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Raquel Brito
Publicado em 28 de julho de 2024 às 05:00
O pequeno município de Conceição do Almeida, no Recôncavo baiano, é um lugar charmoso. Com pouco mais de 15 mil habitantes, a cidade tem na região central a mandatória Igreja Matriz e um coreto que vira ponto de encontro durante o São João. >
A menos de um quilômetro do templo cristão, em uma rua não tão atrativa para olhos estrangeiros, fica uma casa discreta de número 187, com paredes manchadas e o portão azul dominado pela ferrugem.>
Anos antes, quando as marcas do tempo ainda não eram tão fortes, era dessa casa que um adolescente tímido saía todos os dias para treinar boxe, em um projeto social de estrutura precária. Keno Marley, então com 11 anos e sem imaginar que hoje estaria na sua segunda Olimpíada, já tinha o ringue como seu lar.>
Escoteiro desde pequeno, descobriu o pugilismo por sugestão de um dos chefes do grupo. O irmão mais velho, Jeremias, fazia boxe, e Keno tinha o costume de acompanhá-lo nos treinos. Típico irmão caçula, tinha em Jeremias sua bússola e seu amigo mais antigo: onde um vai, o outro vai atrás. No esporte, não seria diferente.>
De riso solto, o jovem compartilhou o que espera dos jogos de Paris e relembrou o início da carreira. “Meus primeiros golpes no boxe foram por intermédio do meu irmão. Ele contava as histórias dos treinos quando chegava em casa, e nós sempre assistíamos a filmes de luta juntos”, contou. >
Foi também Jeremias quem nomeou o irmão mais novo. Quem lê o nome Keno Marley pela primeira vez pode imaginar se tratar de um apelido. Na verdade, são homenagens bem curiosas: o Keno vem do Grand Canyon, nos Estados Unidos. Marley, mais fácil de identificar, é um tributo ao cantor jamaicano. >
O nome único parece destinado a um atleta que nasceu para se destacar. Keno foi descoberto num campeonato em Cruz das Almas, ainda no início da adolescência. Aos 13 anos, se mudou sozinho para São Paulo, com o objetivo de treinar com uma estrutura melhor e participar de mais competições.>
Em casa, as lutas e a distância deixavam duas pessoas especialmente aflitas. “Eu ficava ansiosa. Me dava um nervoso, queria sempre que ele vencesse logo”, relembrou a mãe, Maria de Fátima. A sensação ecoava na tia, Lia Portmann, considerada por Keno uma segunda mãe: “Eu pensava: ‘nossa, é porrada, ele vai se machucar’. Então, sempre falava para ele ir para o futebol, mas o irmão dele me dizia para esquecer, que o negócio de Keno era o boxe”. >
Ao assistir às lutas pelo YouTube, as duas continuavam de acordo, mas no sentido oposto. Vê-lo no ringue, grandioso e sob aplausos, era, e continua sendo, só orgulho. O apoio da mãe e da tia foi essencial para o início da carreira de Keno em São Paulo. Quando, em certo episódio, ele veio passar as férias na Bahia e considerou ficar de vez, sentiu nas terras paulistas o puxão de orelha da tia. >
“Ele me ligou e eu falei: ‘olhe, é o seguinte. Você pode até ficar, mas eu só te digo uma coisa. Não conte comigo para mais nada’. A passagem já estava comprada, tudo organizado, e em São Paulo as possibilidades de avançar na carreira eram bem maiores. Menos de meia hora depois, ele me ligou de novo, para avisar que estava a caminho do aeroporto”, contou Lia, aos risos.>
Desse ponto em diante, Keno não parou mais. Entre as conquistas, estão os Jogos da Juventude de 2018, na Argentina, uma medalha de prata no Mundial de Boxe de 2021, disputado na Sérvia, e medalhas de prata nos Jogos Pan-Americanos de 2019 e 2023. >
Também em 2021 foi a sua primeira participação numa Olimpíada, aos 20 anos. O ano de conquistas no esporte, porém, foi marcado por nocautes fora do ringue. Keno estava em São Paulo quando foi acordado pelo toque do celular e se deparou com a notícia mais difícil que já recebeu. Ouviu a voz nervosa de um amigo, contando que Jeremias havia sido assassinado na saída de uma festa. Para ajudar a mãe, foi ele quem lidou com as burocracias após o falecimento do irmão. Depois disso, passou por um período de depressão. >
Meses depois, pouco tempo antes do Mundial na Rússia, outro baque. Soube do falecimento do primo Mário, que cresceu com ele. Não pensou duas vezes antes de ir para a Suíça ficar perto da tia, sua segunda mãe. Nos dois momentos, o esporte ajudou Keno a se reerguer. Mesmo sem lutar, ele viajava com a equipe, acompanhava e torcia pelos colegas.>
“Foi o círculo familiar que o esporte me doou. Eu recebi apoio da equipe e de todos os meus patrocinadores, eles me acolheram naquele momento. A equipe me deu um tratamento [psicológico] que foi fundamental. Isso me motivou muito, não só na vida, mas a continuar no boxe e treinar mais ainda”, disse.>
Promessa do boxe brasileiro nos Jogos Olímpicos de 2024, Keno foi o primeiro boxeador masculino do Time Brasil a conquistar uma vaga na competição deste ano. >
Quando não está no ringue ou na academia, os dias de Keno são ocupados pelo descanso e pelos hobbies. Ainda no campo esportivo, o motocross é uma das atividades preferidas.>
Mais próximo da persona ‘Marley’, os instrumentos musicais também tomam conta das horas vagas do atleta. Instrumentos de percussão e violão são alguns dos nomes na lista. “Eu sou uma pessoa bem versátil, tenho essas atividades peculiares”, brincou. >
Entre os passatempos, há sempre tempo para o aprendizado. Estudante dedicado desde a infância, Keno divide a atenção do esporte com a universidade. Aos 24 anos, tem no currículo o curso de Educação Física e agora estuda Direito. Se pensa em atuar na área? >
“Por enquanto, eu sou atleta e o meu foco é ser atleta. Sou um jovem que gosta de aprender coisas novas, as graduações foram apenas para conhecimento pessoal. É algo a ser analisado”. >
Keno, que hoje disputa na categoria peso pesado (92kg), estreia na Olimpíada de Paris neste domingo, contra o britânico Patrick Brown, às 15h15. A expectativa é compartilhada sem rodeios. “Eu sou uma pessoa competitiva. Sempre vou em busca do ouro em qualquer luta, e em Paris não será diferente”, avisa.>
*Com orientação do editor Miro Palma.>