Uso indevido de medicamentos aumenta e preocupa especialistas

Veja os medicamentos mais vendidos no Brasil e entenda as consequências da automedicação

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  • Naiana Ribeiro

Publicado em 6 de agosto de 2018 às 06:32

- Atualizado há um ano

Enquanto você lê esse texto, 9.798.638 doses de remédios são consumidas no Brasil. Dados recentes da Associação da Indústria Farmacêutica mostram que, nos últimos cinco anos, a venda de remédios cresceu 42,6% no país. Em Salvador, o número de farmácias passou de 714 para 1.530 em quatro anos. As estatísticas preocupam especialistas e servem de alerta em relação ao consumo excessivo de medicamentos. 

“Os remédios têm sido tratados como bens de consumo e seu uso inadequado ou indiscriminado pode causar problemas. Até os isentos de prescrição podem trazer sérias consequências quando utilizados de maneira inapropriada, sem o acompanhamento de um profissional de saúde”, afirma o doutor em toxicologia Leonardo Régis, que é professor da Universidade de São Paulo (USP), em entrevista à Agência Estado. Leonardo Régis: ‘Remédios não são bens de consumo’ (Foto: Divulgação) De acordo com estudos do seu grupo de pesquisa, metade dos pacientes não consegue comprar todos os medicamentos que são prescritos e quase 90% não recebe informações suficientes sobre como utilizá-los. Dados da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) reforçam: três cidadãos são afetados por hora pelo consumo indevido de remédios.

Para Leonardo, isso mostra que a população não é a única responsável pelo consumo desenfreado e uso irracional de remédios, mas também a indústria farmacêutica e os próprios médicos. 

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Causas Segundo a doutora em psicologia e membro do Fórum Nacional sobre Medicalização da Educação e da Sociedade, Lygia Viégas, o aumento das vendas de medicamentos tem como principal causa as pressões do mundo contemporâneo. “Tem muito a ver com a sociedade que a gente vive. Somos forçados a viver experiências a todo momento e, quando chega o cansaço, o que propõem é tomar remédios para aguentar e não diminuir o ritmo da vida e repensar a estrutura”, explica.  Lygia afirma que o aumento de vendas de remédios tem a ver com as cobranças do mundo contemporâneo (Foto: Reprodução) Nesse contexto, aprendemos, desde cedo, a evitar dores e  buscar refúgios - entre eles medicamentos. “Tem o fato de que as pessoas estão envelhecendo, mas não explica a totalidade. Estamos em crise e a quantidade de farmácias em Salvador dobrou. Isso só reforça que, na ditadura da felicidade, os medicamentos são empurrados como primeira solução”, ressalta. Prova disso é que quatro dos dez medicamentos mais vendidos do país são usados para reduzir dores. “O mundo está ficando complicado para quem é diferente. Normal agora é ser acima da média, medalha de ouro (...). Só que a normalidade é um molde estreito. E para caber nela recorremos a remédios para mudar a química cerebral e domar a ansiedade e a tristeza, encarar os medos, cumprir prazos, dormir, acordar”, resume a jornalista Marcia Kedouk no livro Tarja Preta (Superinteressante).

Esse problema é cultural e envolve, inclusive, o fato de remédios serem vendidos como produtos - 30% do valor arrecadado pelas farmácias é usado para propagandas, que promovem os remédios. “A indústria farmacêutica é uma grande promotora disso porque ela lucra. O consumo tem sido estimulado desde a infância. A gente fez um levantamento e constatou que a ritalina é muito menos consumida no período das férias escolares. Ao invés de repensar o formato da escola, consideram as crianças doentes e dão o calmante”, afirma Lygia. Os dez medicamentos mais vendidos no Brasil

(por faturamento, segundo vendas, no canal varejo)

1) Dorflex (relaxante muscular) - R$ 470,7 milhões 2) Xarelto (anticoagulante) - R$ 286,8 milhões 3) Selozok (redução da pressão arterial) - R$ 230, 3 milhões 4) Neosaldina (analgésico) - R$ 222,4 milhões 5) Torsilax (relaxante muscular) - R$ 215,3 milhões 6) Aradois (anti-hipertensivo) - R$ 212,2 milhões 7) Glifage XR (antidiabético) - R$ 201,8 milhões 8) Addera D3 (suplemento de vitamina D) - R$ 195 milhões 9) Anthelios (protetor solar) - R$ 187,7 milhões 10) Buscopan composto (reduz sintomas de cólicas menstruais) - R$ 181,7 milhões

Fonte: Associação da Instúrtria Farmacêutica de Pesquisa (Interfarma)Automedicação Embora considere que a população tem sua parcela de culpa - ao buscar o medicamento antes de se consultar, olhando na internet, comprando tarja vermelha sem receita – a especialista diz que não é contra a automedicação. “Defendo o uso racional dos remédios. Ontem, estava com uma enxaqueca monstra e com uma dor insuportável. Mas isso é diferente de tomar remédios tarja preta e outros como sorine ou dorflex todos os dias. Isso provoca a dessensibilização do organismo aos princípios ativos dos medicamentos”, pontua. 

Tem muita gente que toma remédio para tudo. Esse não é o caso do artista plástico baiano Roddolfo Carvalho, 37. Mas ele tem uma farmácia montada em casa, a qual recorre no caso de dores de cabeça e enxaquecas. “Como uso óculos, sinto dores na parte da frente da testa e já é certo aquele bom e velho analgésico”, conta ele, ressaltando estar ciente dos riscos da automedicação. “Com o acesso fácil, montar aquela farmacinha em casa acaba sendo uma alternativa barata, mas paliativa, que pode trazer um grande custo futuro. Sei que isso pode trazer diversos malefícios ao organismo à médio e longo prazo - como os analgésicos para dores musculares, que podem afetar o funcionamento de órgãos e glândulas”, exemplifica.O produtor e jornalista Bruno Porciúncula, 39 anos, por sua vez, não lembra quando foi a última vez que tomou medicamentos: “Só tomo quando vou ao médico e ele passa a receita. Cumpro rigorosamente. Mas tenho sorte de ter uma boa saúde. Se tenho dor de cabeça, algo raro, espero passar. Quando fico gripado, bebo água, como mais frutas e repouso. Tem gente que sente dor e já toma remédio”. 

Apesar da maioria dos médicos considerarem a automedicação uma forma desassistida de tentar resolver problemas, outros especialistas consideram que pode ajudar no tratamento de pequenas dores. “É importante considerar que os remédios - principalmente psiquiátricos - não devem ser a primeira alternativa e nem a única”, recomenda Lygia.

Para o médico Leonardo, a população precisa ser conscientizada de que o medicamento que faz bem também pode fazer mal. “O que se tem de fazer é usar o sistema de saúde, e isso inclui as farmácias, que não podem ter caráter somente comercial. Elas precisam se comportar como um ambiente de saúde”, avalia.

A Associação Brasileira de Redes de Farmácias e Drogarias (Abrafarma) ressalta que os farmacêuticos têm um papel importante: o de orientar como o medicamento deve ser ministrado, incentivando a leitura da bula.

A mão da caneta Marcia Kedouk pontua ainda que os médicos devem seguir um rigoroso código de conduta e não devem colocar interesses financeiros acima da segurança do paciente.

No livro Tarja Preta, ela pontua que eles podem receber dinheiro de laboratórios como remuneração por serviços de consultoria, palestras e pela realização de pesquisas patrocinadas. Isso não significa que eles prescrevam uma medicação em troca de benefícios. “O que se discute é o limite da ética e as perversões que esse sistema pode gerar”, sinaliza.

Na obra, ela conclui que medicamentos não são apenas vilões, visto que salvam e prolongam vidas:“Mas existem verdades inconvenientes que muitos médicos não conhecem ou preferem manter sigilo, governos fingem não ver e laboratórios não querem que você saiba (...). Quem decide o final da história é você”. Para ler: três livros sobre medicalizaçãoTarja Preta de Márcia Kedouk, aborda as armadilhas da indústria farmacêutica e explica por que consumimos tanto remédio; Medicalização da Educação e da Sociedade. Ciência ou Mito? aprofunda o debate em torno da educação medicalizada Novas Capturas, Antigos Diagnósticos na Era dos Transtornos Discute como as diferenças são transformadas em doenças Medicalização será discutida em evento na Ufba

A Universidade Federal da Bahia (Ufba) vai sediar, entre quarta e sábado, um dos mais importantes eventos sobre medicalização. Gratuito, o V Seminário Internacional A Educação Medicalizada trará para Salvador palestrantes nacionais e internacionais de renome e discutirá como as diferenças que caracterizam e enriquecem os seres humanos são tornadas transtornos.

“A gente medicaliza quando olha para situações complexas, com diversos fatores envolvidos, como se fossem somente problemas individuais de saúde”, explica a psicóloga, pesquisadora da Faculdade de Educação da Ufba Lygia Viégas, membro do Fórum Nacional sobre Medicalização da Educação e da Sociedade.

Uma vez classificadas como doentes, as pessoas tornam-se pacientes e, consequentemente, consumidoras de tratamentos, terapias e medicamentos. “Estamos todos susceptíveis a naturalizar questões complexas. Por exemplo, ao supor que uma criança que não aprende na escola tem um transtorno; ou que uma pessoa que chora o fim de um relacionamento está deprimida em vez de triste;  ou que um negro pobre que anda na rua tem uma tendência ao crime. O Fórum provoca para que caminhemos na direção contrária: é possível desmedicalizar a vida”, completa.

Serão três mesas. A primeira, às 14h de quarta,  discutirá questões relacionadas a negritude. Andreia Beatriz  Santos, da Organização Reaja ou Será Morto, Reaja ou Será Morta; Célia Tupinambá, da Associação dos Índios Tupinambá da Serra do Padeiro; Débora Maria da Silva, do Movimento Independente Mães de Maio; e Fran Demétrio, do Coletivo De Transs pra Frente, participam da mesa  Existências Impedidas: Extermínio de Vidas e Subjetividades e Formas de Resistência, na Reitoria  da Ufba (Canela).

A segunda mesa redonda, às 17h30 do mesmo dia, terá como tema Medicalização, a Quem Será que Se Destina: Desqualificação do Sujeito em Tempos de Neoliberalismo. O terceiro debate será quinta, às 17h30, com tema (Re)existências nas Encruzilhadas: Só a Luta Coletiva mudará Nossas Vidas, com o pesquisador colombiano José Julian Gutierrez. 

Serviço O quê? Seminário Internacional A Educação MedicalizadaQuando? Entre 8 e 11 de agostoQuanto? Evento gratuitoOnde? Reitoria e Faculdade de Educação (Faced) da Universidade Federal da Bahia (Ufba)Inscrições: No site www.5medicalizacao.ufba.br