'O tráfico pode agir como uma milícia', dizem especialistas

Professores ouvidos pelo CORREIO explicam fenômeno

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  • Thais Borges

Publicado em 10 de abril de 2018 às 05:30

- Atualizado há um ano

É difícil ignorar a semelhança. Quando moradores passam a relatar que são extorquidos por traficantes – alguns pagam mensalidades de até R$ 1 mil para terem seus comércios ‘protegidos’ – é difícil não associar a situação do Vale das Pedrinhas e de seu entorno à rotina de tantas comunidades no Rio de Janeiro, vítimas das milícias. 

Essas organizações militares ou paramilitares controlam boa parte das favelas cariocas, sempre à base de cobranças ilegais e ameaça de violência. Para entender esse fenômeno – e um pouco do que tem acontecido aqui em Salvador -, o CORREIO conversou com dois especialistas em segurança pública separadamente. Os dois responderam às mesmas perguntas e ambos destacaram, em diversos momentos, um mesmo fator: a ausência do estado nesses locais. 

“A população, em geral, fica refém. O povo, na realidade, acha que a violência e a criminalidade se combatem só com a força de armas mas não é só isso”, diz o presidente da Comissão Especial de Assistência Prisional e Segurança Pública da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) – Seção Bahia, Marcos Melo, também professor de Direito Penal da Universidade Católica do Salvador. 

Tanto ele quanto o professor titular da Universidade Federal do Ceará (UFC) César Barreira, coordenador do Laboratório de Estudo da Violência (LEV), preferem não classificar o caso em Salvador como atuação de uma milícia, embora reconheçam aspectos em comum. “As milícias representam muito essa característica de ter resolução de forma ilegal. Não é uma coisa legítima por parte do estado. Eles usam de uma forma ilegal”, diz Barreira. 

Confira, abaixo, as entrevistas dos dois: 

O que configura, de fato, uma milícia? Marcos Melo (MM): A milícia é uma organização militar ou paramilitar. Isso ocorre há muito tempo e, no Rio de Janeiro, parece-me que a coisa está bem evidenciada. hoje, é uma coisa mais latente. Isso não quer dizer que não possa estar existindo aqui. Na realidade, essas milícias existem por causa da ausência do estado - estado que falo como nação. Essas organizações podem estar contra o tráfico e, na hora que o tráfico protege aquela localidade, não deixa de ser uma milícia. Nós chegamos a isso. São associações ou associados de práticas ilegais, grupos formados em comunidades de baixa renda. 

César Barreira (CB): Nesse sentido, a própria comunidade se organiza, usa de um serviço, uma ação não legal para exercer sua proteção. Há uma predominância de ex-policiais e também há essa função bem especifica de qual é o papel das milícias, que é resolver determinados delitos dentro do mundo do crime. As milícias representam muito essa característica de ter resolução de forma ilegal. Não é uma coisa legítima por parte do estado. Eles usam de uma forma ilegal. 

A situação no Vale das Pedrinhas poderia ser classificada como a atuação de uma milícia? CB: Acho que não é muito interessante a gente já classificar. A Sociologia bate muito nessa tecla. Às vezes, você classifica e termina unificando situações que não são uniformizadas. É muito mais rico descrever como existe a atuação de determinados grupos. Teríamos que saber mais sobre essa atuação para classificar como milícia. 

Mas (é como) as milícias, à medida que são utilizadas para a mesma finalidade, que seria, entre aspas, para proteger o comércio local. E é interessante porque vamos encontrar situações diferenciadas brasileiras mas que têm a finalidade do comércio. Seria também o que predomina na periferia - comércios protegidos por determinados grupos que fizessem essa questão de proteger e que não são policiais do estado. Nesse caso, pode ser formado por ex-policiais ou até mesmo por policiais em folga usando a questão de seus bicos. O importante de tudo isso é que é uma demonstração clara da ausência do estado. 

MM: Muitos comerciantes contratam policiais de folga para tomar conta dos comércios. Isso é uma espécie de milícia. Eles atuam contra traficantes e aí passam a intimidar, extorquir moradores, comerciantes, é tudo misturado. Ele se caracteriza pela intimação e a forma de extorquir moradores. 

O tráfico pode se tornar uma milícia? No Rio de Janeiro, há relatos de que milicianos passaram a vender drogas.  CB: Não conheço nenhuma situação, mas acho que essas diferenças são muito tênues. São tão tênues que o grande traficante está nos grandes bairros de Salvador à beira mar, nesses bairros mais nobres. O pequeno traficante, o aviãozinho, passa por ser milícia, porque é uma situação de insegurança do que é legal e ilegal. E, por isso, você pode passar de um lado para o outro sem grande problema. Todos os dois são resultados de vulnerabilidade. 

MM: Na realidade, a milícia é um câncer. A milícia serve para aumentar a violência e a criminalidade. O combate ao tráfico é um plano de fundo. Não me parece que dizer que está protegendo uma comunidade e depois extorqui-la cobrando taxa de segurança seja uma coisa benéfica. Isso é crime. 

(O tráfico) Pode sim se tornar uma milícia porque a milícia pode ser através de cidadãos que não militares. E por que não traficantes que já tem know how de armas e muitas coisas? Numa comunidade onde é o tráfico que manda ou que faz o papel do estado, toda a comunidade é refém de bandidos. 

De que maneira uma milícia é diferente do tráfico de drogas no local? Como é a postura diante dos moradores? CB: Para mim, a postura da milícia é eminentemente violenta. O tráfico de drogas não necessariamente (é violento) até para algumas situações como os pactos que ocorrem entre as facções é para evitar a violência. O que elas (as facções) querem é aumentar seu lucro. Um bairro que se torna violento e que por isso precisa de ação da polícia é negativo para o tráfico e os pactos ocorrem nessa hora. O tráfico de drogas pode prover determinados serviços sem usar a violência, como proteção de algumas escolas, fornecimento de gás. E nesses casos fica claro a ausência do estado. 

É por isso que quando falamos de política de segurança pública, ela precisa ser sempre acompanhada da presença do estado, da polícia, mas de políticas sociais acompanhadas. Temos dois casos claros no Brasil de como a ausência de políticas sociais levaram à violência como as UPPs (Unidades de Polícia Pacificadoras), que, em princípio, eram ocupações vitoriosas, e Pernambuco, que alguns anos atrás teve diminuição grande de homicídios nos primeiros anos. Logo em seguida, não foi acompanhado de políticas sociais e hoje está tendo um grande aumento de taxa de homicídios. 

MM: A milícia é uma organização militar ou paramilitar com as armas, tudo. Aquele combate ao tráfico tem um preço também - a extorsão ao comerciante, ao povo em geral, cobrando taxa de proteção. 

Quando há esses combates, a atuação da milícia gera muita violência em cadeia, operação que combate a milícia e vice-versa, prisões, mortes. A milícia atua de tudo que é jeito. A população, em geral, fica refém e o povo na realidade acha que a violência e a criminalidade se combatem só com a força de armas mas não é só isso. Enquanto o estado não se fizer presente nas comunidades carentes com políticas sociais, vai continuar igual. 

Como isso deve ser enfrentado pelo estado? É diferente do enfrentamento ao tráfico? CB: Todo esse combate que poderia ser feito às milícias pode ser transposto para a questão de facções. Tem que usar serviços de inteligência da polícia que vão possibilitar uma desarticulação das milícias. É a investigação, o uso da inteligência inclusive na questão da infiltração de determinados profissionais da área de segurança pública nessas situações. 

Se resolver com a violência vai gerar mais violência, mais mortes. Não é que não se deva usar a força da polícia, mas, antes disso, tem que usar uma situação articulada do uso de forças com inteligência e investigação. 

MM: Enquanto o estado não se organizar não só com a força mas com políticas sociais, a gente vai ficar velhinho discutindo a mesma coisa. Quando se discute a criminalidade, a primeira coisa que vem é o tráfico. Será que é só isso? Será que não há interesse econômico no tráfico? Não estou dizendo que é isso ou aquilo, mas uma coisa é certa: o combate ao tráfico não deu e não está dando certo.

Temos que pensar em outra forma e nossa discussão vai até a legalização porque o estado perdeu esse embate, faliu. Vamos mudar e pensar em outra forma de combater o tráfico porque essa a gente está perdendo. E perdendo feio, perdendo de 7 a 1.