População de rua chora em enterro de militante: 'a luta dela continua'

Antes da militância, Maria Lúcia viveu 16 anos na rua; homenagens no adeus

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  • Da Redação

Publicado em 26 de abril de 2018 às 20:38

- Atualizado há um ano

. Crédito: Foto: Almiro Lopes/CORREIO

Maria Lúcia em discurso na Câmara de Salvador (Foto: Valdemiro Lopes/CMS) Nos rostos de aproximadamente mil pessoas que visitaram o cemitério do Campo Santo, na Federação, na tarde desta quinta-feira (26), não estavam lágrimas. No lugar delas era perceptível a força de serem obrigados a continuar o que aprenderam com Maria Lúcia Pereira da Silva, militante dos direitos da população de rua no Brasil. Seu corpo foi sepultado no local, mas a luta continua viva para amigos e familiares.

A ambulante Edilene de Jesus, 37 anos, conseguiu sair das ruas graças ao apoio de Maria Lúcia. A ex-moradora em situação de rua, que pintou os braços com os dizeres "Lúcia, Luto", conta que já não acreditava mais em si mesma, quando a militante lhe disse o contrário."Ela corria atrás dos nossos direitos, brigava mesmo. Eu não tô recebendo essa perda. Isso é como uma bomba. Eu não tenho pai ou mãe, quem vai cuidar de mim agora?", desabafou.Atualmente, ela possui uma casa no bairro de Pernambués.

Apesar da importância de seu trabalho, Maria Lúcia era uma pessoa humilde. A assistente social Maisa Maria Matos, 56, estagiou no Movimento População de Rua da Bahia (MNPR-BA) - onde Maria Lúcia era coordenadora - e conta que foi grosseira com a militante em uma situação, sem saber qual função ela desempenhava no grupo. Quando descobriu, resolveu se desculpar."Ela disse: 'fique tranquila'. Isso acontece comigo direto. Tô acostumada'", lembrou Maisa, enquanto aguardava a chegada do corpo ao cemitério.A força de Maria Lúcia também estava presente em Edson Alexandre da Silva, seu marido, mas, em seu caso, as lágrimas também estavam lá. "Ela era uma mulher para o povo. Renasceu do papelão para o povo", disse, enquanto era interrompido diversas vezes por amigos e colegas, para prestarem condolências. Adeus a líder do movimento de população de rua reuniu cerca de mil pessoas no Campo Santo (Foto: Almiro Lopes/CORREIO) Perda nacional Além de integrar a coordenação estadual do MNPR, Maria Lúcia também fazia parte da gestão nacional do projeto. Por esse motivo, militantes de diversos estados viajaram até Salvador para acompanhar o sepultamento da colega de luta.

Um desses moradores é Vanilson Torres, 45, integrante da coordenação do Rio Grande do Norte do movimento e da administração nacional. "A Lúcia é do mundo. Pra nós, ela não morrerá, porque a luta dela continua. Falar dela é falar de luta", afirmou o também militante. Maria Lúcia foi uma das fundadoras do movimento no Rio Grande do Norte.

Edcarlos Cerqueira, 45, veio de Feira de Santana para lembrar da amiga e colega de movimento. Ele estava com ela quando o grupo foi fundado, em março de 2010. "Ela se juntou com a gente na Praça das Mãos (Praça Marechal Deodoro) e disse que começaríamos a viver pelas pessoas de rua, com a busca pela garantia de seus direitos. Como ela dizia, não somos lixo nem bicho, mas cidadão direito", conta. 

A ex-coordenadora do Programa Corra pro Abraço, da Secretaria de Justiça, Direitos Humanos e Desenvolvimento Social do Estado da Bahia (SJDHDS), Jamile Carvalho, relacionou a dimensão da morte de Maria Lúcia com a perda da vereadora carioca do PSOL Marielle Franco, assassinada em via pública em março, no Rio de Janeiro."É uma perda irreparável não só pro movimento que ela fazia parte, mas nacionalmente. Ela era uma liderança política muito importante para as mulheres negras. Uma perda muito grande, principalmente no momento que nosso país vive", acredita.Por volta das 16h30, familiares de Maria Lúcia, amigos, colegas de luta do MNPR-BA, integrantes de outros movimentos sociais a favor da população de rua, entre outras centenas de pessoas, acompanharam o caixão com o corpo da militante ser enterrado.

Ao contrário do que se esperava, todos caminhavam de cabeça erguida e compartilhavam lembranças da ativista.

Volta por cima Como muitos presentes no sepultamento explicavam, Maria Lúcia tinha propriedade para debater sobre a população de rua. Ela morou nas ruas de Salvador durante 16 anos, antes de fundar o MNPR-BA, em março de 2010. Uma desestruturação familiar levou a militante a sair de casa.

Sofrendo na pele os abusos que moradores de rua são obrigados a conviver, ela percebeu que era necessário algo ser feito contra essa situação e fundou o grupo."Eu fiquei apaixonada pela história dela. Ela era uma pessoa que olhava para o outro. Ela vivia para o outro, e esqueceu da própria saúde", contou a jornalista Wanda Chase. Maria Lúcia morreu aos 51 anos, após uma infecção urinária se desenvolver para uma infecção generalizada.

*Com supervisão do chefe de reportagem Jorge Gauthier.