Quem manda aqui são elas! Cresce número de baianas em chefia de família

Entre 2001 e 2015, crescimento foi de 115% no estado; casadas são destaque

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  • Thais Borges

Publicado em 28 de março de 2018 às 06:52

- Atualizado há um ano

. Crédito: Sarah é mãe de Gustavo - Foto: Betto Jr/CORREIO

Antes de casar, a confeiteira Ana Celeste Lessa trabalhou como atendente em um supermercado, lavou roupa ‘para fora’ e até vendeu fato e bofe na feira, em Santo Antônio de Jesus, no Recôncavo baiano. Depois do matrimônio, percebeu que não tinha condições de pagar alguém para cuidar dos filhos enquanto ela e o marido trabalhavam fora. Ficou em casa.  

Mas ela não queria ficar parada. Queria trabalhar. Decidiu, então, fazer sequilhos para vender. Todos os dias, saía com biscoitos de goma, de cebola e de batata para vender pelas ruas da cidade. Voltava sem nada e com encomendas – que, aos poucos, passaram a incluir pedidos de salgados, doces de festa, bolos e tortas. Hoje, aos 49 anos, dona Ana Celeste obtém a principal renda da casa e do sustento dos seis filhos.  Ana Celeste começou fazendo sequilhos para vender na rua (Foto: Marcelo Nunes/Divulgação) Ela é uma das milhões de baianas que hoje, de alguma forma, estão à frente de suas famílias. São casadas com filhos, casada sem filhos, solteiras com filhos e até aquelas que são sua própria família. Entre 2001 e 2015, o número de grupos familiares chefiados por mulheres passou de 1.066.424 para 2.286.670 – um aumento de 115%. 

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Os dados fazem parte do estudo “Mulheres chefes de família no Brasil: avanços e desafios”, da Escola Nacional de Seguros, realizado a partir do cruzamento de informações da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (Pnad) do IBGE. No caso de famílias formadas por casais com filhos, como a de dona Ana Celeste em 2001, o percentual de mulheres chefes de família era de 2,9%. 

Já em 2015, 22,9% das mulheres nesse tipo de família eram responsáveis pelo total sustento ou pela maior parte da renda da casa.“Eu continuo na minha luta. Se eu parar uma semana, parece que eu parei um mês, porque as responsabilidades começam a apertar”, diz Ana Celeste. Os filhos têm idades entre sete e 24 anos. Hoje, os dois menores conseguem estudar em uma escola particular enquanto o mais velho, de 24 anos, ajuda nas despesas da família. O marido de dona Ana Celeste, que é motorista de caminhão, trabalha viajando. Passa uma semana, 15 dias fora e ganha pouco mais de um salário mínimo. 

No início, ele tinha medo de que os negócios da esposa não dessem certo. “Era fraco de fé”, diz ela. Hoje, ele é tranquilo. E ela é feliz com a própria independência, já que as encomendas não param de chegar. Às segundas-feiras, ela descansa. Durante todo o resto da semana, não para. “Hoje (terça) tenho uma torta, amanhã (quarta) tem bolo, quinta tem encomenda... É direto, graças a Deus”, enumera. 

Sem filhos A realidade dela é parecida com a da fisioterapeuta Aline Manta, 34. Especialista em saúde da mulher, ela é concursada na Maternidade Climério de Oliveira, dá aulas e palestras e faz atendimento. Dez anos após a formatura, pode considerar que já tem uma carreira consolidada no mercado. 

O marido, por outro lado, está no início desse processo. Advogado, ele se formou há pouco mais de um ano e, enquanto profissional libera, tem começado a criar sua própria lista de clientes. Casados há dois anos, os dois fazem parte de outra estatística que também cresceu: a dos casais sem filhos em que a renda da mulher é maior. “Ele é sete anos mais novo que eu e, quando a gente casou, ele ainda estava terminando a faculdade. Nós contrariamos o preconceito, que existe muito. Para a gente, isso nunca foi um item de desacordo, de desentendimento. A gente se apoia muito e procuro sempre contribuir com o crescimento dele”, diz.Em casa, a divisão de despesas é sempre proporcional à renda de cada um daquele mês. Se, naquele momento, a renda dela equivale a 60% do total, por exemplo, as despesas são divididas dessa forma. Para ela, o que ajuda a funcionar é que os dois encararam como uma responsabilidade do casal. 

“A mulher hoje ocupa um lugar importantíssimo no mercado de trabalho e, ao mesmo tempo, não quer deixar de ter uma boa vida pessoal, familiar. Ser boa esposa, boa mãe. Acho que, com uma visão de família e não uma visão do homem e da mulher, dá certo. Pensando na unidade familiar, se chega a um acordo”, defende. 

Mudança cultural Para a diretora de Ensino Técnico da Escola Nacional de Seguros, Maria Helena Monteiro, o aumento no número de casais em que a mulher é a chefe da família pode indicar uma mudança cultural. Para ela, muitas mulheres estão perdendo uma ‘vergonha’ de assumir que ganham mais do que o marido. “A mulher que tem um companheiro se intitular como chefe da família indica uma evolução dos costumes. Indica que a chefia feminina está evoluindo no Brasil”, opina. De uma forma geral, os dados da Bahia chegam a ser maiores do que os do Brasil – enquanto aqui o número de chefes mulheres cresceu 115%, no país, o aumento foi de 105%. “Parte disso tem a ver com os programas sociais, como o Bolsa Família, que é dado para a mulher”. 

Mãe e filho A jornalista Sarah Oliveira, 33, nunca se casou. Ela está entre as famílias ‘monoparentais’ – que, na pesquisa, as mulheres correspondem a mais de 89% das chefes de famílias desse tipo. Aos 22 anos, no primeiro semestre da faculdade, ela se tornou mãe de Gustavo, 11. O pai do menino, que foi seu colega de curso, nunca esteve presente. 

Sempre foram só os dois: Sarah e Gustavo. “É uma relação de amor e cumplicidade. Ele é meu amiguinho e sou a amiga dele também”, conta. Por anos, Sarah teve que abdicar da profissão para cuidar do filho. Logo que engravidou, saiu da casa dos pais e decidiu que era a hora de tomar as rédeas da própria vida. 

Se tornou coordenadora em uma editora de livros, onde trabalhou até três anos atrás. Foi quando decidiu sair do emprego para correr atrás do sonho do jornalismo. Hoje, faz mestrado em cibercultura na Universidade Federal da Bahia (Ufba) e trabalha como freelancer em sites colaborativos. “Eu sempre quis ser mãe, só que aconteceu muito rápido. Ele (o pai) não queria assumir e eu também não quis que ele assumisse. Quis ser mãe solteira mesmo. Não concordo com essa titulação, mas nunca me senti incomodada com a titulação de mãe solteira. Queria ter um filho independentemente da situação”, explica. Com sua família de dois, ela diz que se sente viva. Se sente livre, mesmo com as dificuldades. Em 2014, quando saiu da editora, sentiu a dureza de um mercado de trabalho em crise e restrito. Buscou apoio no filho. 

“Eu decido o que eu quero fazer, a hora que eu quero e é uma relação de parceria. O ruim é quando a mulher não tem essa contrapartida de decidir sua própria vida, de não ter condições e não conseguir estudar. Eu adoro minha vida, meu estado atual de mãe, dona de casa, gestora de uma casa”, garante. 

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Mudança reflete participação no mercado de trabalho e escolarização, diz pesquisadora  Para a chefe de departamento de Estudos de Gênero e Feminismo, a pesquisadora do Núcleo de Estudos Interdisciplinares sobre a Mulher (Neim) da Ufba, Márcia Macedo, há fatores objetivos e subjetivos envolvidos no aumento do número de famílias em que a mulher é casada e é a chefe da família. 

Um desses fatores é justamente o aumento da escolarização das mulheres, que acontece principalmente no fim do século XX, e o crescimento feminino no mercado de trabalho. Segundo ela, a média de escolarização de mulheres é de oito anos de estudo, em média, no Brasil. A dos homens é de sete. 

“As mulheres estão estudando mais. Tinha o famoso ‘gap’ de gênero que elas estudavam menos e ganham menos. De fato, elas continuam ganhando menos, inclusive nas mesmas funções que os homens”, diz a pesquisadora, que afirma que há estudos que indicam que, para cada R$ 100 que os homens recebem, as mulheres recebem R$ 73. 

Ela diz que, em outros momentos, mesmo quando o homem da família estava desempregado, a ‘chefia’ não era retirada dele. Não se assumia que ele era desempregado ou não era mais um ‘provedor’ da família. Era como se isso causasse algum constrangimento ou se retirasse a ‘masculinidade’ desse homem.“Logicamente, ainda persiste uma série de restrições do ponto de vista da igualdade de gênero. A gente não pode dizer que homens e mulheres estão nesse patamar, mas o trabalho feminino e a renda das mulheres para a contribuição da família não pode mais ser renegado a um segundo plano”. Para ela, os resultados também indicam o próprio empoderamento feminino das mulheres que passam a se reconhecer como a pessoa de referência da família – uma vez que nem sempre quem responde ao IBGE é a mulher, mas alguém do círculo familiar que reconhece isso.