Os dois pedaços de Guilherme: mãe luta na justiça pelo direito de enterrar o filho

Franciane recebeu restos mortais do rapaz, vítima de homofobia, em um saco, e não conseguiu enterrá-los junto ao restante do corpo

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  • Fernanda Santana

Publicado em 30 de julho de 2022 às 06:00

- Atualizado há um ano

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Um adeus está engasgado na garganta de Franciane de Souza, 45 anos, há um ano e oito meses. Duas vezes por mês, ela conversa sobre isso com um psicólogo. "É o lugar onde você fala o que mais dói”, explica. Nela, o que mais dói é uma história que começa de madrugada, na Rua Ibitiba, passa por uma sala de onde saiu com restos mortais do filho em um saco e continua no Cemitério Municipal de Luís Eduardo Magalhães, onde ele foi enterrado em dois caixões sem ela saber.  

As duas gavetas em que Guilherme foi sepultado, aos 21 anos, estão a 200 metros de distância. Na primeira, na ala de adultos, está o que Franciane acreditou se tratar de todo o corpo do filho, de quem achava ter se despedido em setembro de 2020. Na segunda, na ala das crianças, é onde o Estado diz ter colocado outra parte do cadáver, sem aviso à família, que desconhecia esse pedaço até o Instituto Médico Legal (IML) de Barreiras entregá-lo para a mãe.

A mãe luta judicialmente desde abril do ano passado para enterrar o corpo do filho em uma só lápide, para que agentes públicos sejam responsabilizados e cobra R$ 1 milhão de indenização ao Estado. Franciane já conhecia a brutalidade humana, mas nunca pensou que choraria por um filho morto a pedradas e pauladas e depois carbonizado, vítima de homofobia, e que ainda haveria mais a ser enfrentado. Em dois anos, até leite jorrou nos seios dela. 

A aspereza da vida aparece até nos números de uma lápide. A um andar de distância, um dos assassinos confessos de Guilherme, Kauan, foi enterrado. O primeiro (em parte) na gaveta 18. O segundo, 33. 

A brutalidade usada para matar, os erros institucionais que colocaram nas mãos de uma mãe o pedaço do corpo de um filho e o cotidiano da família Souza evidenciam o desrespeito aos direitos humanos que não cessa com a morte para população LGBTQIA+. Para ter uma vida funcional, Franciane, designer de sobrancelhas, toma ansiolíticos e antidepressivos. 

As supostas irregularidades do IML de Barreiras são investigadas pela Corregedoria do órgão desde o fim de 2020, ainda sem conclusões.

O ódio não permite concessões. Há crimes contra gays, lésbicas, bissexuais, travestis e transexuais deixados para esquecimento ou demora. O caso de Guilherme virou ação penal apresentada pelo Ministério Público da Bahia no fim de junho deste ano - quando um dos assassinos já tinha morrido. 

Na cidade onde Guilherme morreu, ao menos quatro crimes contra homens gays e uma mulher travesti ocorridos desde o início dos anos 2000 não foram solucionados. “Você acha que nas condições de trabalho do IML, da delegacia, vai haver interesse por uma travesti encontrada sem nome? Você acha que para o gay pobre, o poder público vai investigar?”, questiona José Marcelo de Oliveira, doutor em Ciências Sociais que pesquisa homofobia e transfobia.

Na semana em que a morte de Guilherme completou dois anos, Mateus, outro jovem gay, foi assassinado a pedradas, em Campo Formoso, no centro-norte baiano. Em 2022, são 146 pessoas LGBTQIA+ assassinadas – 14 delas na Bahia –, segundo o Grupo Gay da Bahia (GGB). A única coisa que restou de Guilherme, onde morava, é um boné branco e rosa e sua certidão de óbito. 

O pedaço esquecido: da morte à entrega Faz sol em Luís Eduardo Magalhães e Franciane, acompanhada da irmã Viviane, vai ao Cemitério Municipal pela segunda vez desde a morte do filho, no início de julho. A última visita tinha acontecido em janeiro de 2021, depois que, em uma troca de e-mails com o IML de Barreiras, ela e a advogada descobriram que o outro pedaço do corpo de Guilherme havia sido enterrado dois meses antes.

Desta vez, Franciane escolheu a blusa que sempre veste ao sair - uma estampada com o rosto de Guilherme. No cemitério, visitou as duas gavetas do filho, conversou com ele e lamentou, mais uma vez, a situação sem desfecho e o fato de um dos assassinos estar enterrado ao lado."As pessoas me olham e dizem: queria ser assim forte. Mas não sou forte. Se eu me largar, é capaz de eu morrer", diz Franciane.

No Centro de Referência da Assistência Social (CRAS), uma assistente social sugeriu a formação dela em curso para designer de sobrancelhas oferecido pelo espaço. Hoje, ela atende clientes no salão de beleza da irmã. "Nem sempre ela vem, tem crise de ansiedade ", conta Viviane.

Franciane mora com os filhos mais novos, Wesley, 7, e Maria Eduarda, 12, às vezes proibidos de saírem por medo da mãe. Ela própria passa até semanas sem pisar fora de casa. "A morte ficou", completa a irmã Viviane.  Franciane e os filhos: 'A morte ficou' (Foto: CORREIO) As duas são vizinhas de bairro, a seis quilômetros do Cemitério Municipal. Foi lá que Franciane, acompanhada do cunhado, desembarcou às 16h do dia 17 de novembro de 2020, com um saco preto. Dentro dele, estava um pedaço do filho morto quatro meses antes. 

Uma semana antes, Franciane recebeu a ligação que a levou até onde o filho, há dois meses, tinha sido enterrado. Do outro lado da linha, uma funcionária do IML de Barreiras, segundo Franciane, disse: “O fêmur do seu filho está aqui para liberação”. Para ela, “fêmur” era um documento, por isso demorou de ir ao município vizinho, a 90 quilômetros.

Na recepção, descobriu que “fêmur” era uma parte do corpo do filho, retido para o DNA, o que engatilhou um surto em Franciane. 

Em posse de um pedaço de Guilherme, Franciane imaginou que poderia enterrá-lo junto ao restante do corpo. O Cemitério se negou. Se fizesse isso, cometeria o crime de violação cadavérica. O momento era um dos mais graves da pandemia da covid-19, com restrições de viagens e velórios. 

A negativa do cemitério a levou até a delegacia. Os policiais recolheram o fêmur, no dia 17 de novembro, com a promessa de que o devolveria ao IML. O órgão, então, sepultou  o material biológico (osso) em uma gaveta infantil passadas 48 horas. Franciane esperou mais dois meses para saber disso. “Com que direito enterraram? Nem soube do enterro do meu próprio filho”, reclama. O órgão afirma que teve respaldo judicial. 

Em uma troca de e-mails anexado ao processo movido por Franciane, o diretor do IML, em Salvador, escreveu que o dilema quanto ao destino de partes tiradas do corpo humano são “um problema enfrentado por hospitais e IMLs”. 

A Bahia possui 30 IMLs para 417 municípios, mas só um laboratório de genética, o de Salvador. Um médico legista que pediu anonimato explica que, quando um cadáver está extremamente comprometido (como em casos de carbonização), a saída pode ser extrair material genético da polpa dentária ou do fêmur. Ambos são ricos em células."Mas o resultado pode demorar muito, meses até. Depende da quantidade de trabalho e da expertise do perito", explica. 

No Brasil, não existe legislação sobre a destinação de pedaços retirados para o DNA. No IML da capital baiana, eles podem ser incinerados em tonéis especiais. Se essa peça for entregue, a família precisa de ordem judicial para juntar os restos mortais. Há três anos, em Cravinhos, interior paulista, Itaberli Lozano, homem gay, foi assassinado pela mãe e o padrasto. O IML demorou sete meses para liberar o corpo para o enterro.

O Supremo Tribunal Federal (STF) entende como abuso de direito a indevida retenção de restos mortais. O que baseia essa compreensão é que a inércia na liberação de um corpo fere a dignidade da pessoa humana, embora não haja prazo legal para a conclusão da identificação. 

Franciane preferia não saber que uma parte do seu filho aguardava no IML. "Se fosse para descartar, não me contassem". Em nota, a Coordenação de Administração Funerária e Atendimento à Família Enlutada de Luís Eduardo Magalhães explicou que cumpriu os procedimentos legais vigentes e continua atenta ao "desenrolar dos fatos jurídicos pertinentes ao caso”. 

O Departamento de Polícia Técnica (DPT) da Bahia, que coordena as atividades dos IMLs, não respondeu às solicitações feitas pela reportagem. A primeira delas foi enviada há um mês. 'Achamos um corpo e disseram que morava aqui' Passava das 9h do dia 13 de julho de 2020 quando dois policiais bateram à porta de Franciane. Como não gosta de visitas surpresas, ela ignorou.

Mas as batidas seguiram e um aviso veio: “É da polícia”. Nervosa, levantou da cama e atendeu. Ela lembra detalhes da conversa, pois ninguém esqueceria um dia como aquele.

- ‘Achamos um corpo ali e disseram que ele morava aqui’

Na noite passada, Guilherme avisou que dormiria na casa da tia Viviane, então deveria haver algum erro. Mas não havia. Um policial sentou no sofá, outro em uma cadeira. Pediram documentos, Franciane os entregou. Ela insistia que o morto não era seu. 

A contragosto dela, um dos agentes mostrou um frame de um vídeo da cena do crime. Nas imagens, o que restou de um corpo. A única parte não carbonizada era a canela e o pé esquerdo, calçado por uma sandália que Franciane reconheceu – foi um presente dela. A limpeza dos dedos também dissipou dúvidas – Guilherme era aficionado por higiene. Era ele o jovem assassinado.

A liberação do corpo, necropsiado no IML de Barreiras, aconteceu dois meses depois, devido à demora para a conclusão do exame de DNA, em Salvador. Para que o cadáver fosse enterrado antes da entrega do osso retido, Franciane também precisou de decisão judicial. Para bancar o auxílio jurídico, ela teve ajuda de familiares e amigos. 

Guilherme foi assassinado por dois adolescentes - um de 16, outro de 14 - que o agrediram a pedradas e pauladas em frente a uma bodega e queimaram o corpo morto. Havia gente no estabelecimento, mas ninguém deu socorro. A Polícia Civil apontou a homofobia como motivação.

Um dos assassinos foi levado a uma unidade de internação, mas morreu baleado na mesma Rua Ibitiba onde matou, no mês seguinte. É Kauan, enterrado ao lado de Guilherme. Antes de morrer, ele depôs: "[Matei por] não gostar de homossexuais". O outro assassino está foragido. 

No Brasil, a homofobia é equiparada ao crime de racismo desde 13 de junho de 2019. Por definição, é um crime de ódio cometido contra uma pessoa homossexual e a pena prevista é de até cinco anos. Desde o assassinato de Guilherme, ao menos 28 pessoas gays foram assassinadas na Bahia, segundo o Grupo Gay da Bahia (GGB), que produz relatórios sobre crimes contra LGBTQIA+. 

Todas as vezes em que a violência contra uma pessoa gay apresenta crueldade, José Marcelo de Oliveira, desconfia de homofobia. Doutor em Ciências Sociais pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN), o professor e graduado em Direito estuda os traços da violência na homofobia. 

“Pedradas, queimar, arrancar o pênis ou outra parte do corpo. Por exemplo, arrancar a língua de uma pessoa é simbólico – porque a língua fala. Cortar os dedos – ligados ao toque. O criminoso mostra que não faz questão daquela vida”, explica.

Das pessoas gays assassinadas desde 2020 na Bahia, nove foram mortas por múltiplos disparos, seis a facadas, uma a pauladas/pedradas (Guilherme) e duas esquartejadas. Para Marcelo, onde e como os crimes são cometidos mostra que é preciso discutir a vulnerabilidade social das vítimas.

"A violência tem múltiplas causas. Se a gente discutir o problema para além da homofobia em si, podemos reduzir mortes diretamente". Um exemplo disso é o desemprego, que atinge 40% das pessoas LGBTQIA+, calcula a Aliança Nacional LGBTQIA+. Era o caso de Guilherme. 

Sem respostas para os crimes Todos os dias, desde 2017, José Marcelo de Oliveira pesquisa 18 palavras chaves no Google para mapear mortes por homofobia ou transfobia. As reportagens são arquivadas online – agrupadas, originam o levantamento anual do GGB, assinado por Oliveira.  A realidade da homofobia é sombreada pela falta de estatísticas, amenizada pelo esforço de organizações independentes.

No Brasil, a homofobia é equiparada ao tipo penal do racismo desde junho de 2019 e, como tal, é tida como um crime de ódio contra uma pessoa homossexual. Nos tribunais de execução penal, há desconhecimento quanto aos casos de homofobia tipificados como racismo, que pode incorrer em uma pena de cinco anos. 

O Estado não tem capacidade técnica para responder quantas e quem são os assassinados pelo ódio. O Processo Judicial Eletrônico, por exemplo, não possui campos que permitam verificar a quantidade de pessoas gays mortas – a regra vale para pessoas transexuais e travestis – nem quantos criminosos são investigados. 

Em 2021, aconteceram na Bahia 1342 tribunais do Júri, que tratam de casos de homicídio e tentativa de homicídio. Quantos foram contra pessoas LGBTQIA+, ninguém parece saber - ou informar. A dificuldade de acesso a informações fidedignas sobre as vítimas da homofobia começa nos registros policiais.“Os técnicos precisam ser preparados para registrar. Se você pegar os boletins do DPT, policiais, há muitos itens sem identificação. Isso pode gerar confusão ou impossibilidade na hora de julgar”, afirma Marcelo.

No ano passado, a Polícia Civil solicitou que no Programa Policial Eletrônico (PPE) constasse o termo “homofobia” na aba de possíveis motivações de um crime de racismo. Entre janeiro de 2019 e dezembro de 2021, foram 558 casos de violência contra população LGBTQIA+ registrados pela PC - nenhum deles, no entanto, cita “racismo”, mas “injúria”, “ameaça”, “importunação” e “lesão corporal”. 

A reportagem tentou contato com o delegado de Luís Eduardo Magalhães, mas uma servidora informou que ele está de férias. O substituto não atendeu às chamadas.  “Tudo em relação à população LGBTQIA+ foge do senso comum. Sempre há reticências. E acredito que não haverá mudança tão cedo, o legislativo nunca legisla a favor”, comenta o juiz Mario Caymmi, presidente da Comissão LGBTQIA+ do Tribunal de Justiça baiano.

O grupo foca em ações para a instituição. As dificuldades e possíveis erros no enterro comprometem e prolongam o luto, compreendido como os processos de elaboração psíquica sobre a perda. "É um desligamento de vínculo e esse desligamento vem de formar gradual", explica a Mestre em Psicologia Mônica Venâncio, coordenadora técnica do ambulatório do Luto do Hospital das Clínicas, em Salvador.

Mortes violentas e inesperadas, por exemplo, podem gerar um luto ainda mais traumático e engatilhar transtornos de ansiedade, depressão, insônia e implicações na vida social.

A perda costuma ser acompanhada do sentimento de dúvida e culpa. "O que vejo nesta situação [de Franciane e Guilherme] é que várias situações servirão como agravantes dessa dúvida. Psiquicamente, ela não pôde fazer o funeral. Aí surge a outra questão, será que enterraram mesmo? O luto é gradual, mas nesse caso há vários empecilhos. É como se ela não conseguisse elaborar e sempre ficasse nesse momento inicial". 

Marcado para morrer Franciane desembarcou em Luís Eduardo Magalhães aos 12 anos, vinda de uma área rural de Xique-Xique, também no oeste baiano. Ela deixou a roça e os avós em 1992 para viver com a mãe, contratada como empregada doméstica na então Mimoso do Oeste. Mudou-se para estudar, mas abandonou o colégio aos 14, para trabalhar em uma propriedade agrícola. 

Luís Eduardo Magalhães era um distrito e os empregos estavam nas fazendas ou nas casas de famílias. Em junho de 1990, pouco antes de Franciane desembarcar por lá, capangas de políticos impediram, aos tapas e chicotadas, pessoas gays de realizarem o que seria uma parada do Orgulho LGBTQIA+. Eles invadiram a festa montados a cavalos.

A região ganhava ares de fronteira agrícola, onde a presença de caminhoneiros é constante. Depois de pedir demissão, Franciane recorreu às rodovias onde esses motoristas pernoitavam para trabalhar. Aos 16 anos, se faltava comida, vendia o próprio corpo. Aos 19, a barriga espichou. Era o primeiro filho. O pai, "um namoradinho caminhoneiro" que não constava no registro civil do menino.

Na cidade, 429 crianças foram registradas sem o nome do pai desde 2016, quando a Associação de Registradores de Pessoas Naturais (Arpen) passou a quantificar os  "pais ausentes". Na Bahia, foram 64.826.  

Guilherme nasceu no dia 14 de dezembro de 1998. A mãe pariu sozinha no Hospital Eurico Dutra, em Barreiras. Como não teve acesso ao pré-natal, descobriu que o filho, quando nasceu, contraiu sífilis dela. Segundo o Fundo das Nações Unidas para a Infância (Unicef), 30% das grávidas brasileiras não são acompanhadas, o que prejudica o diagnóstico precoce de doenças.

A mãe e o bebê foram imediatamente separados. Guilherme teve alta com um ano de idade, período em que Franciane dependeu de caronas para visitá-lo em Barreiras. Uma vez, foi agredida por um caminhoneiro. Outra, expulsa pelo motorista do ônibus, por não ter dinheiro para a condução. Nessa época, repetia a trajetória da mãe como trabalhadora doméstica.“Guilherme era um menino que, não sei, acho que era marcado para morrer. Nasceu com uma sina de sofrimento”. 

De alta, Guilherme ia ao médico com frequência. Abandonou a escola no sexto ano, um a menos que Franciane. Na vida, eram ele, a mãe e a avó Dora, falecida há três anos. Quando completou 5 anos, Guilherme se despediu da mãe, que foi a Brasília trabalhar como empregada doméstica, mas voltou para buscá-lo.

Os anos no centro-oeste brasileiro foram de violência. O novo companheiro agredia a ela e o filho. “Era um homem bom, mas as drogas destruíram ele”. Com ele, Franciane teve mais dois filhos, Erick e Márcio. Este faleceu há cinco meses. Vítima de um acidente de trânsito na capital federal, esperou três horas por socorro e um dia inteiro por uma vaga hospitalar. 

Depois de dez anos em Brasília, ela voltou para LEM com os garotos, mas retornou à antiga casa para buscar os pertences. Nesse intervalo, o ex-marido veio à Bahia no rastro deles e levou os dois filhos consigo. Quando Franciane voltou, era tarde. Por anos, não conseguiu localizá-los.

Guilherme já estava crescido, mas não encontrou emprego. Fazia bicos como diarista ou passava horas faxinando a residência. Quando a mãe lhe deu mais dois irmãos, passou a cuidar deles com o zelo de um pai que não conheceu – no futuro, o irmão Wesley choraria pela ausência dele.

Nos fins de tarde, o jovem enchia um copo de café e ficava na calçada com vizinhos. Idosos o adoravam - viam nele alguém disposto a ouvir. 

Em Luís Eduardo Magalhães, 'Parada Gay' foi impedida com agressão Luís Eduardo Magalhães fica à margem direita do Rio São Francisco e faz fronteira com Tocantins e Goiás. Até os anos 80, era um território esquecido. A composição química do solo aniquilava as plantações. A história da cidade começou a ser traçada nos anos 70, depois de uma pesquisa realizada em Brasília. O estudo mostrou que as terras do Cerrado, na verdade, eram boas,  bastava neutralizá-las com calcário dolomítico, encontrado nas proximidades.

Produtores agrícolas em busca de terras disponíveis viram em Luís Eduardo Magalhães uma oportunidade. Na década seguinte, protagonizaram a “corrida para o Oeste” - entre os novos residentes, a maioria gaúcha que tinha participado da pesquisa.

A região ganhou o nome de Mimoso do Oeste, microssomo do que se tornaria o município reconhecido em 2000, que cresceria ancorada no agronegócio. Hoje, é a sexta cidade mais rica da Bahia, com 87,5 mil habitantes, estima o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE).“Todo o contexto social local é ligado ao trabalho agrícola, ao agronegócio. Quem foi para lá foi buscar a grande oportunidade”, explica Ignez Garcia, historiadora.

O Oeste da Bahia é um dos "territórios prioritários de atuação" para a coordenadoria LGBTQIA+ da Secretaria de Justiça, Direitos Humanos e Desenvolvimento Social da Bahia. "Temos dificuldade de entrar e fortalecer essa rede. Os locais são escolhidos a partir dos relatórios de atendimento e vemos que 70% dos nossos atendimentos são na Região Metropolitana de Salvador", afirma o coordenador Kaio Macedo. 

Desde de 2018, foram atendidas 5570 pessoas LGBTQIA+ pelo Centro de Promoção e Defesa dos direitos da População LGBT - só três do oeste baiano."A palavra é ausência. Nesse processo de inexistência de seguridade da população, as pessoas que poderiam nos representar ou está nessas trincheiras são acuadas", opina Hudson Alves, 33, produtor cultural e coordenador municipal, em Barreiras, da Associação Brasileira de Gays, Lésbicas e Transexuais. 

Hudson é amigo de um homem gay assassinado nos anos 90. O crime nunca foi solucionado. Ainda viu serem assassinados um bancário (que teve o corpo carbonizado), Sabrina (travesti assassinada a facadas) e, por último, Guilherme. "O grande problema é [as instituições] irem atrás de respostas. Há famílias que escondem, sentem vergonha".  

Em 2008, Hudson teve mais provas do acovardamento resultante do medo. Coordenador territorial da primeira Conferência Nacional LGBT, buscou quem pudessem participar de debates. "As pessoas não queriam, para que não soubessem que elas eram gays". Desde então, ele não vê mudanças. O Grupo Gay do Oeste da Bahia, por exemplo, desativou sua atuação por lá. 

Embora os estudos relacionados às vivências da diversidade sexual e de gênero ainda sejam escassos, o pesquisador Elder Luan mostra possíveis interpretações para as correlações entre a homofobia e transfobia em contextos predominantemente agrícolas - cada espaço, claro, terá sua própria realidade.

"De forma geral, dá para a gente falar que há um padrão de masculinidade ainda mais rígido nesses espaços, uma repressão vinda de comportamentos conservadores e os padrões rurais, sem estereotipá-los, costumam ser mais conservadores", explica o historiador e doutorando em Estudos de Gênero pela Universidade Federal da Bahia.

Nas eleições presidenciais de 2018, das 33,5 mil pessoas que votaram no segundo turno em Luís Eduardo Magalhães, 62% escolheram o presidente Jair Bolsonaro (PL), candidato de extrema direita alinhado a pautas conservadoras."É mais fácil que pessoas sejam silenciadas em lugares onde não há rede de apoio. Nas capitais, essa proliferação de identidades é mais potente, há espaços que questionam questões de gênero", completa Elder. 

Guilherme também não se sentia confortável para ser – o entorno forçava o silêncio. “Ele sempre se calou. Eu insistia, falava. Ali era meu confidente”, recorda Franciane, entre a saudade e a revolta. 

Há duas semanas, Viviane, a tia de Guilherme, encomendou peças de mármore para as gavetas onde estão enterrados a mãe e do sobrinho. Quer dar um nome a eles. A mensagem na lápide de Guilherme será a última postagem dele em uma rede social: "Ame os seus inimigos, faça o bem àqueles que te odeiam, abençoe aqueles que te amaldiçoam, reze por quem te maltrata. Se alguém te bater no rosto, ofereça a outra face".