Por quem gelam, nossos corações?

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  • Kátia Borges

Publicado em 4 de julho de 2021 às 05:15

- Atualizado há um ano

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Em meio ao inverno baiano, leio sobre a descoberta de 182 túmulos de crianças indígenas em um internato no Canadá ainda sob o impacto de O som do rugido da Onça — romance de Micheliny Verunschk, que entrevistei recentemente para o Correio. Desde maio, é o terceiro achado do gênero.

Estas crianças indígenas, a reportagem que leio fala em mais de 150 mil, teriam sido arrancadas de suas famílias, entre os séculos 19 e 20, e matriculadas forçadamente em escolas estatais administradas por instituições religiosas, católicas e protestantes, em um processo violento de aculturamento.

A violência, nesse caso, não se limitaria ao apagamento forçado de suas culturas originárias, mas alcançaria também seus corpos, em abusos físicos, sexuais e emocionais. Uma das sobreviventes conta que foi convencida, em um desses institutos supostamente educacionais, a acreditar não possuir uma alma.

Sabemos que um dos mecanismos mais cruéis, e nucleares, dos processos de submissão de um ser humano a outro ser humano é justamente a negação da humanidade. Por essa lógica, entende-se o temor e a ojeriza que opressores sentem em relação a todas as formas de educação e de arte.

Em um registro fotográfico de uma dessas escolas residenciais canadenses, em sépia, provavelmente do início do século 20, vemos seis meninas e quatro meninos indígenas, com idades que parecem variar entre 5 e 10 anos, sob a guarda soturna de uma mulher vestida com um hábito de freira.

As meninas na foto, de pé, usam vestidos listrados que alcançam a altura de seus tornozelos e cobrem seus braços. Os meninos vestem um conjunto-farda composto por calça e jalecos fechados até o pescoço, com mangas compridas. Estão ajoelhados na grama, como numa pose de time de futebol.

Apenas uma delas sorri para a câmera, um menino que aparenta no máximo 6 anos, e como me comove esse riso. As demais exibem expressões semelhantes às das crianças indígenas brasileiras Juri e Miranha, “dadas de presente” aos naturalistas bávaros Spix e Martius no século 19.

Sobre estas, Juri e Miranha, debruça-se O som do rugido da onça. Acredito que a injustiça é um bicho fugido que algum dia alguém captura. Dentro dos séculos, deixa rastros de seu esconderijo, por mais camuflado que este seja. A bondade da pessoa ruim, como canta a música-oração de Chico Cesar.

Leio esta reportagem e penso nas crianças indígenas à mercê de projetos genocidas, nos meninos e meninas negros abatidos a tiros por balas perdidas que alcançam o endereço de seus corpos. Nos pequenos imigrantes ainda retidos nos Estados Unidos. E naqueles que tombaram no percurso, cujas almas seguirão em exílio. E quanto mais leio e penso nisso, sinto frio.