Querido João: por que o primo de Jesus é o santo mais festejado da Bahia?

Fé, folia, família e fogueira ajudam a explicar, diz pesquisador

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  • Da Redação

Publicado em 24 de junho de 2018 às 02:00

- Atualizado há um ano

. Crédito: Foto: Arisson Marinho/CORREIO

Todo mundo tem um João. O CORREIO tem o seu: sou eu! Você, na certa, tem algum amigo, compadre, vizinho ou irmão João. Não é praga, é benção, viu? Prova é que até Jesus Cristo tinha seu João. Era um primo, que tem a memória celebrada até hoje. Aliás, hoje é o dia de saudar esse parente do Salvador. Cê sabe, 24 de junho é dia de São João Batista, o cabra mais popular do Nordeste – depois de JC, é claro.

Mas, enfim, dos três santos homenageados em junho, por que ele é o mais festejado? O que explica que, por João, a maior parte da população de Salvador dedique esforços extras para celebrá-lo? Há quem junte dinheiro, planeje tudo com antecedência, compre roupa nova e, o que é mais certo, enfrente horas de engarrafamento para ir às festas de João interior adentro.

Segundo o pesquisador Nelson Cadena, autor do livro Festas Populares da Bahia: Fé e Folia, a explicação para João Batista ser o mais comemorado tem a ver com a popularidade do santo na região Nordeste. “Lá no Sul (do país), por exemplo, é a festa de São Pedro (que atrai mais pessoas)”, cita ele. Além disso, destaca o pesquisador, “Santo Antônio não tem tradição cultural de fogueiras, que é o elemento aglutinador” do São João.

O estudante de Engenharia Civil Jackson Souza, 33 anos, que se define como “forrozeiro, biriteiro e raparigueiro”, aglutina outros elementos que tornam as homenagens a João mais atraentes que as festas para Antônio e Pedro, os santos concorrentes do mês. “No São João tem licor pra fazer a cabeça; forró pra chegar nas meninas; amendoim, milho assado e canjica pra forrar o estômago. E ainda tem a chance de rever a turma toda”, diz o universitário natural de Senhor do Bonfim, que mora na capital, mas passou a adolescência em Juazeiro, pra onde sempre volta.

Eu não sou daqui No fim, sim, reunir a galera, rever a família, também acaba sendo um dos principais motivos para tanta gente querer celebrar o santo.“O hábito de metade da população sair da cidade é recente, da segunda metade do século 20, e tem mais a ver com a emigração rural para a cidade grande e o retorno desses emigrados a suas raízes”, observa Cadena.E esses emigrados não são poucos: em 1991, por exemplo, um em cada três moradores de Salvador (31,7% do total, na verdade) tinha nascido fora da cidade, segundo o Censo do IBGE. Esse percentual cai um pouco em 2000 (30,9%) e recua de novo em 2010, no Censo mais recente, desta vez para 27,7%. 

Na prática, das 2.675.656 pessoas contadas na cidade no último Censo, 741.280 não eram naturais de Salvador. E pra todo mundo voltar pro aconchego, assim, de vez, dá trabalho. De acordo com a Agerba, apenas pela Rodoviária, até ontem, 162 mil pessoas deixaram a cidade para curtir o São João pelo interior.

Chega de saudade Foi o caso da administradora Michele Santos, 27, que pegou o busão pra rever os parentes em Itabuna, Sul do estado. “Consegui trocar com uma colega no trabalho e tô indo rever a família. São João pra mim é sagrado por isso. É a chance de matar a saudade da família, rever todo mundo. Se não conseguisse trocar, ia pagar pra alguém ficar no meu lugar”, comentou Michele, instalada na capital há 10 anos. “Vou lá curtir com meu povo, na frente da fogueira, assando milho e falando mal dos parentes que não forem”, adiantou.

Para o professor Miguel Márcio Lima, 54, a tradição de voltar às raízes nesse período é bem mais antiga.“Na adolescência (década de 70), já tendo mudado para Salvador, era a época de rever os amigos que ficaram e outros que também mudaram-se, mas retornavam para a festa”, lembra ele, que até hoje volta a São Francisco do Conde, no Recôncavo, pra botar o papo em dia.No entanto, observa mudanças importantes do tempo em que via a festa de outra forma, com “as ruas enfeitadas, as casas com mesas de sala decoradas com amendoim, bolo, laranja, licor, bala de jenipapo”, tudo pronto para receber quem chegasse com a saudação característica: ‘São João passou por aí?’ 

Para ele, esse São João já passou por lá. “O que era uma festa da comunidade, familiar e de confraternização entre conterrâneos tornou-se um festival regado a atrações midiáticas. A cidade, invadida por milhares de pessoas em busca dessa diversão, fechou as portas das casas pelo temor da violência”, lamentou.

Andar com fé Enquanto isso, na capital, um lugar em especial abre as portas para celebrar a memória do primo de Cristo. É a Paróquia São João Batista, na Avenida Vasco da Gama, onde até ontem se rezou o novenário para o padroeiro, com a presença de quem não pegou a estrada.

“Meus paroquianos têm fortes raízes no interior, mas no dia do São João, mesmo assim, eles lotam a igreja”, comenta o padre Jan Kaczmarczyk, ou padre João, como prefere. Polonês, ele conta que a tradição de reunir a família e fazer fogueira também existe por lá, mas a popularidade do santo não chegou a criar, como aqui, comidas, bebidas ou músicas típicas para festejá-lo. 

Mas, dúvida curiosa: por que o São João, na Bahia, é mais popular até que o Carnaval? Na opinião de padre Jan/João, “Carnaval é para todo mundo (separado), enquanto São João é para reunir família, amigos, e entender que a vida é para celebrar com o outro”. 

Foi num Carnaval, por sinal, que a dona de casa Matilde Pereira dos Santos, 76, conheceu o marido. Ele a fez se tornar devota ainda na década de 50. “Foi um namoro de Carnaval, que parecia que não ia dar certo, mas deu. E São João nos ajudou! Nos casamos em 1961. Tivemos três filhos, todos devotos de São João”, conta ela sobre o esposo, falecido há quatro anos. A devoção do marido, conta ela, vinha da infância, com uma dádiva alcançada. Dona Matilde foi casada por 53 anos com um devoto de São João. Com ele teve Marinês, formanda em Serviço Social; Maurício, que é músico; e Flávio, que é diácono. Todos também devotos (Foto: Arisson Marinho/CORREIO) Outra graça veio quando os dois já estavam para casar. “Eu pedi que meu marido fizesse uma casa, porque a gente não podia casar sem ter uma casa própria. Daí meu marido teve um acidente numa fábrica onde ele trabalhava, como marceneiro. A máquina cortou três dedos dele, ele foi indenizado e a gente comprou, com esse dinheiro, o terreno e fez a casa no Pau Miúdo”, lembra ela, que hoje mora perto da paróquia de seu padroeiro. 

Também devota fervorosa, a doméstica Lucinalva da Silva, 47, natural de Ruy Barbosa, no Recôncavo, conta que as dádivas de São João para ela começaram quando ainda era bem pequenininha.“Eu tava na faixa de meus 3 anos e de repente comecei a cair das pernas. Não parava em pé. Aí minha avó chamou minha mãe e disse: ‘Lourdes, enterra ela até o pescoço na véspera de São João. Quando chegar meia-noite que gritar Viva, São João, puxa ela de uma vez’”, lembra. A orientação foi seguida. “Minha mãe cavou, enterrou até o pescoço 10h da manhã, e quando foi meia-noite, que o pessoal gritou, ela me puxou de vez. Quando me botou no chão, não tinha quem me pegasse. Nunca mais tive problema de andar”, diz ela, com essa fé que não costuma falhar. Dona Nalva mora no Garcia e é frequentadora assídua da Paróquia de São João. Tem dois filhos, também devotos do santo, do qual admira o exemplo de coragem (Foto: Arisson Marinho/CORREIO) Há quem aguarde São João sem ligar pro santo Não precisa ser devoto de São João, ou mesmo saber o que é celebrado nessa época (ver abaixo), pra curtir a festa para o santo católico. Aliás, chega a ser raro encontrar alguém que espera a época para prestar as devidas homenagens ao ‘Querido John’. 

A psicóloga Vanessa Führ, 26 anos, até se declara católica, mas não chega a ser devota de ninguém, tampouco confia alguma simpatia ou pedido a algum santo. Nascida em Senhor do Bonfim, mas morando em Salvador, o que faz, religiosamente, nessa época, é se preparar pra curtir a festa no interior.

“Eu perco noite pensando na mala, fazendo lista para ver o que falta. Minha ansiedade é enorme nessa época. Estou aqui a mil por hora só de falar”, comentava ela, às vésperas da viagem para Ibicuí.  Todo ano, Vanessa Führ prepara os looks especialmente para o São João; e faz isso com bastante antecedência (Foto: Reprodução) “Na média de dois meses antes já começo a comprar roupas, montar os looks com as botas. Tenho de várias cores e modelos. Experimento a roupa várias vezes, penso nos acessórios”, conta Vanessa, antes de definir de forma mais orgânica a sua paixão pela festa:“Sinto que meu coração bate em ritmo de forró. É como ter a zabumba batendo no peito ao invés de um coração.”A analista de marketing Aymeé Francine, 24, que se declara como uma pessoa “muito sincrética” que não gosta de se definir “como adepta de um caminho só”, é outra não-devota de São João a curtir a festa como se não houvesse a manhã. Pensa apenas nas noites da festa, para as quais também inicia planejamento bastante antecipado. 

“Eu contava as nicas e economizava desde o início do ano. Se curtir o Carnaval significasse não ter São João, eu escolhia o São João. Maio sempre foi um mês que não saía para quase lugar nenhum, por causa da grana. Prioridades”, explica ela, que também costuma descer pra Ibicuí. Esse ano, no entanto, está “chorando baldes” porque terá de mudar o destino por motivo de força maior. “A grana apertou e escolhi, com meu namorado, ir pra um lugar mais barato e que não conhecemos: Amargosa”, conta, ligeiramente amargurada.

Aymeé salienta que também tem devoção pelo Carnaval, mas comenta o que lhe faz achar o São João melhor.“Carnaval a gente vai e não sabe como vai voltar, quando vai conseguir voltar. É aquele inferno astral de mototáxis, ônibus, taxistas que não aceitam taxímetro, uber que cancela corrida. Não conseguimos mais sair sem vir um babaca puxar seu braço, seu cabelo, falar alguma coisa desrespeitosa. São João é paz e diversão, sabe? Todo mundo na mesma vibe, sem estresse, preocupação”, compara.Quem foi o santo e por que a fogueira? “Ele foi considerado o maior de todos os profetas. Inclusive, Jesus disse que, entre os nascidos de uma mulher, ninguém foi maior do que João”. O cartão de visitas de João Batista foi dado por dom Estevam dos Santos Silva Filho, bispo auxiliar da Arquidiocese de Salvador. 

Auxiliar Jesus e, ainda antes, preparar o caminho para a chegada do Senhor são duas das missões cumpridas por São João que o tornam tão adorado entre os devotos. A origem da fogueira para celebrá-lo, inclusive, tem a ver com o aviso da sua chegada. Na versão católica, conta-se que Maria, mãe de Jesus, tinha uma prima chamada Isabel, esposa de Zacarias. Isabel engravidou e teve um filho chamado João – na verdade, ele talvez se chamasse Zacarias Júnior, mas o Anjo Gabriel orientou Isa a batizá-lo como João. 

Pra comemorar seu nascimento, a família fez uma fogueira. Também há a versão de que a fogueira foi usada mais como sinal de aviso da chegada de Joãozinho, já que Isa e Zaca moravam num local mais afastado.

A outra versão para a tradição da fogueira, que é originária da Europa, é que lá se tocava fogo em madeira para comemorar o ciclo das colheitas, o início do solstício de Verão no hemisfério Norte. Ou seja, algo algo ligado ao paganismo e ao cultivo da terra. Mas aqui, prevaleceu a versão católica, que existe desde o início do Brasil. 

Em um relato do padre Fernando Cardim, de 1583, conta-se que a festa era celebrada até nas aldeias indígenas. Em 1625, quando a esquadra de Fradique de Toledo Osório retomou a Bahia dos holandeses invasores, os espanhóis celebraram as festas juninas a bordo de três navios.“No próprio dia de São João enfeitaram estes três galeões com bandeiras e bandeirolas”, narra o soldado Johann Gregor Aldenburgk, como lembra Nelson Cadena em Festas Populares da Bahia: Fé e Folia.Paróquia celebra padroeiro com missas neste domingo Após realizar o novenário de São João, que este ano teve como tema central “João nos ensina o caminho de ser Igreja”, a Paróquia de São João Batista, na Avenida Vasco da Gama, realiza hoje, no dia dedicado ao seu padroeiro, celebrações em diversos momentos do dia. 

As homenagens terão início às 7h com a Oração das Laudes, seguida da recitação do Terço e de testemunhos dos devotos. Às 10h acontecerá a primeira missa do dia, presidida pelo bispo auxiliar, Dom Marco Eugênio Galrão Leite de Almeida. Já às 15h haverá a recitação do Terço da Misericórdia e a adoração ao Santíssimo Sacramento.

A programação continua com uma missa em ação de graças pela saúde dos fiéis, às 16h. Os festejos serão encerrados com a Missa Solene, às 19h, presidida pelo bispo auxiliar, dom Estevam do Santos Silva Filho.

Além de celebrar a festa do padroeiro, os fiéis também vão realizar um gesto concreto por meio da doação de alimentos, materiais de limpeza e de higiene pessoal. A comunidade pede café, açúcar, arroz, macarrão, feijão, leite, papel higiênico, sabão em pó, água sanitária e desinfetante, que podem ser entregues na sede da paróquia.