Tradição no Dois de Julho, filarmônicas têm história centenária

Conheça entidades com mais de 100 anos e saiba diferenciar

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  • Laura Fernades

Publicado em 29 de junho de 2019 às 06:00

- Atualizado há um ano

. Crédito: Foto: Marina Silva/Arquivo Correio

Não há desfile do 2 de Julho sem a imagem do caboclo e da cabocla, muito menos sem o cortejo das filarmônicas. Quem conhece sabe que a passagem das bandas fardadas, marchando enfileiradas, é um dos pontos altos da festa de independência da Bahia que será celebrada na terça- feira (2). Tradição que não pode faltar, as filarmônicas levam para o desfile um pouco da história que segue desconhecida por muita gente, apesar de existirem grupos centenários na Bahia.

Só para se ter uma ideia, são 149 anos de existência da Sociedade Orpheica Lyra Ceciliana e 141 da Sociedade Lítero Musical Minerva Cachoeirana, ambas de Cachoeira, além de 141 da Filarmônica 2 de Janeiro de Jacobina. E é no nome que a história começa, já que “homenageia uma data, personalidade ou cidade”, explica o maestro Celso Santos, 44, antes de revelar uma curiosidade sobre a 2 de Janeiro, onde atua há 26 anos.

“A filarmônica migrou pra cá por uma família de italianos, por causa do garimpo que era bem evidente na época. Na família, eles já tinham músicos e faziam muitas festas. Mas quando vieram para o Brasil, os instrumentos ficaram na Itália e demoraram de chegar. No dia que isso finalmente se resolveu - 2 de Janeiro - eles saíram nas ruas de Jacobina cantando: ‘Viva o 2 de janeiro! Viva o 2 de janeiro!’”, conta Celso rindo. Filarmônica 2 de Janeiro, de Jaconia, tem 141 anos (Foto: Divulgação) A partir de então, as primeiras festas de micareta de Jacobina, assim como os grandes bailes, recebiam a apresentação da filarmônica. Depois da criação da 2 de Janeiro, em 1878, foi fundada no ano seguinte a Sociedade Aurora Jacobinense “por um grupo rival na política”. A tradição, porém, é anterior a isso. As filarmônicas surgiram no Brasil no período colonial, vindas principalmente de Portugal, na Europa, e cada cidade tinha a sua.

“Elas assumiram um posicionamento político. O interesse vai além do simplesmente tocar. Isso cria uma situação de pertencimento, de profundas relações com fatos, pessoas e datas, que são celebradas nas cidades com a participação das filarmônicas”, ressalta o maestro Fred Dantas, 59, que tem 36 anos de experiência e é o idealizador do Movimento das Filarmônicas Unidas na Bahia (FUB).

Marcha No início, a principal responsável pela existência das filarmônicas era a elite colonial, que as criava para tocar em suas festas. “Isso frutificou no Brasil, depois as pessoas passaram a se juntar e formar filarmônicas que ganharam formato de associações com caráter social”, explica o presidente da Sociedade Lítero Musical Minerva Cachoeirana, Roberto Franco, 58, presidente da FUB.

Entre as obrigações, enumera, estão manter uma escola de música para crianças e adolescentes e uma filarmônica, além de incentivar a literatura. “Por isso o ‘litero’ do nome”, explica. Já o ‘Sociedade’ - que também aparece em muitas das 183 filarmônicas catalogadas na Bahia - vem do fato de ser uma associação da sociedade civil. O ‘Minerva’, por outro lado, homenageia uma figura mitológica: a deusa das artes.

Influenciadas pelas bandas militares, as filarmônicasusam uniformes e marcham com disciplina. Não à toa, o repertório mais tradicional é a “marcha militar de passo dobrado”, ou simplesmente “dobrado”. “É o repertório usado na rua, nos desfiles. O dobrado é, por excelência, a música de marchar”, explica o maestro Fred Dantas.

Além dele, existem as peças de concerto que são mais rebuscadas e as músicas “de folia”, ou polaca, o que inclui xaxados, frevos e até releituras de Anitta, Vitor Kley e Gabriel Diniz (1990-2019). A filarmônica também pode ser identificada por sua composição: conta apenas com instrumentos de sopro e percussão. Não tem instrumentos de corda, nem vocal. A Sociedade Lítero Musical Minerva Cachoeirana tem 141 anos (Foto: Divulgação) Amigos da música Curioso é que o prefixo ‘filo’ da palavra filarmônica vem do grego ‘philos’ e significa “amigo de”, assim como em “filantropia”. Náo à toa, os ‘amigos da música’ são os responsáveis por manter voluntariamente a existência das filarmônicas que, nos últimos tempos, têm enfrentado muitos problemas.

Há um mês, músicos de mais de 100 filarmônicasfizeram uma manifestação em frente à Assembleia Legislativa da Bahia para chamar a atenção do poder público para a falta de apoio financeiro. EM audiência pública, a FUB – oficializada na mesma data como entidade defensora das filarmônicas –, solicitou editais específicos, no valor de R$ 50 mil, para compra de fardamento, higiene e alimentação dos 8 mil jovens atendidos gratuitamente.

“Esse evento é um grito, um pedido de socorro. Precisamos de ajuda”, desabafou, na ocasião, o maestro Gerry Andrade, 50, que está à frente de filarmônicas em seis cidades do estado. Ao CORREIO, o maestro Fred Dantas atribuiu parte da dificuldade na captação de recursos ao fato do Governo do Estado “investir apenas em projetos como o Neojiba”.

“A gente não é contra o valor que o governo investe, a gente é contra o zero que fica do outro lado: um trabalho que há mais de 100 anos está provando sua importância. Não tem mais o que provar, né?”, pondera o presidente da Minerva Cachoeirana, Roberto Franco. “Nosso movimento não se propõe ser oposição ao governo, mas um movimento a favor das filarmônicas e de mais equilíbrio”, completa Fred.

Responsável pela audiência pública, a deputada Fabíola Mansur disse, em nota, que nos próximos dias anunciará a composição do Grupo de Trabalho (GT) que reunirá poder público, sociedade civil, representantes de filarmônicas e outras organizações de músicos. O objetivo, segundo a presidente da Comissão de Educação, Cultura, Ciência, Tecnologia e Serviços Públicos, é “discutir permanentemente a situação desse segmento na Bahia”. (Foto: Marina Silva/Arquivo Correio) Imaterial O maestro Celso reconhece que a Filarmônica 2 de Janeiro “sempre teve a sorte de ter pessoas que abriram mão de muita coisa para manter essa cultura”. O próprio, que faz parte há 26 anos, primeiro como músico e depois como maestro, nunca recebeu nada. “A principal característica da filarmônica é a união de pessoas abnegadas, voluntárias, que dedicam seu tempo para manter a cultura”, resume.

Os ganhos, porém, são muitas vezes imateriais. “Venho da zona rural e para ser maestro, tive que desenvolver o censo de responsabilidade. A filarmônica expandiu minha consciência”, conta Celso, que é contador e fez pós-graduação em projetos sociais só para ajudar a 2 de Janeiro. De origem humilde, seu aluno, o trompetista Micael Carvalho, 30, toca na banda desde os nove anos e defende o “papel social importante”.

“O instrumento que toco tem muito solo e isso ajudou na minha personalidade. No dia a dia do meu trabalho, tenho que aparecer, assumir protagonismo”, compara Micael, que é gerente de banco. Então, elogia as resistentes centenárias: “Uma entidade de qualquer tipo sobreviver a mais de 100 anos é algo incrível. É nossa história”.

Filarmônicas se encontram no Campo Grande

Quem nunca viu uma filarmônica em ação terá mais uma chance durante o Dois de Julho, que será celebrado na terça-feira com a apresentação de seis filarmônicas e um coral, em frente ao Monumento ao Dois de Julho, no Campo Grande, das 18h às 21h. A programação gratuita do 28º Encontro de Filarmônicas no 2 de Julho vai contar com nomes como a Lyra Popular de Belmonte e a Lyra Ceciliana de Cachoeira, considerada uma das mais antigas do Brasil em atividade ininterrupta, com 149 anos.

Quem abre os festejos é o Coral e Filarmônica da Escola Técnica São Joaquim, com a apresentação do Hino Nacional Brasileiro e do Estado da Bahia, sob regência do maestro Fred Dantas que também é diretor do evento promovido pela Fundação Gregório de Mattos (FGM). Em seguida, quem entra em cena é a Filarmônica Ambiental de Camaçari, com regência de Cayo Brito.

A programação inclui apresentações da Filarmônica 9 de Maio e João Dourado, cuja regência é de Robston Alencar, além da Oficina de Frevos e Dobrados que também será regida por Fred Dantas e terá como convidada a cantora Juliana Ribeiro. Com 36 anos de história, a Frevos e Dobrados se destaca por expandir o repertório das filarmônicas ao lado de cantores e músicos, tendo acompanhado nomes como Dorival Caymmi (1914-2008) e Moraes Moreira.

A festa continua na quarta-feira, a partir das 19h, também no Campo Grande, com o Baile da Independência que acontece ao som da Orquestra Fred Dantas e de Irma Ferreira e Mario Bezerra. Tradição do Dois de Julho, o evento tem abertura com uma abertura seleção de músicas que fazem referência à Bahia e inclui repertório de blues, chorinho, boleros, sambas, xotes e axé.

PROGRAMAÇÃO

2/7 | Campo Grande

18h – Abertura com execução do Hino ao 2 de Julho - Coral e Filarmônica da Escola Técnica São Joaquim e  Filarmônica Ambiental de Camaçari 18h30 – Filarmônica Lyra Ceciliana de Cachoeira 19h – Filarmônica 9 de Maio e João Dourado 19h30 – Filarmônica Lyra Popular de Belmonte 20h – Oficina de Frevos e Dobrados, com participação de Juliana Ribeiro

3/7 | Campo Grande

19h - Baile da Independência com Orquestra Fred Dantas e  os os cantores Irma Ferreira e Mario Bezerra