'Tiroteios acontecem a qualquer hora. Vivemos com medo', diz moradora

Salvador e região metropolitana registram 131 tiroteios em julho

Publicado em 9 de agosto de 2022 às 05:00

. Crédito: Foto: Marina Silva/ CORREIO

O relato de uma moradora do bairro do Pau Miúdo sintetiza o sofrimento imposto pela violência armada em Salvador e Região Metropolitana (RMS): “Os tiroteios acontecem a qualquer hora. Nem na hora de dormir temos paz”. No último dia do mês passado, a mulher, que não quis se identificar por medo de represálias, assistiu ao filho de 9 anos acordar assustado ao ouvir barulho de tiros, por volta das 22h30. A tristeza dela reflete uma realidade: em média, três pessoas foram baleadas por dia no mês de julho, em Salvador e região metropolitana, segundo relatório do Instituto Fogo Cruzado, de julho de 2022.

Os dados divulgados pela plataforma nesta segunda-feira (8) mostram que foram registrados 131 tiroteios em Salvador e RMS, com 108 pessoas baleadas (3,4 por dia), 84 mortas (2,7 por dia) e 24 feridas. Os números correspondem a julho, quando o Instituto passou a mapear a Bahia, em parceria com a Iniciativa Negra por uma Nova Política de Drogas.

“A violência nos deixa à mercê dela. Para sair de casa só nos resta orar, porque falta segurança pública. Quando vamos para o trabalho é com medo de tiroteio, quando levamos os nossos filhos para a escola é a mesma coisa e nada muda quando voltamos para nossa casa”, conta a moradora ao resumir a rotina no Pau Miúdo.

A Polícia Militar informou que a 37ª Companhia, que atende ao bairro do Pau Miúdo, não foi acionada para a ocorrência do dia 31 de julho, mas os tiros ouvidos pela mulher constam no mapeamento do Instituto Fogo Cruzado.

O balanço mostra ainda que Salvador lidera o ranking da violência armada. A cada 10 tiroteios na região metropolitana, oito aconteceram na cidade. A capital baiana teve 105 tiroteios, 67 mortos e 20 feridos. Em seguida, estão Camaçari, com 12 tiroteios, 7 mortos e 1 ferido, e Vera Cruz com 3 tiroteios e 3 mortos.

No segundo município com mais tiroteios registrados em julho, um aposentado de 58 anos conta que escutou disparos após a chegada de um grupamento da Polícia Militar na Rua Esmerindo Neto, em Monte Gordo. “A gente escuta, mas evita comentar, porque a violência assusta muito. É complicado manter a rotina em meio a possibilidade de uma bala perdida atingir a gente, que não tem nada a ver”, lamenta o morador.

Ainda de acordo com o levantamento do Fogo Cruzado, 28% dos tiroteios mapeados em julho ocorreram durante ações ou operações policiais, ou seja, 37 dos 131 registros, deixando 25 pessoas mortas e seis feridas.

Para a diretora executiva do Instituto Fogo Cruzado, Cecília Olliveira, ainda é cedo para traçar um perfil da violência armada sobre a região, mas ela destaca semelhanças com as ocorrências de estados considerados perigosos.  

“A proporção de tiroteios em ações e operações policiais é quase a mesma, tanto em Salvador e RMS e na Região Metropolitana do Rio [de Janeiro], muito próximo de 30% das ocorrências. Em comparação com a Região Metropolitana do Recife, que tem uma população parecida com Salvador, há muito mais tiroteios em ações e operações policiais [na capital baiana]. Em Salvador, 28% dos tiros que registramos foram decorrentes de ações de rotina ou operações da polícia”, afirma.

Segundo o co-fundador e coordenador executivo da Iniciativa Negra por uma Nova Política sobre Drogas, Dudu Ribeiro, a maioria dos tiroteios  ocorreu durante ações ou operações policiais pela lógica de segurança pública do estado baseada no confronto. “Isso está conectado com a opção do estado por uma lógica de segurança pública baseada no confronto, na ocupação de territórios e na criminalização de sujeitos. As operações reduzem a capacidade do estado de agir com inteligência e privilegia o uso da força”, pontua.

Dudu Ribeiro destaca ainda a maior presença de organizações criminosas como a principal causa. “Na capital está concentrado o maior contingente populacional, assim como também está a presença maior de organizações criminais que são introduzidas pela opção do estado ao modelo de guerra às drogas. Esse modelo tem sido, em grande parte, tanto pelas operações policiais quanto pela produções de mortes nos territórios negros e do super encarceramento da população negra”, detalha.

Nesse cenário, as piores consequências são sentidas por moradores de comunidades e por pessoas negras, “tanto do ponto de vista da exposição permanente à violência letal quanto também as outras condições que são afetadas, como a oferta de transporte público e funcionamento das escolas pela ocorrência de tiroteios na região próxima. A população circula na cidade sobre um nível de tensão permanente, sobretudo a comunidade negra de Salvador, a curto e longo prazo. Estamos socializando crianças a partir de um vocabulário violento baseado na disposição do estado na produção de morte”, alerta.

A Secretaria de Segurança Pública da Bahia (SSP) não comentou ontem o relatório do Instituto Fogo Cruzado.

Perfil  O mapeamento da plataforma Fogo Cruzado aponta que entre as vítimas dos tiroteios registrados no mês de junho estão três agentes de segurança, baleados em Salvador e na região metropolitana: um morreu e dois ficaram feridos. 

Outros sete casos foram provocados por ataques armados sob rodas - pessoas que passam em carros atirando. Nove pessoas foram baleadas nestes casos: seis morreram e três ficaram feridas. No mesmo período, balas perdidas atingiram três pessoas, todas durante ações ou operações policiais. Nenhuma delas morreu.

Casos recentes A escalada se dá em um momento em que o governo federal se mostra favorável ao armamento da população. Segundo a Polícia Federal, a quantidade de armas novas registradas na Bahia aumentou 240%. Nos três primeiros meses de 2019, foram 400 registros novos de armas de fogo no estado. Neste ano, o número cresceu para 1.363. 

Dentre as vítimas desse crescimento estão vidas e famílias como da adolescente Cristal Rodrigues Pacheco, baleada e morta aos 15 anos durante uma tentativa de assalto no Centro de Salvador. Outra história envolvendo arma de fogo que chocou os soteropolitanos foi o caso da nutricionista, Esperança Cedraz Brandão, 37, baleada por um assaltante quando chegava para o trabalho, e da idosa, Maria de Lourdes Alves dos Santos, 65, vítima de um tiroteio entre policiais e homens armados enquanto caminhava. 

“É fundamental uma política com redução da possibilidade de civis acessarem armas, principalmente armamento pesado. O segundo passo [para reduzir esses casos] seria a revisão do atual modelo de política contra as drogas, que é baseado na guerra, produção de mortes, criminalização de territórios e no encarceramento em massa da população negra”, analisa Dudu Ribeiro. 

A reportagem entrou em contato com a Secretária de Segurança Pública para falar sobre os tiroteios registrados no estado, mas até esta publicação não houve resposta.

*Com orientação da subchefe de reportagem Monique Lôbo