Patrimônio cultural de Salvador, samba junino ganha edital próprio

Edital vai contemplar propostas de salvaguarda dessa expressão cultural genuinamente soteropolitana

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  • Da Redação

Publicado em 20 de fevereiro de 2018 às 06:25

- Atualizado há um ano

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Assim que acaba o Carnaval, começa a contagem regressiva para o São João. Há quem pense que é hora de dar tréguas às pernas cansadas de pular atrás do trio, para começar a dançar um dois pra lá, dois pra cá mais sossegado ao som da sanfona, zabumba e triângulo. Mas quem acredita nisso talvez não conheça o samba junino, tradição genuinamente soteropolitana, reconhecida no início deste mês como patrimônio cultural da cidade e que nesta terça-feira (20) ganha um edital para chamar de seu.

Lançado pela Fundação Gregório de Mattos, o prêmio Samba Junino visa contemplar seis propostas que incentivem o fortalecimento, a manutenção e dinamização do samba junino no município de Salvador, apoiando ainda a realização de ensaios, festivais, concursos, apresentações, “arrastões”, entre outros eventos, no período junino, através de um aporte financeiro no valor de R$ 30 mil para cada projeto selecionado (confira edital completo aqui). A cerimônia de lançamento acontece logo mais, às 17h, no Espaço Cultural da Barroquinha. (Foto: Arquivo CORREIO) A ideia é movimentar os grupos responsáveis pela manutenção da tradição antes da Semana Santa, quando bairros como Engenho Velho de Brotas e da Federação, Fazenda Garcia, Tororó, Nordeste de Amaralina e Liberdade começam a entrar no ritmo do samba junino. 

"Sou da Liberdade, um dos bairros-base desse movimento de samba junino, então, ainda muito pequeno acompanhei os grupos que desfilavam por ali, como Samba Regionais, Samba Natureza, Arte de Negro, Prego Duro (este da Fazenda Grande) e outros. Adorava! Havia uma integração comunitária maravilhosa. Não era apenas o lance musical. Depois o movimento passou por um declínio, quando eu já era adolescente, e parecia que tudo iria se acabar", diz o poeta James Martins sobre a tradição que já dura mais de quatro décadas.

Segundo ele, o samba junino voltou a se fortalecer no bairro nos últimos anos, inclusive com a criação de novos grupos. "Creio que dessa energia muita coisa se venha a regenerar na cidade do Salvador, inclusive o Carnaval. Porque, embora muita gente pareça ignorar, há muito mais entre o Carnaval e o São João em Salvador do que julga nossa vã indústria cultural", arremata.

Para o percussionista Jorjão Bafafé, o samba junino vai além de um gênero musical e se configura mesmo como um movimento cultural nascido nas pereferias de Salvador. Cria do Engenho Velho de Brotas, Bafafé viu o samba junino (ou samba duro, como também é conhecido) nascer, liderou o grupo União e foi responsável por festivais dedicados a essa manifestação cultural no final da década de 70. Hoje dirige a Federação de Samba Duro Junino do Estado da Bahia (FSDJ), fundada em agosto de 2000. "Nosso São João não é feito com sanfona, é feito com tambor", exalta. 

São os instrumentos percussivos, como o timbal, o tamborim e o surdo, que marcam o ritmo acelerado do samba junino."Hoje alguns grupos já inserem o pandeiro, instrumentos de corda, mas o que caracteriza mesmo a sonoridade é a percussão, as letras com refrões fáceis para serem cantados em coro", ressalta a gerente de Patrimônio Cultural da Fundação Gregório de Mattos, Magnair Barbosa, responsável pela pesquisa exigida para o reconhecimento da manifestação como patrimônio cultural.  (Foto: Arquivo CORREIO) O samba junino surgiu em torno dos terreiros de candomblé de Salvador, iniciando suas manifestações nas queimas de Judas e encerrando no Dois de Julho, inclusive na sequência das rezas direcionadas aos santos juninos – Santo Antônio, São João e São Pedro."Os grupos de samba duro costumam percorrer as casas da vizinhança ou mesmo ir a bairros próximos levando sua música, sendo recebidos com comida e bebidas típicas do período junino. Além disso, eles sempre estão vestidos com roupas floridas, chapéus de palha, camisas personalizadas e, além de atuarem durante as festas, fazem ensaios, arrastões e concursos de rainha", destaca Barbosa. 

Por conta dessa riqueza, há pelo menos dez anos grupos de samba duro têm lutado para que a tradição seja reconhecida como patrimônio cultural da cidade. "A gente já vem com essa demanda há um tempo, se organizando para isso, porque nosso maior medo é que sem o apoio, inclusive financeiro, a tradição se perdesse. Quando o samba junino começou a crescer, em meados da década de 80, ficou caro bancar os custos. As pessoas das comunidades onde essas festas eram fortes deixavam de viajar para poder ficar nos bairros, curtindo o samba lá", lembra Bafefé.  (Foto: Arquivo CORREIO) Boa parte da história dos últimos 40 anos de samba junino em Salvador foi catalogada em um dossiê técnico da Fundação Gregório de Mattos, exigido para o reconhecimento da manifestação como um patrimônio. Nele, constam fotografias, registros audiovisuais, textuais e orais, que podem ser consultados por pesquisadores e pela comunidade em geral na sede da fundação, na Barroquinha.

Para James Martins, o reconhecimento do samba duro como patrimônio cultural é um marco, mesmo porque foram desses grupos que saíram nomes de destaque na música baiana hoje, como Tatau, Márcio Victor, Tonho Matéria, Reinaldo do Terra Samba,  Ninha e Tote Gira, autor de O Canto da Cidade. "O gesto da Fundação Gregório de Mattos chega em boa hora. Espero apenas que essa, digamos assim, institucionalização, seja bem aproveitada pelos agentes dos grupos e não venha, como um tiro pela culatra, a quebrar a espontaneidade inerente ao movimento. E de que ele não pode prescindir", deseja.