Torneiras secas: em 2018, faltou água em 96% dos bairros de Salvador

Moradores da Liberdade foram os mais prejudicados, aponta levantamento do CORREIO

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  • Yasmin Garrido

Publicado em 25 de dezembro de 2018 às 06:30

- Atualizado há um ano

. Crédito: Foto: Marina Silva/Arquivo CORREIO

O ano de 2018 vai terminar com 365 dias e é exatamente este o número de casos de interrupção no fornecimento de água em bairros de Salvador. Dos 163 bairros oficiais da capital, 153 deles sofreram, até 19 de dezembro, com a falta d’água. Significa que os avisos sobre a interrupção no fornecimento pela Empresa Baiana de Água e Saneamento (Embasa) chegaram para 96% dos bairros de Salvador, além de 13 localidades da cidade.

A Liberdade foi o bairro que mais sentiu a intermitência do serviço este ano - foram oito episódios que somam 941 horas com problemas no fornecimento na região. Isso equivale a quase 40 dias de insegurança dos moradores quanto a ter ou não água para atividades básicas do dia a dia, como lavar louça, tomar banho e cozinhar.

Moradora da Rua 1º de Setembro, na Liberdade, Stephanie Luanie, 20 anos, contou que, por causa de uma reforma feita pela Embasa, órgão ligado ao governo do estado, todo o bairro viveu mais de 30 dias com o problema.“Eu moro com mais cinco pessoas, incluindo minha avó idosa, e foi muito difícil. A água parava de cair das torneiras às 15h e só voltava no dia seguinte, quando faltava novamente no mesmo horário e isso foi se repetindo por mais de um mês”, contou. Stephanie Luanie conta que passou mais de 30 dias convivendo com o problema (Foto: Evandro Veiga/CORREIO) Ainda segundo Stephanie, o que mais angustiava era não saber quando o problema seria resolvido. “No início, a Embasa avisou sobre os horários da interrupção da água. Mas, depois, a gente não sabia se seria igual no dia seguinte ou se o serviço voltaria a ficar normal”, declarou a jovem.

Manutenções O caso mais caótico na Liberdade aconteceu no mês de março, justamente o período descrito por Stephanie, quando a Embasa precisou fazer manutenção na rede distribuidora de água.

Em nota, a empresa disse que “as manutenções periódicas são necessárias para manter a qualidade e a regularidade do serviço em função da rede de tubulações complexa e extensa, com milhares de quilômetros, implantada por debaixo do solo”.

Também moradora da Liberdade, na 1ª Travessa Bonfim, Isa Sara Batista, 22, afirmou que onde os pais moram, no mesmo bairro, o problema é frequente: “Eu prefiro ficar sem luz a ficar sem água. Eu tenho um tanque grande em minha casa, até porque tenho criança e preciso sempre. Mas, na casa de meus pais, o tanque não foi suficiente para suportar a inconsistência”. Isa Sara afirma que tanque da casa dos pais não deu conta de suprir a falta (Foto: Evandro Veiga/CORREIO) Ainda de acordo com ela, muitas vezes os pais, mesmo economizando, tiveram de recorrer à fonte que fica no bairro: “É muita gente querendo pegar água lá”.

A estudante Rafaelly Cristine, 15, que mora na Rua Luiz Dias, também na Liberdade, já passou por maus bocados.“Minha mãe estava lavando roupa e, do nada, a água acabou. Eu estava indo para uma festa e não pude tomar banho, tudo por causa da falta de água”, desabafou.A jovem contou que a Embasa parou de dar satisfações aos moradores. A Embasa argumentou que “não é possível informar a periodicidade dessas manutenções, pois a frequência dos serviços varia conforme as necessidades do sistema de abastecimento”. Rafaelly ficou sem ir para festa porque naõ tinha água para tomar banho (Foto: Evandro Veiga/CORREIO) Outros bairros Dos 163 bairros de Salvador, só dez não tiveram o fornecimento de água interrompido este ano. Além dos 153 afetados, outras 13 localidades da capital também ficaram com as torneiras secas por pelo menos 12 horas – considerando o prazo da Embasa para normalizar o serviço.

Atrás da Liberdade, aparece Pernambués, que sofreu cinco episódios de falta de água até 19 de dezembro de 2018, totalizando 785 horas de intermitência – 32 dias nos meses de fevereiro, março, julho, agosto e dezembro. 

Em terceiro lugar surge a Chapada do Rio Vermelho. Foram três interrupções - duas em janeiro e uma em agosto. No primeiro mês, foram mais de duas semanas sem água, por uma obra no Vale das Pedrinhas. Foram 385 horas com o serviço inconstante - 16 dias.

Os “sortudos” que não tiveram problemas – ou que, pelo menos, não aparecem no levantamento do CORREIO – foram Palestina, Santo Agostinho, Luiz Anselmo, Vila Laura, Centro Administrativo da Bahia, Granjas Rurais Presidente Vargas, Santa Luzia, Mangueira, Narandiba e Morada das Lagoas.

Casos De acordo com a promotora Márcia Câncio, coordenadora do Centro de Apoio às Promotorias do Consumidor do Ministério Público da Bahia (MP-BA), o órgão recebeu em 2018 inúmeras reclamações sobre falta ou interrupção no fornecimento de água, em Salvador e no interior.

“O fornecimento de água pela Embasa está no rol das ações de consumo. Quando recebemos alguma reclamação, o caso é encaminhado à 2ª Promotoria de Justiça, que abre um inquérito para investigar a situação”, explicou.

Márcia Câncio também destacou que no Tribunal de Justiça da Bahia já existem ações civis públicas movidas contra a Embasa, muitas inclusive, com liminares já concedidas, obrigando a empresa a prestar o serviço de fornecimento de água com qualidade e continuidade.

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Moradores reclamam de cobrança durante interrupções A situação dos moradores afetados pelo problema de fornecimento intermitente de água fica pior quando a conta, cobrando pelo serviço interrompido, chega.“A gente ficou semanas sem água aqui em fevereiro e no início de dezembro. Eu tenho tanque em casa, mas eles ficaram totalmente secos. No entanto, as contas sempre chegaram e os valores não mudaram”, contou o aposentado José Raimundo Santos, 72, morador da Rua da Felicidade, em Pernambués.O que aconteceu em Pernambués, em dezembro, segundo a Embasa, foi um vazamento não aparente por baixo de um imóvel construído irregularmente sobre a rede distribuidora. “Como não podia demolir o imóvel, a empresa teve que inutilizar a tubulação existente, interromper o abastecimento de outras ruas, implantar uma nova tubulação, para voltar a atender toda a região afetada”, declarou.

Quanto à cobrança, o superintendente da Procuradoria de Proteção e Defesa do Consumidor da Bahia (Procon-BA), Filipe Vieira, disse que o morador afetado pode solicitar um ressarcimento da Embasa. “O consumidor deve prestar atenção ao registro de consumo no relógio de água para evitar que a retomada do fornecimento faça uma pressão maior, suficiente para que o relógio gire mais rápido”, alertou Vieira.A Embasa afirmou que “a cobrança da tarifa é feita de acordo com o volume de água que passa pelo hidrômetro durante o mês, então, durante o período de desabastecimento, não passa água pelo hidrômetro, logo não é contabilizada”.

Quem foi afetado pode pedir ajuda ao Ministério Público e também ao Procon, no app ‘Procon Ba Mobile’, nos balcões do órgão ou pelo email [email protected].  

Embasa: usuário precisa manter reservatório O CORREIO solicitou à Embasa informações quanto aos episódios de falta ou interrupção do fornecimento de água na capital baiana este ano. Em resposta, a empresa indicou que o levantamento fosse feito pela reportagem a partir dos informes enviados ao longo do ano.

A partir desse levantamento, que foi compartilhado com a Embasa depois de finalizado, observou-se que 96% dos bairros de Salvador passaram por algum episódio de intermitência no serviço de água este ano.

O período estabelecido como o tempo em que o local conviveu com o problema foi calculado a partir da estimativa da Embasa de restabelecimento do serviço. Ou seja, apesar de o bairro ter água em alguns períodos, ele passou por horas de torneiras secas. Isso comprova a falta de continuidade na prestação do serviço - exigência de todo consumidor.

Em resposta, a Embasa declarou que realiza manutenções nas redes de abastecimento para a melhoria do serviço prestado. No entanto, destacou que existem certas contraprestações por parte do consumidor que, muitas vezes, não são observadas. “Se, por um lado é obrigatório que a concessionária realize as manutenções para manter a operação do sistema de abastecimento, é dever do usuário ter reservatório domiciliar com o objetivo de manter uma reserva mínima de água para suprir suas necessidades por um período mínimo de 24 horas, inclusive reservatório inferior e conjunto motor-bomba para elevação da água, quando se tratar de imóvel com mais de um pavimento”, disse, em nota.A Embasa ainda afirmou que “todo e qualquer imóvel, seja residencial ou comercial, deve contar com reservatório para atender às necessidades de consumo”. 

Na Liberdade, por exemplo, bairro que mais sofreu com a intermitência no fornecimento de água este ano, o comerciante Carlos Guimarães contou que, mesmo com a obra da Embasa quase invadindo a casa, não faltou água para a família.

“A gente aqui tem dois reservatórios. O único problema foi que a bomba do reservatório inferior quebrou justo no período de falta de água. No mais, não tenho do que reclamar”, disse. Só este ano, houve suspeita de fraude em 35 mil imóveis de Salvador - 37% dos casos foram confirmados (Foto: Divulgação/Embasa) Dois bilhões de litros de água são desviados por mês Atualmente, o Sistema Integrado de Abastecimento de Água de Salvador possui 149 quilômetros de adutoras (tubulações de grande porte que conduzem água para um reservatório), 25 reservatórios de água tratada de grande porte e 5,8 mil quilômetros de rede distribuidora de água tratada - que levam a água aos imóveis.

Segundo a Embasa, todo o sistema é dividido por zonas de abastecimento, de acordo com a localização e proximidade. “É só verificar a extensão da metrópole para compreender essas zonas e o motivo pelo qual, quando um serviço é feito, a depender de seu porte, pode afetar uma área contígua maior ou menor, de uma simples rua até diversos bairros”, diz nota, justificando as interrupções simultâneas.

Em 2017, foram investidos R$ 18,2 milhões em extensão e substituição de redes. Já em 2018,  R$ 12,5 milhões. No entanto, mesmo com a verba anualmente investida na manutenção das redes distribuidoras de água em Salvador e outros municípios baianos, a Embasa destacou que um dos maiores problemas em relação à falta de água são as fraudes no sistema de abastecimento“Ações fraudulentas envolvendo a utilização da água distribuída pela Embasa são responsáveis pelo desvio de cerca de dois bilhões de litros de água por mês, em Salvador e Região Metropolitana”, explicou.Ainda segundo a empresa, entre janeiro e agosto deste ano, foram identificados mais de 35 mil imóveis com indícios de irregularidade - 37% dos casos foram confirmados. Assim, a estimativa de prejuízo só em 2017 foi em torno de R$ 100 milhões. 

“As fraudes provocam  perdas físicas e de faturamento de água, representam risco de contaminação da água na rede distribuidora e, ainda, prejudicam o abastecimento de quem paga a conta de água”, concluiu.

*Com supervisão do chefe de reportagem Jorge Gauthier