Roberta Sudbrack: “O excesso perdeu seu lugar no mundo”

Em entrevista exclusiva ao CORREIO, a premiada chef conta porque fechou restaurante sofisticado no auge do sucesso para investir na cozinha afetiva

Publicado em 16 de maio de 2020 às 11:00

- Atualizado há um ano

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Gaúcha de Porto Alegre, a chef de cozinha Roberta Sudbrack, que vive no Rio de Janeiro, é um dos mais importantes nomes da gastronomia brasileira. A carreira, escolhida por influência da avó Iracema - que ela considera sua mentora até hoje - deslanchou na cena gastronômica do país quando assumiu o comando da cozinha do Palácio da Alvorada, em Brasília, a convite do então presidente da República, Fernando Henrique Cardoso e de sua mulher Ruth Cardoso.

Ao longo dos sete anos que pilotou o fogão da cozinha do palácio concebido por Oscar Niemeyer, cozinhou para reis e rainhas, primeiro ministros e presidentes de diversas nações. O reconhecimento público estimulou a abertura de um restaurante sofisticado que levava seu nome, na capital carioca. No auge do sucesso, quando já era considerada um ícone da boa mesa, Sudbrack resolveu fechar o espaço, e investir num novo negócio. Primeiro com um food truck, vendendo comida simples, de rua. Depois, abriu o Sud, um restaurantes mais simples, focado na cozinha afetiva.

Mais uma vez, inspirada na avó Iracema, com quem gostava de cozinhar. Foi neste momento, que a chef -  eleita, em 2015, como a melhor chef  mulher da América Latina (Veuve Clicquot Latin America’s Best Female Chef 2015), pela revista inglesa ‘Restaurant’), deu um basta no glamour que cerca a profissão e a alta gastronomia, e fez o caminho de volta, focando na comida simples, na relação mais estreita com os pequenos produtores rurais e na valorização de receitas afetivas, muitas delas, como a ambrosia que está no atual cardápio do dekivery, receitas da avó.

Nesta entrevista exclusiva ao CORREIO, Roberta Sudbrack define sua cozinha como moderna brasileira, numa busca pela preservação da nossa herança gastronômica, sem se restringir ao rótulo de comida regional. Autora de vários livros, como Eu Sou do Camarão Ensopadinho com Chuchu, Uma Chef, um Palácio e Bom pra Cachorro – Gastronomia Canina, ela acredita que o excesso perdeu seu lugar no mundo.   Como você tem lidado com esse novo momento em que temos que nos reinventar para sobrevivermos?

Eu já vinha vivendo um processo de reinvenção desde que fechei meu antigo restaurante, o RS, porque não acreditava mais no modelo da alta gastronomia. Venho batendo nessa tecla de que a gastronomia precisava se repensar há algum tempo. Então tenho encarado tudo como algo que no fundo faz parte desse processo. A diferença é que agora estamos todos na mesma, e a reinvenção terá que ser mais abrangente. Mas tenho encarado tudo com coragem e bom senso, afinal eu já acreditava que a mudança era mais do que necessária.

Você disse recentemente que a natureza está nos dando uma lição e que precisamos mudar a nossa forma de ver as coisas. O que tem ficado de aprendizado para você?

Exatamente o que eu disse há três anos quando fechei as portas do meu restaurante porque achava que tudo estava excessivo. Acho que fomos longe demais, em tudo. Exageramos. Quando eu abri o Sud, a minha vontade era de menos, menos invólucro e mais conteúdo. Menos talheres, menos pratos, menos staff, menos excesso. O aprendizado que precisa ser enfrentado é justamente esse: focar no essencial e deixar o excesso para trás. 

O que você tem feito para manter e arcar com a estrutura do seu negócio até tudo isso passar?

Temos nos adaptado às circunstâncias, ao que é possível, cabível e seguro para todos nós. Nesse sentido, não há nada mais importante do que pensar nas pessoas. Temos trabalhado em regime de delivery, exclusivamente. Mas a equipe conta com o nosso apoio para vir para o trabalho e voltar para casa em segurança. Nenhum deles tem pegado transporte público, por exemplo. Temos nos organizado para que todas as normas de segurança sejam cumpridas e que todos se sintam seguros. (Divulgação)Quentinha do delivery vai com mensagem de agradecimento da chef Alguns empresários já dizem que muitos negócios irão fechar. Chefs, como Alex Atala acreditam que haverá um reposicionamento de mercado, inclusive com relação a política de preços. Você concorda com isso?

Para mim isso não é uma novidade. O Sud vai fazer dois anos e nasceu fundamentalmente da minha vontade de fazer uma cozinha mais possível, mais acessível e para um número maior de pessoas. Então nesse sentido eu já estou muitos passos à frente, já me sinto muito confortável e feliz com o modelo que criei. Por certo que também terei que passar por outras adequações, mas a parte mais difícil do dever de casa eu já fiz. Costumo dizer hoje em dia, que a minha pandemia foi há três anos, quando algo dentro de mim falou mais alto e me fez mudar tudo. Foi uma necessidade que senti porque tinha um sentimento de que tínhamos exagerado na dose, que tudo estava excessivo e que era importante voltar ao essencial. (Acervo pessoal)Vó Iracema: a grande inspiração de Roberta Sudbrack  O custo para manter um restaurante aberto é muito alto no Brasil, o que acaba refletindo no preço do prato, que por aqui, sabemos, é caro. Como driblar essa realidade e manter a qualidade da comida a um preço justo?

Justamente focando no essencial. Não se faz milagres. No meu caso por exemplo, eu sempre disse que estava desconfortável com a forma, e não com o conteúdo. Nesse sentido, a minha vontade era continuar fazendo a minha cozinha com a excelência e a qualidade que não abro mão. Então para isso, eu precisava diminuir no que estava excessivo, na minha visão, pelo menos, e manter o que para mim é inegociável: a qualidade da minha cozinha. O Sud é a prova de que isso é possível, mas eu tive que deixar de lado a pompa da alta gastronomia, senão não teria conseguido. No Sud temos um staff reduzido, não temos manobrista, não temos excesso, para poder focar no essencial: a qualidade da comida. (Divulgação)Quentinha do delivery do restaurante Sud: coxa de pato  Você tem defendido, e praticado, que a cozinha brasileira precisa fazer o caminho de volta as suas origens, focar na simplicidade, nos ingredientes locais. Essa é uma tendência, um desejo de mudança ou uma demanda do público?

Nesse momento eu te diria que é uma necessidade. O mundo mudou, nós mudamos, a vida mudou. O excesso perdeu seu lugar no mundo. É hora de focar no que faz sentido, no que efetivamente conta uma história. O pequeno produtor, o artesanato culinário brasileiro, nossos agricultores, eles devem ser as grandes estrelas a partir de agora. São eles que mantêm viva a identidade da nossa cozinha, da nossa cultura. Nós somos apenas instrumentos nessa orquestra. A gente dá voz a esses produtos. Falei muito sobre isso numa apresentação que fiz num congresso internacional na Turquia recentemente: Vamos parar de tirar foto com pessoas famosas e tirar mais fotos com as batatas, com o produtor, com as pessoas que efetivamente nos propiciam a graça de cozinhar. Sem eles não somos nada. Sem as batatas, não fazemos nada. (Divulgação)Sud, no Rio, combina simplicidade e aconchego Isso inclui o fortalecimento da agricultura familiar, dos pequenos produtores? Como é sua relação com essa cadeia produtiva?

É justamente isso, vamos tirar mais fotos com as batatas! E com quem planta, colhe e traz essas batatas até nós. Eu tenho uma frase que define a minha relação com os pequenos produtores: O meu mise em place não começa na minha cozinha, começa no quintal do meu produtor. Sem eles, não há história para se contar.

Você sempre diz que cozinha para você tem a ver com afeto, com memória afetiva. Isso tem a ver com a sua história de vida? Como tem sido esse movimento na gastronomia local?

A cozinha é o reflexo do que somos. Ela está intimamente ligada ao que acreditamos e como enxergamos a vida. Não foi à toa que eu decidi mudar toda a minha vida porque precisava me reconectar com a minha cozinha, com a minha essência, com as minhas crenças. Hoje em dia, a minha relação com a minha cozinha, com a minha equipe, com os meus produtores, é muito mais forte, tenho mais tempo para me dedicar a eles porque aboli os excessos. A cozinha só fala com sinceridade quando a emoção está em sintonia. Uma vez que se perde essa sintonia, a cozinha fica vazia, sem vida, sem graça. Eu acho que era isso que vinha acontecendo com a gastronomia, num certo momento tudo passou a ser mais importante do que a comida. A lógica foi invertida. Acredito que agora, com tudo que estamos passando, cada um vai, a seu modo, precisar se reconectar com a sua essência. E a cozinha só tem a ganhar com tudo isso. (Divulgação)Roberta Sudbrack e o famoso hot dog do Sud  A gastronomia vive hoje sob os holofotes, transformando chefs em celebridades. Você declarou recentemente que está na hora de deixar o ego em casa. Isso se aplica aos chefs de cozinha?

Isso se aplica ao ser humano. Para pra pensar em tudo que estamos enfrentando nesse momento... Será que o ego pode nos tirar dessa enrascada? Tudo estava demais, tudo estava fora da ordem, não só na gastronomia, mas na vida. Todas as áreas vão precisar enfrentar a mudança. Todo mundo vai precisar se olhar no espelho e perguntar: E agora? Mas essa resposta vai ser sempre muito pessoal. Eu quero cada vez mais tirar fotos com as batatas!