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Thais Borges
Publicado em 20 de março de 2022 às 07:00
- Atualizado há 2 anos
No grupo de WhatsApp dos moradores da aldeia indígena Novos Guerreiros, em Porto Seguro, o jovem Vitor Braz, 22, mandou alguns áudios para os companheiros. Estava incomodado com o barulho da festa que acontecia de forma irregular dentro do território indígena e se encaminhava para durar a madrugada. “Aqui é comunidade. Não é bagunça, não”, desabafou, no último domingo (13). >
Menos de uma hora depois, Vitor seria assassinato por um homem que não gostou do questionamento sobre a duração e o barulho da festa. A brutalidade com que o rapaz foi morto chocou o país, mas faz parte de uma realidade que aterroriza povos indígenas ao redor do Brasil: o alto índice de violações de direitos e - especialmente - de territórios indígenas. Só para dar uma noção, desde o ano passado, cerca de 100 ocorrências já chegaram à ouvidoria-geral da Defensoria Pública da Bahia (DPE), incluindo de invasões a atentados contra indígenas. O caso da comunidade de Ponta Grande, onde fica a aldeia Novos Guerreiros, é emblemático. Segundo a liderança Thyara Pataxó, 30, situações de violações da área têm ficado cada vez mais frequentes nos últimos meses. Há aproximadamente dois anos, começaram a sofrer com festas paredão promovidas por pessoas não indígenas. Nos finais de semana, gente que que não mora na localidade - que fica às margens da BR-367, mas também à beira-mar - vai para à praia na região, mas acaba dando início a festas no local. “Achamos que a festa de domingo era mais um dos paredões”, conta. No entanto, depois descobriram que se tratava de um evento promovido por influenciadores digitais. Dessa última vez, porém, o final foi trágico. “A gente sempre liga para a polícia. Algumas vezes, a polícia vem, algumas vezes não. Conversamos ontem (terça) com o novo capitão que informou que vai atender e a gente espera que, com essa nova gestão, as coisas mudem. Se eles tivessem atendido, Vitor nem teria ido ao local”, acrescenta.Mas há, ainda, problemas de outra natureza: do ano passado para cá, começaram a surgir construções de pessoas não-indígenas morando no território. De acordo com Thyara, ainda é um grupo pequeno, mas a comunidade não sabe quem são as pessoas. “A gente até já ouviu de uma dessas pessoas que aqui não é território indígena, que a gente não tem como provar. Infelizmente, a gente está desamparado porque o principal órgão que deveria ajudar não dá soluções para isso”, lamenta. >
Ela se refere justamente à Fundação Nacional do Índio (Funai), órgão indigenista federal criado na década de 1960, mas cuja atuação nos últimos anos têm recebido críticas de povos indígenas em geral, em todo o país. Apesar de abrigar cinco aldeias - além da Novos Guerreiros, há, ainda, as de Itapororoca, Mirapé, Nova Coroa e a Txihi Kamayurá - o processo de demarcação de Ponta Grande se arrasta desde 2013, quando foi iniciado. Desde então, as duas mil famílias aguardam que a terra seja finalmente homologada. >
Só que, no dia 29 de dezembro de 2021, a Funai publicou um ofício que exclui terras indígenas não homologadas das ações de proteção do órgão. Em janeiro, a Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib) informou que a medida atinge pelo menos 139 territórios e 114 povos indígenas. >
Placas >
Ao longo dos cerca de 900 hectares onde vivem duas mil famílias, há placas que indicam tanto que se trata de uma área indígena quanto de que som automotivo é proibido na comunidade. O objetivo, segundo Thyara Pataxó, era de fazer com que qualquer pessoa estivesse avisada, mesmo que não seja moradora da região. >
Abaladas e assustadas desde a morte de Vitor, as lideranças indígenas têm reforçado a importância de finalizar o processo de homologação. No Brasil, a demarcação passa por etapas até ser finalizada: primeiro, são feitos estudos de identificação na área, coordenados por um grupo de trabalho de antropologia. Placas no território de Ponta Grande indicam a identidade indígena e a proibição de som automotivo (Foto: Reprodução) Uma vez aprovados, há um período de 30 dias para contestações e aquele território terá os limites declarados pelo governo federal. Após esse período, pode ser feita a demarcação física do local. As últimas etapas são a homologação, por parte da presidência da República, e o registro em cartório e na Superintendência de Patrimônio da União (SPU).>
"Para todo lado tem erro, tem absurdo, tem violência, tem violação de direito", desabafa Thyara Pataxó. "A gente vem reivindicando o processo de homologação com a Funai há anos, mas é um dos territórios que mais vêm sofrendo ataques. Vira e mexe a gente recebe pedido de reintegração de posse, que sempre são derrubados. A gente pede a demarcação para mais de 300 povos e dá para o governo atender, mas preferem ver a gente sofrer essas violências e infrações com frequência", completa. >
Atentados A maioria dos casos de violação de territórios indígenas na Bahia acontecem no Sul e no Extremo-Sul. Mas, ainda que sejam menos frequentes em outras regiões do estado, situações assim também acontecem, como aponta a co-coordenadora do Movimento Unido dos Povos e Organizações Indígenas na Bahia (Mupoiba), Patrícia Krinsi Atikum, liderança do povo Pankararé. >
No dia 7 de fevereiro, por exemplo, a cacique Erineide, do povo Truká-Tupan, foi vítima de uma tentativa de homicídio em Paulo Afonso. Lá trata-se de mais uma situação em que a questão territorial não foi homologada ainda. "Hoje, eles estão com a terra devoluta. Já foi para juiz, que já deu positivo para o povo indígena, mas a Funai não teria tido como pagar porque os posseiros não tiveram documentos para apresentar. Então, existe um impasse. A partir do momento em que a terra ainda não foi paga, é nítido que as lideranças indígenas têm sofrido ataques e ameaças", explica. Os relatos listam, ainda, ameaças, disparos de tiro, cortes de cerca, incêndios, mutilação de animais e boicotes à bomba de água que abastece a aldeia. A cacique e seus filhos estão hoje em um programa de proteção. >
"Esse aumento de violações se dá porque não temos mais o órgão Funai sendo por nós. O órgão que deveria defender o índio hoje é agressor. Não temos acompanhamento territorial, demarcação de terra, nem fiscalização nos territórios. Nos sentimos agredidos todos os dias. Antes, os não-índios tentavam adentrar nossas terras e tínhamos a quem recorrer. Hoje, nem isso", diz. >
Segurança Para lideranças de diferentes regiões e realidades na Bahia ouvidas pela reportagem, a raiz dos problemas está mesmo na demarcação territorial. Um dos exemplos é o dos Kaimbé de Euclides da Cunha, como explica o vice-cacique Ivanilton Kaimbé, integrante da Comissão Executiva do Mupoiba e vice-presidente do Conselho Municipal de Desenvolvimento Sustentável da cidade. >
A luta dos kaimbé pela terra demorou anos até ser concluída. Na década de 1980, quando posseiros tomaram a área de 8020 hectares, um indígena chegou a ser morto a tiros.>
"Graças ao nosso pai Tupã e aos nossos antepassados que lutaram arduamente para reivindicar nossos direitos, o nosso território foi estudado por antropólogos e confirmado como território de identidade indígena entre 1980 e 1981", lembra. No entanto, os indígenas foram expulsos do local por posseiros. Foi nesse período que uma das lideranças foi assassinada a tiros. >
O processo só foi totalmente finalizado em 1999, quando a Justiça deu causa ganha aos kaimbé. Ali, começou a desintrusão - no caso, a retirada de pessoas não-indígenas, que receberam indenização para desocupar o local. Essa etapa só chegou ao fim em 2001."O processo foi finalizado de forma harmônica. Claro que eventualmente tinha que engrossar o diálogo, mas as pessoas tiveram tranquilidade de se programar para onde iam. Nós sabemos que, do mesmo jeito que precisamos viver, o não-índio também precisa viver. Não somos adversários de forma alguma. Só queremos existir e que respeitem nossa cultura e diversidade", conta. Desde então, eles não enfrentam problemas relacionados à terra. Segundo o vice-cacique, agora as pautas são outras, a exemplo de garantir educação, moradia digna, saúde e boas estradas na região. Mas ele diz não ter dúvidas de que, se a comunidade de Ponta Grande, em Porto Seguro, tivesse sido demarcada, os pataxós que lá vivem teriam mais segurança >
"Infelizmente, a gente vê muita má vontade para finalizar os processos desses, porque há um julgamento simbólico. Toda comunidade tradicional é vista como inoportuna à sociedade", critica. >
Na reserva Thá-fene, em Lauro de Freitas, também nunca houve invasões. No entanto, o líder da comunidade, Wakai Cícero, explica que existem outras formas de violação simbólica. >
"Não há um órgão cabível de assistência ou mesmo de política pública que pudesse buscar essa solução para a gente não se expor. Eu fico muito triste porque a perda do jovem é porque ele se expôs e a gente vê isso acontecer em muitas comunidades", afirma ele, que é líder conselheiro Fulkaxó (dos povos Fulniô, Kariri, Xocó). "A demarcação está na Constituição e quem está lá dentro dos palácios, dos três poderes, sabe disso. Esse pessoal estudou para quê? Para nos destruir?", desabafa. Medidas>
O caso de Vitor Braz ainda está sendo investigado, segundo a Polícia Civil. Já a Polícia Militar informou que o policiamento na região de Ponta Grande inclui visitas, rondas e abordagens nos territórios indígenas. “Atualmente, existe um canal de comunicação aberto entre o comando da unidade e as principais lideranças das aldeias, o que facilita a interação entre a Polícia Militar e a comunidade indígena”, informaram, em nota, citando também a criação da Patrulha do Silêncio, no início do mês, para atender especificamente denúncias de perturbação de sossego.>
A Defensoria Pública da União informou que está ciente do caso e acompanha a situação através de instituições parceiras. O órgão reforçou que, caso a apuração do crime passe para a esfera federal ou se houver demora nas investigações, tomará as medidas necessárias., >
Já a Secretaria de Justiça, Direitos Humanos e Desenvolvimento Social da Bahia (SJDHDS) destacou que também tem acompanhado o caso e acionou a rede de proteção dos direitos humanos, as autoridades de polícia e justiça competentes, solicitando imediata investigação e identificação do autor do crime. Entre as ações estão a solicitação de policiamento ostensivo, preventivo e permanente na aldeia e o monitoramento de ameaças ao líder da comunidade, o Cacique Tucum.>
“A secretaria considera inaceitável a apatia do governo federal no que diz respeito às questões indígenas, recusando-se a assumir o papel constitucional. Um exemplo é o processo demarcatório do território aqui referido, que está em curso e prolonga-se de forma injustificada no âmbito da União, havendo ainda uma decisão judicial que lhes proíbe acesso a serviços públicos essenciais, como água e luz”, diz o órgão, que defende que o caso de Vitor seja acompanhado também pelo Conselho Nacional dos Direitos Humanos.>
A Funai não respondeu aos contatos da reportagem.>
DPE promoverá audiência pública para debater violações>
Para a ouvidora-geral da Defensoria Pública do Estado (DPE), Sirlene Assis, os povos indígenas na Bahia têm sofrido violações que indicam que a atuação da Funai não tem funcionado. >
Por isso, em maio, a DPE está organizando uma audiência pública no Sul da Bahia com as comunidades indígenas para discutir essas violações. "É preciso que a sociedade brasileira abra os olhos, de fato, para o tratamento da população indígena como sujeito de direitos. Tem algumas demandas que são muito relacionadas ao governo federal, mas há responsabilidades dos governos federal, estadual e federal", diz. Desde já, segundo a ouvidora-geral, o órgão tem encaminhado ofícios e tentado estabelecer diálogo com a Funai e outras instituições, como o Ministério Público do Estado. "Tem muita coisa a se fazer, mas é preciso ter vontade política. Tem que ter uma escola no território, um CRAs (Centro de Referência de Assistência Social) e uma perspectiva que respeite a identidade, a pluralidade, porque existe pluralidade entre cada grupo étnico". >