Por que histórias sobre crimes nos atraem tanto?

Psicólogos e fãs explicam o sucesso do gênero

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  • Carol Neves

Publicado em 9 de setembro de 2019 às 07:00

- Atualizado há um ano

. Crédito: Divulgação

Outubro de 2014. Os primeiros episódios de "Serial", podcast de jornalismo investigativo, foram lançados, criando o que se tornou o primeiro grande sucesso mundial do formato. Os episódios traziam a história real de um crime que aconteceu em 1999 na cidade americana de Baltimore. A série em áudio bateu todos os recordes no mundo do podcast e criou um fenômeno que deu origem inclusive a outros programas debatendo "Serial". 

Não é de surpreender que o primeiro hit entre podcasts tratasse de um assassinato. Desde que o mundo é mundo, histórias de crime atraem as pessoas - e o selo de "aconteceu de verdade" parece aumentar ainda mais esse interesse. Conhecido como true crime, é um gênero de crescimento evidente desde que "Serial" foi lançado e que está por todos os lados. Há livros, documentários como "Making a Murderer", "The Staircase", "Evil Genius" e "The Jinx", histórias com versões ficcionalizadas de casos que realmente aconteceram, como "Mindhunter", "The Act" e “American Crime Story”, para não falar em uma infinidade de podcasts – “My Favourite Murder”, "Monster" (só sobre o Zodiac Killer), "Criminal", "In the Dark", o brasileiro "Caso Evandro"...“Quando você vê que são fatos reais, você encara de outra maneira, abala mais saber que aquilo ali existe mesmo, aconteceu de verdade”, diz a técnica em enfermagem e universitária Débora Fonseca, 30 anos. “Tudo que envolve crime, investigação, mostre as provas, o que aconteceu (...) É envolvente, interessante, faz você raciocinar”, afirma.A psicóloga Elisa Walleska, pós-doutorada em psicologia forense, diz que o interesse em histórias assim é natural. "Quando a gente se interessa por histórias de violência fictícia, ou mesmo real, mas sem tomar parte, só assistindo, é uma forma do nosso psiquismo se realizar e de certa forma transmutar aquela violência que todos temos dentro de nós. Da mesma forma que quando a gente quando vê programa de viagem se sente relaxado de ver as paisagens, ou o filme de romance nos traz aquele bem-estar. O filme de violência permite que a gente exerça essa violência interna com segurança", diz. 

Ela destaca, contudo, que o "limite é muito tênue". "A gente começa a banalizar a violência, começa a se divertir com situações que são terríveis. Isso pode nos insensibilizar ao sofrimento do outro. Eu vejo que hoje em dia muita gente assiste esses programas tipo Brasil Urgente almoçando tranquilamente. As pessoas já não se chocam mais com certos crimes", diz. "Vai olhar a quantidade de filmes e séries em Netflix, sem sombra de dúvidas metade é comédia e metade é violência. Isso faz com que a violência pareça algo mais aceitável". Mindhunter é um thriller com uma versão ficcionalizada de um livro de true crime escrito por um ex-FBI  (Foto: Divulgação) A estudante de pós-graduação Tatiana Almeida, 31 anos, é fã de histórias de serial killers - seu preferido é Hannibal, personagem criado pelo escritor Thomas Harris que deu origem a uma série e filmes. Casos reais a atraem e ela navega pelo Youtube em busca de programas sobre o tema. "É um assunto que eu gosto muito, porque mexe com o emocional, a curiosidade, porque são coisas extremas. Gosto mais de quando o crime envolve psicopatas ou pessoas com alguma doença mental. Eu acho que é porque são mentes curiosas, esses criminosos, você fica tentando entender o que se passa (na mente)", diz.

Para o psicanalista Luiz Felipe Monteiro, membro da Escola Brasileira de Psicanálise, tudo que foge do padrão cria uma curiosidade. Ele diz que a vida em sociedade propõe um equilíbrio entre dois aspectos. “É uma equação que a gente consegue fazer entre o que a gente chama de gozo, aquela vontade, uma satisfação que não tem limite, e uma lei, que é aquilo que vem de fora, da sociedade, que impõe um limite. Todos nós precisamos fazer essa negociação entre essas duas dimensões”, explica. 

O entretenimento que consumimos ajuda nessa conciliação, diz.“A satisfação que a gente não faz em ato, substitui em fantasia. A manifestação é através da nossa própria satisfação individual, que a gente cria em sonhos, por exemplo, e em objetos da cultura. Por isso que a gente se interessa por coisas que a gente não faz. Tem algo de uma satisfação que não foi permitido porque você está submetido à lei. A figura do assassino é emblemática porque é alguém que não se submeteu às leis como eu me submeti”, explica. Repercussão Um ponto negativo do tipo de atenção que um crime de grande repercussão pode ter é o impacto em familiares, envolvidos e até em toda uma comunidade em que o caso se passou. O anúncio de que está sendo feito um filme sobre o caso de Suzane Von Richtofen, acusada de organizar a morte dos pais, dividiu opiniões. "Os casos reais são traumáticos para vítimas que sobreviveram e familiares. As pessoas veem (o assassino) como uma pessoa famosa", diz Tatiana. Mesmo fazendo a ponderação, ela afirma que não deixaria de ver um filme por isso. “É uma forma meio egoísta de pensar, eu acharia muito interessante (esse filme), porque tomou notoriedade, todo mundo quer saber". Atriz Carla Diaz vai viver Suzane Von Richtofen em filme (Foto: Divulgação/Reprodução) Depois do sucesso de “Making a Murderer”, documentário da Netflix que trata da condenação de Steven Avery, preso por assassinato depois de ser solto após anos na cadeia condenado injustamente por estupro, a cidade em que tudo aconteceu viu sua rotina virar de pernas para o ar. Turistas mórbidos aparecem para tirar fotos em locais “marcantes” do caso e a cidade de Manitowoc viu a moral cair depois que de ser retratada como um lugar tacanho dominado por uma polícia corrupta. 

“Repórteres chegam, ou alguém de Hollywood, fazem um programa e vão embora sem se aprofundar e aprender realmente o que é essa comunidade, ou o que tem para oferecer”, disse à BBC Tina Prigge, que organizou com o marido Jason uma série online para tentar mostrar o “lado bom” de Manitowoc. “Para eles é só um nome, só uma história”.

O universitário Geovane Talon, 25 anos, diz que entende esse aspecto, mas crê que muitas produções ajudam na busca por justiça. “Acho importante fazer tudo que for possível para buscar a Justiça, mesmo que isso vá acarretar na perda de alguma privacidade”, afirma.

"Quando assisti o documentário sobre a menina Madeleine (McCann, desaparecida em 2007) eu me senti meio mal porque a gente vê como tudo aquilo impactou os pais dela. Mas isso vem desde a cobertura da imprensa, e agora vem uma série e revive isso. Mas por outro lado acho que faz parte da natureza da gente mesmo querer saber mais sobre crimes misteriosos ou bárbaros", diz a universitária Aline Simões, 25.  

A advogada americana Megan Boorsma escreveu um artigo em que destaca que nesses documentários, costuma existir uma luz favorável ao acusado. "Embora o true crime realmente exponha falhas que existe no sistema da Justiça criminal, como condenações erradas, problemas com a polícia e preconceito, uma das maiores preocupações é como o gênero pode desinformar a população atraindo respostas emocionais para essas questões", escreve. "Um público desinformado não significa apenas falta de conhecimento e respeito pela, significa um júri desinformado". Caso de Steven Avery ganhou notoriedade após documentário e atrai curiosos para cidade (Foto: Calumet County/Divulgação) Justiça e investigações Muitas dessas histórias de fato chegam, ou focam, no aspecto judicial dos crimes que acompanham. "Serial" reacendeu o interesse pelo caso de Adnan Syed e alguns desenvolvimentos trazidos pelo podcast tiveram reflexos em novos encaminhamentos – Syed, contudo, apesar de uma ou outra vitória nas cortes americanas, continua preso. Em "Making a Murderer", sem fatos novos, a publicidade trazida pelo documentário trouxe um novo interesse e uma nova defensora para Avery. O sobrinho dele, Brendan Dassey, também condenado pelo crime, chegou a ter uma ordem de soltura, que acabou sendo suspensa. Os dois casos seguem em andamento com novos recursos. 

Esse lado das histórias de crime também atrai. “(Assisto) Para ver como a Justiça não é justa. É aterrorizante. Se você não estiver no lugar certo, mesmo tendo bons advogados, pode se complicar”, diz George.

Débora cita a série ficcionalizada “Olhos que Condenam”, que traz a história de cinco jovens presos injustamente por estupro e agressão. “Os meninos foram condenados porque era uma mulher branca e loira e tinha que se justificar de qualquer maneira o que aconteceu com ela. No final eu chorei, depois que eles foram inocentados. Fiquei uma semana assimilando, abrange várias coisas, a Justiça, a polícia, todo sistema”.

A vontade de ver a justiça acontecer e de ver um caso aberto ser resolvido faz muita gente deixar o sofá - e os incontáveis grupos do Reddit - e se envolver ainda mais. Nos EUA, a convenção Crime Con reúne anualmente centenas de interessados no assunto. Esse ano, o evento será em outubro, na cidade de Seattle.

Uma das atrações é o Crowd Solve: “A questão é simples: centenas de participantes com experiências e histórias diversas podem trabalhar ao lado de nossos especialistas em criminologia, polícia forense e reconstrução de cena de crime para ajudar a desenvolver novas ideias e pistas em casos em que tudo que resta agora é um milagre (para serem resolvidos)?”, diz a chamada no site. Dois casos são expostos para que interessados conheçam e ambos devem ser analisados no final de semana da Crime Con – uma mulher que desapareceu em 2009 e outra que foi assassinada dois anos antes.  Crowd Solve traz dois casos para que participantes da Crime Con discutam com especialistas (Foto: Reprodução) Só que este ano aconteceu um desenvolvimento inusitado: o vizinho de Nancy Moyer, a mãe de duas crianças que sumiu de casa sem deixar vestígios, ligou para a polícia e confessou que a assassinou, até indicando o local onde teria escondido o corpo. Nada foi achado. Dias depois, ele retirou a confissão e acabou sendo solto no início desse mês. O desaparecimento de Nancy foi tema de uma temporada do podcast “Hide & Seek”. "Eu acho que as pessoas não teriam começado a se apresentar se não fosse pelo podcast... E com o Crowd Solve chegando, acho que deu um último impulso para ele se entregar", diz Sam Moyer, filha de Nancy. 

A brasileira Diana Diniz, que esteve há dois anos na Crime Con de Nashville. Advogada, ela não atua na área criminal mas diz que tem muita curiosidade pelo assunto e resolveu aproveitar uma viagem para conhecer a convenção, que tem participação de policiais e ex-policiais, especialistas e criminalistas. "Existe sim uma adrenalina, aquela coisa de você estar ali mais perto, é difícil explicar", afirma. Uma das atrações foi um workshop sobre o documentário "The Keepers", que mostra o assassinato de uma freira. 'Detetive amadora' na série, Gemma Hoskins, ex-aluna da vítima, esteve no evento debatendo possíveis pistas com os participantes."A gente sabe que provavelmente não vai resolver nada do caso, mas só de estar ali discutindo já se mantém o interesse em encontrar essa resposta vivo", diz. "Todo mundo gosta de um ponto final".A escritora Michelle McNamara, obcecada com os crimes do assassino conhecido como Golden State Killer (nome que, aliás, ela mesma ajudou a cunhar), saiu de fóruns online e ao vivo nos quais discutia os casos atribuídos a ele para fazer pesquisa e entrevistas. Ela escreveu um livro sobre assunto - que não conseguiu terminar, porque morreu aos 46 anos. O marido contratou duas pessoas para organizarem a edição e o livro foi publicado. Pouco depois do lançamento, um suspeito foi preso. 

No livro, Michelle conta que quando tinha 14 anos uma mulher que corria perto de sua casa foi assassinada. Dois dias depois, a adolescente foi até o local em que o corpo foi achado e encontrou restos do Walkman quebrado da vítima, que ela recolheu. "Não senti medo, só uma curiosidade elétrica", relembra. Foi isso que serviu de gênese para o interesse dela no true crime. Anos depois, se tornou obcecada com o caso do serial killer que abusou e matou várias pessoas na Califórnia.

O anonimato dele a pertubava. "Eu preciso ver o rosto dele. Ele perde o poder quando nós sabemos o seu rosto". O livro se encerra com uma carta que Michelle escreveu para o assassino. "Um dia próximo, você vai ouvir um carro parando no seu meio fio, um motor sendo desligado. Você vai ouvir os passos chegando na sua porta", diz o texto. "É assim que acaba para você... Abra a porta. Mostre o seu rosto".