou se fala bem do que é meu, ou são outros os interesses em jogo. Não há profissionalismo: apenas o clubismo e a devoção são aceitos. Só que tantos são os lados, que equilíbrio inexiste. Por isso se apela ao em-cima-do-murismo, que nada diz nem analisa. E quem cede a isso, uma hora verá o monstro da incivilidade bater à sua porta, porque quem concessão abre, oferece terreno para invasão da ira.

A realidade é tão dura, que o belo e lúdico hiberna. Para a fantasia retornar, precisa-se de liberdade para que não seja contaminada pela baba da derrocada civilizatória. Torço para que logo – certamente não durante a pandemia – a magia do futebol esteja de volta.

Gabriel Galo é escritor.