'Passei a noite com meu colchão na porta do barraco', diz moradora de casa demolida

Notificação para a Conder sobre decisão judicial que impedia a demolição só chegou um dia depois da ação

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  • Bruno Wendel

Publicado em 30 de janeiro de 2019 às 05:30

- Atualizado há um ano

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. por Marina Silva/CORREIO

Neide Cristina Pereira da Silva, 47 anos, poderia não ter dormido num colchonete debaixo de chuva, em frente ao barraco que construiu há um ano para poder ter um teto. Na manhã desta terça-feira (29), sentada numa cadeira de plástico, ela fixava o olho no que restou: o rastro do trator no lugar da casa. O drama dela e das famílias que viviam em 400 barracos no final de linha de Massaranduba, na Cidade Baixa, poderia ter sido evitado se a notificação judicial impedindo a demolição das construções tivesse chegado a tempo à Conder, órgão ligado ao governo do estado.

Pode até ter sido por falta de aviso - como disse o Tribunal de Justiça da Bahia (TJ-BA). Mas não foi por falta de informação. No final do expediente de sexta-feira (25), a desembargadora Carmem Lúcia Santos Pinheiro atendeu pedido da Defensoria Pública do Estado (DPE) e suspendeu a reintegração de posse da Conder, que pretende construir casas no local para 174 famílias já cadastradas - mas não necessariamente para quem já vive lá. 

A decisão foi publicada no Diário da Justiça Eletrônico (DJE) de segunda-feira (25), mesmo dia em que a demolição começou, mas já podia ser acessada desta a sexta. Já a notificação, entregue por um oficial de Justiça, só foi feita nesta terça (29), segundo o próprio TJ-BA. A Conder não respondeu ao CORREIO se recebeu ou nõa a notificação. Mas a demolição, mesmo contrária à decisão judicial, continuou na manhã desta terça-feira.

O TJ-BA diz que, pelo fato de a notificação só ter sido entregue ontem, não houve descumprimento da ordem judicial por parte do órgão estadual. Em outras palavras, uma questão burocrática fez com que cerca de 200 famílias ficassem sem moradia.

Dia e noite Sem ter para onde ir ao ver sua moradia ser destruída, Neide Cristina se juntou a outros desabrigados da operação e dormiu em um colchão, na rua. “Não tinha para onde ir. Sou sozinha. Construí meu barraco com muito suor. Trabalho dia e noite vendendo água na rua. Sem lugar para ficar, fiquei aqui mesmo. Passei a noite com meu colchão na porta do barraco”, desabafou."Aqui tem muito rato. Passaram direto. Sem falar que choveu à noite e estava frio. Tive que correr para ficar embaixo de um telhado. Quando tudo passou, já amanhecia", relatou a ambulante. Para amenizar a dor de quem perdeu o lar, alguns populares comovidos com a situação foram de carro até o local e levaram doações. "Tomei mingau e sopa. Me deram também uns vestidos e calças", contou Neide.

A desempregada Joseane Oliveira Pontes, 25, também dormiu do lado de fora com a filha de 3 anos. Elas tiveram que dividir o mesmo colchão: “Além de não ter para onde ir, a gente precisa garantir que as poucas coisas que conquistamos, como televisão, rádio, não sejam roubados. Demorei uns seis meses para levantar meu barraco. Sem trabalho, foi difícil conseguir telha e madeirite”, disse.

Já a merendeira Taíse Assis, 33, dormiu na casa de uma amiga. "Ela teve pena porque também já passou por isso, há cinco anos. Meu barraco era tudo pra mim. Tinha acabado de montar meu banheiro. Tinha vaso, chuveiro. Gastei R$ 300. Parece pouco, mas era muito pra mim", lamentou.

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A culpa é de quem? Segundo o especialista em direito administrativo Celso Castro, não há nenhum indício de irregularidade nas ações da Conder. Isso porque a empresa agiu enquanto não foi notificada pelo oficial de Justiça designado para informar à empresa da decisão judicial do TJ-BA. Celso Castro explica que esse período entre o dia em que a decisão foi expedida, na sexta-feira (25), e esta terça-feira (29), quando a empresa foi notificada, é "normal".“A Justiça não dispõe de uma ferramenta que notifique as partes imediatamente após a decisão ser expedida. Depois da decisão é preciso designar um oficial de Justiça e após isso é que ele vai até os responsáveis da empresa. Podemos dizer nesse caso que o processo demorou cerca de 24h, já que a decisão foi expedida no final do turno da sexta-feira. Então, não há indício de irregularidade”, apontou.Castro afirmou ainda que, apesar de legalmente não haver irregularidade, os moradores que ficaram prejudicados precisam acionar a Defensoria Pública para buscar o direito de obter um abrigo provisório. Em nota, a Defensoria Pública do Estado da Bahia (DPE-BA) afirmou que peticionou a Justiça para que notificasse a Conder acerca da suspensão da reintegração de posse. O órgão ainda afirmou que “continuará na defesa dos direitos dessas famílias e cobra do Poder Judiciário providências para que a Conder pare com a derrubada dos barracos até a decisão final”.

Acolhimento O TJ-BA informou que o Ministério Público Estadual (MP-BA) é quem deve ser procurado em caso de dúvidas. Procurado pelo CORREIO, o MP-BA afirmou que a promotora responsável pelo caso, Drª Grayce Campelo, não vai falar sobre o caso. Através da assessoria de comunicação, o órgão informou que vai instaurar um procedimento administrativo para acompanhar se a Conder e a Secretaria Municipal de Promoção Social e Combate à Pobreza (Semps) estão tomando as medidas necessárias para acolher as pessoas que tiveram seus imóveis demolidos. 

Segundo a Conder, desde o recebimento da notificação de reintegração de posse, que aconteceu entre os dias 9 e 10 de janeiro, a empresa vem prestando apoio logístico às famílias que até então ocupavam o terreno, através da disponibilização de caminhões para a retirada de móveis do local irregularmente ocupado. Cada família indica a destinação de seus pertences pessoais.

O órgão, entretanto, não falou sobre a decisão do dia 25, de não demolir os imóveis. Além disso, a Conder afirmou que não cabe ao Estado indenizar ou pagar um auxílio aluguel para as famílias prejudicadas com a desapropriação. Atualmente, 174 famílias estão cadastradas e recebem um auxílio moradia, benefício que vão receber mensalmente até o final da construção de um condomínio social que será erguido no mesmo lugar onde moravam outras pessoas.

A Semps afirmou que até o momento não foi notificada pela Conder para tomar providências e acompanhar as famílias desabrigadas. Confira a íntegra da nota da pasta: "Quando se trata de uma ação da Prefeitura que envolva desapropriação, o que não foi o caso, esse processo é feito de forma cautelosa, técnica e dialogando com as comunidades, sendo a Semps responsável por realizar previamente cadastro e a verificação da situação socioeconômica das famílias para encaminhamento aos serviços socioassitenciais”, diz nota.

Segurança Nesta terça-feira (29), quando os tratores deram continuidade à derrubada dos barracos, por volta das 8h, moradores questionaram a prepostos da Conder sobre o destino deles. "Tudo ainda é imprevisível. Faremos um estudo de cada família para ver qual o caminho a ser dado a cada uma", respondeu uma funcionária da Conder a uma das moradoras que teve o barraco derrubado. 

A Polícia Militar acompanhou toda a situação. Ao contrário de segunda-feira (28), não houve confusão. "Estamos aqui para garantir a segurança para o pessoal da Conder e das próprias famílias. Graças a Deus, até agora não houve problema", declarou o major Everton Monteiro, comandante da 17° Companhia Independente (Uruguai).

*Com a supervisão da editora Mariana Rios e do chefe de reportagem Jorge Gauthier