Pesquisadoras falam sobre os desafios do acesso à educação no Brasil e no mundo

As brasileiras Angélica de Freitas, Bárbara Zambelli e Isabela Navarro estudam e pesquisam fora do Brasil e falam sobre essa realidade em um postcast

Publicado em 23 de janeiro de 2022 às 07:00

- Atualizado há um ano

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Uma olhada no currículo e um “uau!”. É mais ou menos assim que acontece quando alguém descobre que, aos 30 e poucos, a bióloga baiana Isabela Navarro é PhD em Genética pela Universidade de Cambridge, a advogada mineira Angélica de Freitas dá aulas na Universidade de Westminster, na Inglaterra, e que a geóloga também mineira Bárbara Zambelli está de malas prontas para um doutorado na Alemanha, onde vai pesquisar gestão de águas subterrâneas. A surpresa com um misto de admiração é até bem-vinda, mas mostra que quem reage assim, na verdade, não sabe da missa a metade.

Ser cientista fora do Brasil atrai mesmo olhares de admiração e até uma pontinha de inveja. Mas, até se estabelecerem no exterior, essas três brasileiras e um sem-número de outros estudantes de diversas áreas que em algum momento também fizeram as malas enfrentaram muitos perrengues: o custo de estudar fora, a distância de casa, a sensação de não pertencer a lugar nenhum e até a famosa síndrome do impostor atormentam quem luta para pesquisar em condições um pouco melhores do que as do Brasil.

Mas, fica um alerta: aqui pode não haver investimento, mas o acesso à educação pelo mundo a fora também não é nenhum paraíso. Se as três pesquisadoras, que lançaram em outubro o podcast Bolsa Perrengue – um tipo de ‘a vida acadêmica como ela é – se formaram no Brasil em universidades públicas, ficar lá fora significa ter que conseguir uma bolsa ou dar conta de trabalhar com pesquisa e em outras coisas para sustentar o investimento.“Não existe educação pública no Reino Unido, por exemplo. No Brasil, a nossa educação pública é a que comanda, é o que sustenta. Aqui, todos os meus alunos estão em débito e vão ficar em débito a vida toda, por 30 anos, descontando na folha de pagamento”, afirma a advogada Angélica de Freitas, mineira, que dá aulas de Direito de Construção na Universidade de Westminster enquanto faz um pós-doutorado – sem bolsa. Angélica se formou em Direito pela Universidade Federal de Ouro Preto e hoje dá aulas na Universidade de Westminster, na Inglaterra (Foto: Acervo Pessoal) Na Alemanha, para onde Bárbara Zambelli está indo em janeiro, existe uma universidade pública onde é cobrada uma taxa de administração, mas não há bolsa. Já Isabela, que concluiu o PhD em Genética na Universidade de Cambridge este ano, o começo de tudo envolveu uma bolsa de estudos, mas não da universidade e sim do Brasil. Na época, em 2015, ela levava até vantagem em relação a outros estudantes porque tinha bolsa através do programa Ciência sem Fronteiras, do governo federal.

Mesmo com o fim do programa, um dos fatores que a fez ficar foi a infraestrutura. Fazer ciência de ponta no Brasil hoje, com os cortes de investimentos, é praticamente um milagre.“A ciência que eu faço depende muito de tecnologia de ponta, infraestrutura de ponta, regente que é muito caro e muito difícil de conseguir no Brasil. Eu tinha muito essa sede de estar num lugar onde eu não estaria limitada por essa falta de infraestrutura. No Brasil, às vezes você compra o reagente e ele chega oito meses depois, quando a ideia que você teve já virou vários artigos fora, enquanto você esperava o reagente chegar”, exemplifica Isabela.Ela se formou em Biologia pela Universidade Federal da Bahia (Ufba) e fez mestrado na Universidade de São Paulo (USP), antes de chegar ao doutorado em Cambridge. Hoje, ela é pesquisadora na Inglaterra e desenvolve tecnologias de edição gênica e melhoramento de plantas. Isabela é bióloga formada pela Ufba e PhD em Genética pela Universidade de Cambridge, na Inglaterra, onde mora e trabalha (Foto: Acervo Pessoal) Os mais desejados Nem todo mundo que sai do Brasil para estudar quer fazer ciência. Nas agências de intercâmbio, por exemplo vendem muito mais pacotes de cursos mais rápidos, de idiomas. Mas a busca por turmas de ensino médio – ou seja, de quem já quer estudar no exterior antes mesmo do nível superior, vem crescendo, como mostra a pesquisa mais recente da Associação Brasileira de Agências de Intercâmbio (Belta), lançada no final de 2020. Os dados também apontam que a Inglaterra está entre os lugares mais procurados por brasileiros que querem estudar fora, atrás do Canadá, Estados Unidos e Irlanda.

Durante a pandemia, a queda na procura foi de 46%, mas no ano anterior – 2019 –, o setor tinha movimentado US$ 1,3 bilhão, com aumento de 5,86% na procura. Entre os estudantes de pós-graduação, os brasileiros estão entre os mais ‘visados’ pelo programa Erasmus+, da União Europeia. Ele oferece bolsas em cursos de mestrado e outros programa universitários. Desde 2015, mais de mil brasileiros participaram do programa.

Depois de um intercâmbio, muitos voltam aos seus países de origem. Mas quem decide ficar enfrenta um misto de sentimentos: o prazer de ter melhores condições de pesquisa e a angústia da distância de casa, da insegurança, da famosa síndrome do impostor e até de uma sensação estranha de não pertencimento.

Lugar nenhum Angélica cresceu na periferia da Região Metropolitana de Belo Horizonte, em Minas Gerais. Estudar fora sempre foi um sonho, mas não era uma realidade, assim, tão palpável para o contexto familiar. Em 2009, no entanto, a irmã mais velha conseguiu uma bolsa na Universidade Autônoma de Barcelona e foi estudar na Espanha. Angélica decidiu fazer um mochilão na Europa e, depois de visitar a irmã e passar por Londres, ficou com uma ideia na cabeça de que queria morar na Inglaterra.

Em 2013, já formada em Direito pela Universidade Federal de Ouro Preto (Ufop), ela conseguiu uma única bolsa de mestrado integral na Universidade de Westminster, na Inglaterra, e foi estudar lá – onde está, aliás, até hoje. “Tem uma coisa sobre morar na gringa e estudar na gringa que é um não pertencimento perene a lugar nenhum. É uma sensação de divisão o tempo todo. Esse não-lugar da gente gera uma ansiedade constante e isso agrava essa nossa síndrome de impostora, como se não pertencer te colocasse numa posição de mais insegurança ainda. Eu não sou nem brasileira o suficiente, nem gringa o suficiente, então como eu cheguei até aqui?”, questiona.

Para Bárbara, que se formou em Geologia pela Ufop, a sensação de cobrança gera muita angústia e insegurança – e tudo isso vai para a terapia.“Abre as portas para você ver o tamanho do buraco em que você está e não sabe. É muito medo de errar, muito a sensação de que eu preciso ler mais e que eu nunca vou conseguir ler isso tudo”, diz. Bárbara cursa atualmente mestrado em gestão de águas subterrâneas na TU Freiberg, na Alemanha (Foto: Acervo Pessoal) E tudo isso ainda se agrava pelo machismo: Bárbara é espeleóloga – estuda cavernas – pela Sociedade Excursionista e Espelelógica de Ouro Preto. Mesmo assim, já ouviu colegas questionando se ela entrava mesmo em cavernas. Angélica já saiu das próprias aulas com um sentimento de impotência ao ter a capacidade questionada por alunos homens, brancos, mais velhos do que ela.

Bons frutos Nem só de perrengue vive a vida lá fora. O fato de já ter passado por várias etapas do processos de deixar o Brasil e ir estudar ou trabalhar no exterior dá às pesquisadoras a vantagem de conhecer alguns caminhos e poder ajudar quem quer fazer o mesmo. No Bolsa Perrengue, há uma seção inteira de dicas sobre como concorrer e onde conseguir bolsas de mestrado e doutorado fora do país, além de outras oportunidades, como cursos gratuitos ou projetos de pesquisa.

Além disso, vale a pena pensar sobre outros idiomas e o que é necessário saber falar, de fato, antes de ir para outro país. E há, ainda, um convite a ponderar sobre a missão da educação e o mito da meritocracia. “Existe uma hipervalorização do sacrifício. Se você não vem de uma condição superprivilegiada, isso é bonito. Se você fez pesquisa sem bolsa, você é guerreira, você é muito lutadora, você e foda. Mas educação também é trabalho e, na maioria das vezes, a gente está produzindo capital pra alguém, ele não retorna para a gente. Aquilo vai em nome de um prestígio, do seu esforço ou currículo. Não é bem remunerado, mas você chegou lá, você venceu, parabéns!”, pontua Isabela.

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Angélica de Freitas Mineira, PhD pela Universidade de Westminster, na Inglaterra, onde também dá aulas desde 2016. É formada em Direito pela Ufop, membro do LDC, um grupo de pesquisa sobre desenvolvimento de leis e pesquisa de conflitos. Ela estuda sobretudo abordagens decoloniais, epistemologias e metodologias relacionadas com a energia, justiça ambiental, justiça global e social, movimentos sociais, conflitos de recursos no Sul Global.

Bárbara Zambelli Mineira, atualmente cursando mestrado em Gestão de águas subterrâneas na TU Freiberg, na Alemanha. É engenheira geóloga pela Ufop e pela University College Cork (Irlanda), espeleóloga pela Sociedade Excursionista e Espelelógica de Ouro Preto e comunicadora científica. É co-fundadora da ONG a_Ponte, coletivo voltado para a divulgação de geociências. Desde 2020, integra a Comissão de Geoética da Sociedade Brasileira de Geologia (SBG) e o Early Career Scientist Team, da Associação Internacional para Promoção de Geoética (IAPG).

Isabela Navarro Baiana, nascida em Salvador e criada em Mairi, PhD em Genética pela Universidade de Cambridge, na Inglaterra, bióloga formada pela Ufba pela e Fiocruz-BA, com mestrado em Imunologia pela USP e doutorado em Genética pela Universidade de Cambridge. Atualmente mora na Inglaterra, onde é pesquisadora e desenvolve tecnologias de edição gênica e melhoramento de plantas.

Bolsa Perrengue Podcast em dez episódios sobre o acesso à educação no Brasil e no mundo – e sobre a realidade de pesquisar e trabalhar, sobretudo fora do país