Por bem ou por mal, #DeixaElaTrabalhar

Jornalista fala sobre machismo no futebol

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  • Fernanda Varela

Publicado em 26 de março de 2018 às 17:54

- Atualizado há um ano

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Ser jornalista esportiva é uma montanha-russa. Tem um lado encantador, de trabalhar com uma paixão de infância, mas tem também uma lado muito doloroso. Talvez quem ainda sonhe em atuar nesse meio do futebol seja iludido com a ideia de que vivemos em um conto de fadas. Afinal, quem não gostaria de ir a todos os jogos e conviver de perto com aqueles caras que muitos idolatram? Não é bem assim.

Essa semana, um grupo de jornalistas esportivas de várias partes do Brasil – algumas, inclusive, atuando em outros países – se uniu para lançar o manifesto #DeixaElaTrabalhar. O objetivo é dar um basta nos episódios diários de machismo que encontramos pelo caminho. E não são poucos. Em menos de 24h, recebi uma mensagem de um torcedor que atestou que “não existe machismo no futebol, pois quem consome futebol é homem, então é normal que tudo que esteja relacionado com futebol seja feito por homens” e outra agressão gratuita de um ilustre desconhecido, com palavras de nível rasteiro e que não vou reproduzir aqui.

O machismo no futebol é comum, frequente e doloroso. Algumas vezes vem daquela forma clara de identificar, com frases clássicas como “lugar de mulher é na cozinha”, “mulher não entende de futebol”, “nada a ver mulher cobrindo jogo”, “deve estar dando para alguém”, entre outras imbecilidades. Há também aquele machismo enraizado, velado e, muitas vezes, que homens e mulheres (sim, temos muitas mulheres machistas por aí) nem percebem que cometem. Isso acontece muito. Vamos dar alguns exemplos.

Quando um colega de redação vê uma repórter cobrindo um jogo e, imediatamente, vira para qualquer homem da equipe (sim, mesmo que ele esteja de costas para a televisão) e tira uma dúvida da partida, ele está sendo cretino e machista. Ora, por que não pergunta para a mulher? Não é ela quem está assistindo? Outra: é impressionante o clima de tensão que se instala quando uma mulher abre a boca para opinar sobre futebol. Uns têm pânico de ver a colega falar alguma besteira, outros parecem armar uma emboscada e torcem por qualquer deslize para dar o bote. Existe, creiam. 

Muitas vezes, o machismo velado dói mais do que os babacas que gritam “puta” para a menina que está no gramado. É difícil ser mulher nesse meio que ainda é predominantemente masculino. Você, homem, que acha que é tudo exagero, vamos lá. Você pensa na cueca que vai usar para ir ao jogo, com medo de marcar na calça? Fica sem beber água porque na área que você está só tem banheiro feminino? Já precisou ir ao banheiro no meio do jogo e se deparou com colegas de calças arreadas, fazendo xixi? Eu passo por isso com frequência.

Participar da campanha ao lado de tantas profissionais que eu tenho imensa admiração me emocionou. Hoje mesmo eu chorei lembrando do quanto foi doloroso trilhar o meu caminho no futebol. Mas o preconceito não começa quando você coloca um crachá no pescoço, nem quando decide se tornar jornalista esportiva – que ousadia, né? Os olhares tortos começam na infância.  O amor pelo futebol também está estampado na pele (Foto: Acervo pessoal) Tenho quase 29 anos e, desde os três, frequento estádio de futebol. Por livre e espontânea vontade. Por amor. Cresci ouvindo que eu era “esquisita”, “estranha”, “sapatão”. Por que? Porque meu caderno tinha o escudo de um clube de futebol, eu ia ao estádio e debatia a rodada do Brasileirão com os colegas. Muitas vezes ouvi calada, mas convicta de que eu estava no meu lugar. No lugar que eu escolhi e tinha o direito de estar.

Quando decidi trabalhar com futebol, mais porrada. De torcedor, de colegas. Essa semana, um ilustre desconhecido se achou no direito de ridicularizar e criticar porque gravei um vídeo para comentar sobre futebol sem usar maquiagem. Quando foi confrontado, partiu para a agressão. Depois, disse a seguidores homens, que não gostaram do comentário, que era só uma brincadeira. Uma brincadeira. 

Em redes sociais, todos os dias eu sou agredida. TODOS OS DIAS. As pessoas ainda têm dificuldade de discordar e debater sem agressão. É a tal mania de, quando não tem argumento, partir para a ignorância. São seis anos convivendo com isso profissionalmente. Normalmente, rebato. Nunca fui de ouvir calada. Mas muitas vezes eu deitei no travesseiro e chorei. Perguntei o porquê de tanto ódio, tentei compreender o que eu fiz de errado, questionei até se eu realmente tinha condição de trabalhar com futebol. Tenho. Eu sei que eu tenho. Quem acompanha o meu trabalho também sabe.

Demorei, mas aprendi a lidar. Aprendi a expor, gritar para o mundo que aquilo está errado. E hoje, ao lado de centenas de mulheres, esse grito ecoou. Nós não vamos mais tolerar desrespeito, piadinhas, assédio, agressão. Basta. Vou seguir expondo as pessoas que me agridem e, ironicamente, não aguentam a pressão quando são reprimidas. Não é fácil falar? Aprendam a ouvir também. 

Confesso que muitas vezes é desanimador, a gente sofre, até pensa em desistir. Mas é nessas horas que contamos com quem conhece nosso trabalho de verdade, com quem sofre a mesma dor. E a dor delas, é a minha. A minha, é delas. Estamos juntas e não vamos nos calar. Vai ter Fernanda no futebol, sim. Vai ter Lívia, Bruna, Daniela, Carol, Clara, Manuela. E quantas mais quiserem seguir esse caminho.  Não é mimimi. É dor. Machuca, fere. Mas também cicatriza e nos faz cada vez mais fortes. Nós não vamos mais silenciar. Não queremos ocupar o lugar dos homens, só queremos o nosso espaço. O direito de ir e vir, sem ninguém no nosso caminho. E o primeiro passo já foi dado. Sai da frente ou vem com a gente, mas deixa ela trabalhar.

#DeixaElaTrabalhar Instagram: @deixaelatrabalhar Twitter: @deixaelatrab