Passou em branco: por que embranquecem negros em filmes, novelas, propagandas e na história?

Personagens de filme, propaganda, novela e até símbolos sagrados: já reparou que (quase) todo mundo tem pele clara e cabelo liso?

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  • Victor Villarpando

Publicado em 27 de novembro de 2015 às 11:01

- Atualizado há um ano

Pense numa mãezona africana acolhedora, daquela que adora fartura, que teve e amamentou um bocado de filhos. Pensou? Agora me diga se ela parece mais com a cantora Virgínia Rodrigues, que fez a Beyoncé da Bahia no filme Ó Paí Ó, ou com a atriz paulista Paolla Oliveira, a vilã Melissa da novela Além do Tempo (Globo/TV Bahia).

Os artesãos que fazem as estátuas de Iemanjá do Mercado Modelo ficam com a segunda opção. Isso, vale lembrar, para retratar a mãe de grande parte dos orixás do candomblé, religião de matriz africana. Pelo visto, vendedores e consumidores também preferem a versão branca. Na última sexta-feira, Dia da Consciência Negra, o BAZAR visitou todas as lojas do ponto turístico. Das 24 que tinham estátuas de Iemanjá em louça ou cerâmica, sete  só apresentavam a versão com pele clara. Dos 65 tipos de estátuas da divindade encontradas, 39 eram brancas. Ou seja: 60%. O cabelo, independentemente da pele, era sempre liso escorrido. “As que mais vendem são as brancas. Há 34 anos eu trabalho aqui e é assim. Chegue dia dois de fevereiro que você não acha mais nenhuma”, conta Mário César, da Galeria Rocha Coelho.

A socióloga Paula Barreto explica: “As divindades vão sendo embranquecidas na medida em que se popularizam. Aconteceu também com Jesus Cristo, que nunca teria cabelo aloirado e olhos claros sendo um homem do Oriente Médio naquela época”, diz ela, que é professora da Ufba, coordenadora do grupo de pesquisa A cor da Bahia e do Grupo Nzinga de Capoeira Angola.

O INÍCIO

Para o pesquisador e cineasta Joel Zito Araújo, autor do documentário e do livro A Negação do Brasil - O Negro da Telenovela Brasileira, esse hábito de embranquecer negros chegou aqui de caravela. “É uma tendência histórica. Vem da colonização portuguesa, que tentou apagar o negro da sociedade brasileira pela miscigenação”, afirma Joel. Ou seja: a valorização da herança negra é feita com a tentativa de embranquecê-la. Assim, características negras são atreladas a traços brancos e vistas como mais positivas. “Em nível nacional, nós preferimos o tipo loira de olhos azuis, mas que têm características físicas atribuídas à mulher brasileira, como a bunda e as pernas torneadas”, explica o cineasta.

Daí a gente ver com normalidade estátuas de Iemanjás brancas com cabelos lisos e de Jesus Cristos com cara de alemão. “Há uma atitude de achar que o negro é sempre o outro, o diferente. Que o brasileiro comum é o branco”, pontua Joel. Por conta disso, o cinema e a televisão também não têm pudor de disfarçar figuras negras. E olhe que moramos num país em que 53% dos entrevistados pelo censo do IBGE em 2013 se autodeclaram pretos e pardos. 

Mas o fenômeno não é novidade, nem exclusividade nossa. “É um problema que se vê também fora do Brasil. O ideal de branquitude é mundial e as escolhas de atores brancos para personagens de etnias diferentes refletem isso. O filme Othello (1965), por exemplo, foi protagonizado por um branco”, aponta a socióloga. Ela se refere à mais famosa adaptação do livro de Shakespeare. Na tela, o personagem principal foi feito pelo ator inglês Laurence Olivier, que teve a cara pintada para parecer negro.

CONSEQUÊNCIAS

No que resulta a ampla veiculação dessas imagens? O impacto é direto na autoestima.  “Há uma falta de reconhecimento de grande parte das pessoas do Brasil com o que é considerado desejável”, afirma a socióloga. “Um grande contingente da população deu contribuições positivas para sociedade. É essencial para o bem estar e o exercício pleno da cidadania que haja reconhecimento”, explica ela. De acordo com a professora, temos a tendência de valorizar mais as expressões culturais europeias e norte-americanas. “Por outro lado, negar qualidade positiva às culturas africana, afrobrasileira e indígena nos faz depender de sermos valorizados pelos outros para nos sentirmos bem”, diz Paula. O prejuízo é para a cultura brasileira em geral. “Estaremos sempre lutando para sermos mais brancos e loiros e parecermos mais com o que nós não somos”, diz a socióloga.

Há, no entanto, cada vez mais movimentos buscando reconhecimento e empoderamento. Por exemplo, no último dia 7, em Salvador, rolou a Marcha do Orgulho Crespo. “Existem conquistas evidentes no século 21. As cotas nas universidades, a defesa de terras quilombolas... Ser negro deixou de ser só desvantagem e uma nova geração é fruto dessas conquistas”, observa Joel. Enquanto as coisas não mudam, veja alguns casos de embranquecimento de personagens apontados pelos entrevistados.Iemanjá comprada no Mercado Modelo (Foto: Angeluci Figueiredo) Uma divindade de origem africana teria mesmo essa carinha de portuguesa? Na maior parte do Mercado Modelo, sim.Jesus Cristo no filme Jesus de Nazaré (1977) (Divulgação) Um homem pobre que vivia no Oriente Médio há dois mil anos pareceria mesmo tão alemão? “Jesus Cristo nunca teria cabelo aloirado e olhos claros”, afirma a socióloga Paula Barreto. Pelo visto, a representação dele por um ator negro na comédia O Auto da Compadecida é bem mais factível do que a dos populares A Paixão de Cristo (2004) e Jesus de Nazaré (1977), na foto.Beyoncé em campanha da L´Oréal na revista Elle dos EUA em 20015Em 2011, a marca de cosméticos L’Oréal publicou, na revista Elle dos EUA, uma propaganda com a cantora superpálida e loira. A empresa nega que tenha usado Photoshop para clarear a diva. No mesmo ano, a Caixa Econômica Federal veiculou uma versão esbranquiçada do escritor Machado de Assis numa propaganda.Foto do cartaz da peça de teatro Dona FlorNo livro de Jorge Amado, a pele da protagonista foi descrita como “acobreada” e “morena”. Na peça de teatro adaptada por Marcelo Farias, ela foi vivida pelas atrizes Carol Castro e Fernanda Paes Leme. “As mulheres de Amado costumam ser feitas por atrizes brancas”, afirma o cineasta Joel Zito.Na novela Os Dez Mandamentos, o ator Sérgio Marone vive o faraó Ramsés Dos 55 atores da novela que se passa na África (Egito), 53 têm pele clara. O ator Sérgio Marone, que vive o faraó Ramsés, é um deles. Mas a Record não é a única. Desde 1960, atrizes brancas, como Lyz Taylor e Sophia Loren, protagonizam filmes de Cleópatra.Chiquinha Gonzaga, vivida por Regina Duarte e, posteriormente, pela filha dela, Gabriela DuarteA pianista e compositora negra misturou sonoridades da senzala com o mundo clássico. Na TV, foi interpretada por Regina Duarte e Gabriela Duarte. “Brancas fazerem Chiquinha Gonzaga mostra o embranquecimento de figuras históricas”, diz Joel Zito.